Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito. Diálogos entre Justiça Comunitária e Justiça Restaurativa: um estudo a partir da experiência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Dissertação de Mestrado. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2022, 133 f.
Do que trata o trabalho, seu desenvolvimento e as conclusões a que chega, com o conforto de qualificada bibliografia que lhe dá sustentação, e com a nítida e segura orientação, conduzida pela professora Débora Bonat, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, da UnB, diz bem o seu Resumo:
O presente trabalho acadêmico investiga as atividades desenvolvidas pelo Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas estaduais nos Tribunais Superiores (GAETS) para a formação de precedentes favoráveis aos direitos humanos de pessoas vulneráveis. Objetiva avaliar se as ações desenvolvidas por seus membros, como o uso de técnicas de litigância estratégica e advocacy, contribuem de maneira efetiva para a persuasão dos ministros em demandas judiciais sensíveis ao público assistido pela instituição Defensoria Pública e quais pontos podem ser potencializados. A metodologia empregada incluiu entrevistas semi diretivas com membros do GAETS, análise quantitativa dos processos com participação das Defensorias estaduais no STF e STJ e exame qualitativo de julgados destes órgãos com intervenção do grupo de defensores públicos. Os resultados obtidos demonstraram que a participação dos membros do GAETS nos processos criminais do STJ ocorre em cerca de 31% dos feitos, enquanto que nas ações em geral essa participação se reduz a aproximadamente 8% dos processos. Há, pois, uma preponderância de atuação do coletivo em matéria de Direito Penal no STJ. No âmbito do STF, a proporção de processos com atuação das Defensorias estaduais é reduzida, girando em torno de 1% das demandas, também com prevalência na seara criminal. Constatou-se que existe considerável diferença entre a demanda das diversas Defensorias estaduais do GAETS. Qualitativamente, concluiu-se que as atribuições do GAETS, seus peticionamentos enquanto amicus curiae, sustentações, uso de pesquisas, reuniões com ministros e outros instrumentos de litigância estratégica contribuem positivamente para que as cortes superiores emanem jurisprudência benéfica aos socialmente excluídos e expostos. Sugestionou-se, ainda, que a designação de profissionais com atuação exclusiva nas atividades do GAETS, criação de um sistema informatizado para o grupo e de uma estrutura administrativa própria (com coordenação) poderiam otimizar os resultados do labor desenvolvido.
Não tenho ressalvas de fundo a opor ao bem elaborado trabalho. Considero que a Mestranda, além de coordenar com pertinência os elementos empíricos de sua pesquisa para dar consistência a análise que desenvolve em face dos objetivos de sua pesquisa, realiza uma outra dimensão de sua disposição acadêmica que é a de estabelecer um ponto de vista para a sua observação, potencializando o alcance de essencialidade atribuída pela Constituição ao órgão de sua atuação, a Defensoria, naquilo que mais acentua a sua subjetividade conduzida para a consecução dessa essencialidade.
Por isso que me sinto autorizado a lhe oferecer uma indicação sobre o alcance desse posicionamento, que a meu ver, melhor corresponde aos seus objetivos e pressupostos, vale dizer, orientar-se segundo a compreensão de que a Defensoria é “uma instituição incumbida constitucionalmente de promover os direitos humanos dos vulneráveis, a Defensoria Pública tem o dever de garantir-lhes o acesso à justiça em todos os níveis e zelar para que esta defesa esteja além do plano formal. Os obstáculos a enfrentar com este fim são muitos, vez que enraizadas na sociedade brasileira estruturas de opressão do público alvo da Defensoria Pública, a exemplo da população preta e indígena, pessoas em situação de rua ou com deficiência, mulheres, idosos(as), crianças e adolescentes, LGBTQIs e outros grupos que lutam por dignidade e igualdade”.
Assim, aliás, ela começa o seu texto. Gosto de avaliar, logo no primeiro parágrafo, como um texto começa. Se a redação carrega força condutora para o que vem a seguir. Nunca me saiu da memória a primeira frase do Espírito das Leis, de Montesquieu: “As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”. Em que pese poder divergir do autor depois, em muitos pontos, sente-se logo a vitalidade desse enunciado a se desenvolver com a qualidade que caracteriza essa obra fundacional.
Para aludir a Robert Musil, em sua disposição de conferir qualidade, ela própria de quem, diferente do que é sem qualidade (Robert Musil, O Homem sem Qualidades), se recusa a uma “existência [que não seja] feita, naturalmente, de ações, não de discursos de que assimilamos o ponto de vista, de opiniões e de contra-opiniões correspondentes numa palavra da acumulação impessoal de tudo quanto sabemos ou ouvimos”.
Confrontando o que é opinião e contra-opinião, me chama a atenção as três primeiras notas de roda-pé:
1 O uso da terminologia “direitos humanos” em detrimento de vernáculos como “direitos fundamentais” ou “direitos”, lato sensu, decorre do viés do trabalho desenvolvido pela Defensoria Pública, no sentido de ampliação da proteção jurídica, política e normativa de vulneráveis, para incluir direitos consagrados internacionalmente, indo além da mera tutela de direitos individuais. O termo “direitos” pode dar a entender que a instituição protege apenas direitos individuais, enquanto que o termo “direitos fundamentais” refere-se apenas aos direitos humanos consagrados constitucionalmente. A expressão “direitos humanos”, por sua vez, engloba os direitos fundamentais e ainda outros previstos em documentos internacionais, mesmo que não oficialmente incorporados ao ordenamento interno. 2 Este trabalho pretende utilizar linguagem de gênero inclusiva. 3 Inicialmente foi utilizado o termo “invisíveis” para tratar dos grupos vulneráveis assistidos pela Defensoria Pública. Todavia, considerando que as pessoas não são de per si invisíveis e apenas não são enxergadas por estruturas sociais opressoras, o termo foi substituído por inviabilizados(as)
Essas três notas são para mim como que chaves de leitura do trabalho. E por essa razão questiono por que a Autora, tão vivamente interpelada pela perspectiva hermenêutica de desvendamento, conforme aliás sugere Boaventura de Sousa Santos para vencer silenciamentos de toda ordem e ater-se ao que é ausente e emergente, incluindo posições descolonizadoras, não se valeu da expressão vulnerabilizados(as) ao invés de vulneráveis.
Já no título da Dissertação, mas na abertura de posicionamento constato o que me parece ser uma exigência de posicionamento. Diz a Autora:
Todos devem ter voz e visibilidade para que a democracia realmente se consolide no Brasil e, assim, seja possível sonhar com a efetiva justiça social. O fortalecimento e o êxito de instituições contramajoritárias é condição indispensável para tanto, pois elas são muralhas que barram ataques às liberdades, em tempos tormentosos de arroubos antidemocráticos. A missão da Defensoria Pública é árdua, ainda mais porque os recursos estatais são minguados quando direcionados aos(às) invisibilizados(as), o que provoca o atual estágio de não implementação plena do órgão em todas as cidades do país. A instituição precisa utilizar a inteligência, numa realidade de recursos materiais e humanos muito limitados, e assim obter os melhores resultados possíveis em defesa dos direitos humanos. Para além da atuação casuística em processos judiciais, os(as) defensores(as) públicos(as) precisam articular-se e, com uma litigância estratégica, contribuir para a formação de jurisprudência favorável aos(às) seus(suas) assistidos(as), irradiando efeitos com a construção judicial do direito. Defender os direitos dos(as) necessitados(as) não se resume ao mero peticionamento e o patrocínio de causas individuais ou coletivas. Envolve principalmente o empoderamento e a consciência de direitos das minorias, dos movimentos sociais, o entusiasmo político, jurídico e social dos direitos humanos, no plano judicial, extrajudicial, nacional e internacional.
É certo que na passagem ela retoma o termo inscrito na Constituição e na Lei Complementar sobre a defesa de necessitados(as). Mas a expressão vulnerabilizados(as) já tem curso firme em posicionamentos da Instituição e de seus quadros mais conscientes.
Em texto de recensão, conforme está em coluna (Lido para Você), que mantenho no Jornal Estado de Direito, tratei do livro Defensoria Pública e a tutela estratégica dos coletivamente vulnerabilizados ((Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, 948 p.), conferir em http://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/.
Lançamento primoroso da Editora D’Plácido, este livro, conforme a nota de seus organizadores “aborda temas sensíveis à atuação das defensoras e defensores públicos na seara transindividual, pautando-se pela narrativa doutrinária atrelada a casos práticos relevantes”.
As suas 948 páginas compreendem uma apresentação, a cargo de Maria Tereza Aina Sadek, um prefácio assinado por Boaventura de Sousa Santos uma nota dos organizadores, seguindo-se doze partes. Além desses, 62 autores e co-autores assinam textos, distribuídos nessas doze partes, examinando-se no seu conjunto: 1 – diversos ramos do direito material – liberdades (religiosa, de expressão etc), infância e juventude, idoso, mulher, populações de rua, imigrantes, quilombolas, indígenas, direito à cidade, trabalho, moradia, saúde, pessoas com deficiência, em privação de liberdade, consumidor, meio ambiente etc; 2 – atuação judicial e extrajudicial via projetos de educação em direitos, de mediação, grupos de trabalho, requisições administrativas, recomendações, audiências públicas, TAC e outras formas de resolução consensual de conflitos, acordos de cooperação, atuação em rede, ações civis públicas, mandado de injunção coletivo, HC’s coletivos etc; 3 – Defensoria como parte e também 3ª interveniente via amicus curiae, custos vulnerabilis, custos plebis, amicus communitas, ombudsman (defensor del pueblo) e 4 – concepção das vulnerabilidades e sua organização coletivizada.
Para a apresentadora os artigos que compõem a obra “apresentam teses inovadoras e práticas que demonstram não apenas a preocupação de defensores públicos, professores e operadores do direito com questões relevantes, mas sobretudo evidenciam como suas atuações, em diferentes áreas, têm concretizado direitos, contribuindo para superar situações vividas por vulnerabilizados”.
O livro, conforme o prefácio de Boaventura de Sousa Santos, mostra de modo eloquente como “um conjunto notável de juristas profissionalmente bem preparados e com um sentido extraordinariamente vincado de compromisso com mandato da Constituição, se manteve firme na defesa dos direitos das classes e dos grupos sociais coletivamente vulnerabilizados”.
Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampim, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826.
Também com Albeto Amaral e Talita Rampin, organizei o livro Direitos Humanos e Covid-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021, cf. em http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/).
Já o Prefácio de Boaventura de Sousa Santos – O coronavírus, nosso contemporâneo, começa por oferecer uma leitura panorâmica mas crítica que abrange o campo interpretativo da pandemia e a afetação de grupos vulnerabilizados sob a perspectiva dos direitos humanos.
Em nosso texto de organizadores, que abre o livro, está assim resumido: “a partir dos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua e visualizando as mudanças drásticas de rotinas, vidas e relacionamentos, o texto procura situar o acesso à justiça em tempos de pandemia do Covid-19, problematizando uma situação de isolamento que é marcada pelas dessemelhanças estruturais, que fragiliza ainda mais os grupos socialmente. Compreender o acesso à justiça exige, com ainda maior força, visualizar para além da letra positivada e visualizar o não-dito, mas socialmente inegável, na busca de minorar a exclusão de direitos dos excluídos”.
Em nossaa abordagens nesses trabalhos, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico.
No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos .
E com certeza, a Autora da Dissertação parece perfilhar essa dimensão alargada de acesso, para inferir, até em concordância comigo no que toca ao transbordar o próprio institucional, do papel de defesa interinstitucional que a Defensoria realiza, a possibilidade de fortalecer uma atuação sem a qual não alcança salvaguardar, diz ela, os direitos “da população vulnerável”:
a instituição também cumpre importante papel na defesa interinstitucional da população vulnerável, cooperando e fiscalizando o trabalho de outras instituições (a exemplo de órgãos do Poder Executivo, do Judiciário e do Ministério Público) para a adoção de providências para o avanço dos direitos fundamentais dos vulneráveis. Sousa Júnior, ao tratar sobre o alargamento do acesso democrático à justiça, indica como estratégia para ir além da institucionalização a consideração da participação popular no processo democrático além de seu formato individualizado, priorizando a organização coletiva.
A partir de entrevista que concedi ao Boletim DPU Escola Superior Fórum DPU Defensoria Pública e Acesso à Justiça, nota-se a emergência de uma agenda relevante de temas estratégicos, nos planos teórico e de aplicação, que logo se fez interpelante para prosseguir em análises que aprofundem a relação entre o sentido institucional-funcional da Defensoria Pública e a questão desafiante do acesso à justiça. Apesar de inicialmente pensados na articulação da Defensoria Pública da União e de suas atribuições específicas, dada a própria temática da entrevista, esses temas são instigantes para a atuação de todas as Defensorias Públicas estaduais e do Distrito Federal, emergindo como vórtices para uma atuação para além dos fixos quadros de processualização formal das violações a direitos.
Uma primeira questão para organizar essa agenda se coloca quase intuitivamente: quais seriam os principais desafios institucionais, econômicos e sociais de acesso à justiça?
Uma forte consideração nesse tema e, sobre ele, registros e reflexões que estão contidas em trabalhos nos quais as aproximações desde O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática vem acumulando, sempre pensando um modo alargado de concepção do tema que leve em conta exatamente confrontar e superar esses obstáculos. O pressuposto para tal é apostar na democratização da sociedade e da justiça, abrindo-as à crescente participação da cidadania de modo a reduzir as barreiras econômicas, institucionais e sociais por meio de reconhecimento de sujeitos coletivos e de protagonismos que desindividualizem as demandas, pela afirmação das dimensões políticas que ordenam os conflitos mais agudos em nossa sociedade. Esse é um modo para deslocar a questão dos entraves burocráticos que pedem medidas modernizadoras – novos códigos, mais agentes, novos procedimentos – quando a questão é o questionamento da Justiça a que se tem acesso e o modo democrático de ampliar esse acesso.
Em resumo desse acumulado, o que baliza uma aproximação, que nos caracteriza, é conceber a assessoria jurídica popular como uma estratégia para promover o acesso ao direito e à justiça dos cidadãos, especialmente os subalternizados, na medida em que atua para que estes conheçam seus direitos e não se resignem em relação às suas violações bem como tenham condições para superar os obstáculos econômicos, sociais e culturais a esse acesso. Tomando os pressupostos da assessoria jurídica popular, na perspectiva de O Direito Achado na Rua, trata-se de acentuar a relação de compromisso político com os sujeitos coletivos organizados e movimentos sociais cuja atuação expressa práticas instituintes de direitos, e a combinação de instrumentais pedagógicos, políticos e comunicacionais com a dimensão jurídica. O que significa realizar um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito, para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e dignidade.
Voltando a minha Entrevista para o Boletim da DPU, e no interesse do debate nesta arguição, transcrevo uma pergunta que me foi posta: “Em que medida a atuação junto a instituições internacionais pela DPU são relevantes para a garantia do acesso à justiça?”.
Lembro essa questão para acentuar a relevância da atuação da Defensoria nesse âmbito caracterizado na Dissertação como o de “atuação da Defensoria Pública nos Sistemas de Justiça Nacional, Interamericano e Internacional de Direitos Humanos, um campo fundamental para abrir ensejo à plena atenção aos interesses dos vulnerabilizados no espaço de litigação estratégica.
Na minha resposta lembro que num tempo de globalização e de internacionalização das lutas sociais e dos direitos humanos, não é apenas uma exigência de natureza interlocutora ou de intercâmbio, para trocas de conhecimentos e de experiências, é um requisito de desempenho porque a salvaguarda dos direitos segue o princípio do jus cogens e caminha para a consolidação do reconhecimento da jurisdição universal relativamente a direitos da humanidade. A DPU precisa se instalar no âmbito dessa jurisdição porque nesse campo é inevitável prosseguir a defesa de direitos nas cortes internacionais. Por isso, o desafio político de estar sempre reavaliando a sua função social e política e ao mesmo tempo atualizando criticamente os pressupostos de sua cultura epistemológica de formação jurídica, algo que não se esgota com a diplomação acadêmico-universitária.
Retomei esse tema em duas oportunidades recentes de diálogo com a Instituição. Primeiro, em curso de formação para os defensores recém-nomeados (XXIV Curso Oficial de Preparação à Carreira de Defensora e Defensor Público Federal, em Brasília, modos de pensar o Direito, inspirado em teorias de sociedade e teorias de justiça para abrir o jurídico para dimensões ampliadas e complexas que o social coloca de maneira instituinte desafiando o agir constituído. Então eu discorria sob a perspectiva formulada por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática.
Depois, em programa de formação da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia, participar do “Curso Sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, desenvolvendo, exatamente, o módulo “História e internacionalização dos direitos humanos, pela perspectiva da teoria crítica dos direitos humanos”. Nesse passo, praticamente, o capítulo II, de meu livro em co-autoria com Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019), voltado para o tema Um Panorama do Cenário Internacional dos Direitos Humanos, porém recortado em duas partes, a primeira tratando do Direito Internacional dos Direitos Humanos e a segunda, Sobre a exigibilidade e justiciabilidade, e o ambiente do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Com a Autora da Dissertação tenho que sem a projeção para o plano de litigação estratégica, em defesa dos direitos humanos dos vulnerabilizados, não se completa o exercício pleno das atribuições da Defensoria Pública.
Em artigo de opinião – Crime de Desacato Viola Direitos Fundamentais e a Liberdade de Expressão – Jornal Brasil Popular em 11 de março de 2022 (https://www.brasilpopular.com/crime-de-desacato-viola-direitos-fundamentais-e-a-liberdade-de-expressao/ ), trouxe a debate a notícia de que a CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acolhera denúncia da DPU – Defensoria Pública da União por considerar que crime de desacato viola direitos fundamentais e a liberdade de expressão. Para o órgão internacional, que vai debater o assunto, condenação de homem que insultou PF pode violar a liberdade de expressão.
A notícia esclarecia que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) havia admitido petição da Defensoria Pública da União (DPU) contra o Estado brasileiro conforme relatório publicado dia 21/2. Nesse relatório consta que a petição alegou violações à liberdade de expressão de um homem condenado pelo crime de desacato por chamar um agente da Polícia Federal de “vagabundo”.
Conforme relato da DPU, o cidadão foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) e julgado pela Vara Criminal de Florianópolis, cujo magistrado o condenou com base em depoimentos de outros policiais federais. A suposta vítima recorreu à Turma Recursal e teve a sentença mantida. Seu pedido ante a Turma Nacional de Uniformização (TNU) foi inadmitido, e os embargos de declaração, rejeitados.
A Defensoria Pública sustentou o esgotamento dos recursos internos, vez que uma inadmissão proferida pela Presidência da TNU é irrecorrível, enquanto um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) não seria efetivo, pois a Corte já havia se pronunciado sobre outros casos de desacato, reforçando a condenação dos réus. Completou afirmando que a revisão criminal não seria um recurso efetivo e que a condenação não poderia ser discutida na esfera civil.
Para além do aspecto constitutivo do tema em debate, que afronta um princípio nuclear da carta americana de direitos, relativo à salvaguarda do processo democrático, o tema expõe um grau acentuado do modo de atuação do judiciário brasileiro que tende a esvaziar as promessas constitucionais e legislativas de realização emancipatória do jurídico. Do piso (instâncias ordinárias), ao teto (o próprio Supremo Tribunal Federal).
Com efeito, na contra-mão de um continuado adensamento que a OEA (Organização dos Estados Americanos) por seus instrumentos de monitoramento dos direitos fundamentais derivados da Convenção Americana, vem estabelecendo no sentido de que legislações nacionais e decisões jurisprudenciais em temas como desacato e difamação penal (Relatorias Especiais 1998, 2000, 2002, 2004), para afirmar “a necessidade de derrogar esta normativa a efeitos de ajustar a legislação interna aos padrões consagrados pelo sistema interamericano quanto ao respeito ao exercício da liberdade de expressão. É intenção da Relatoria continuar este acompanhamento a cada dois anos, já que é um tempo prudente para permitir, aos distintos Estados membros, levar adiante os processos legislativos necessários para as derrogações ou adaptações legislativas recomendas”; enquanto, “lamentavelmente, a Relatoria considera que não houve avanços significativos desde a publicação do último relatório sobre a questão: são muito poucos os países que derrogaram de sua legislação as leis de desacato” (https://www.oas.org/pt/cidh/expressao/temas/desacato.asp).
Admitida a petição a DPU adverte sobre o impacto que resultará desse debate quando o próprio STF em julgamento precedente, de junho de 2020, na ação de ADPF 496/2015, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), fixou a tese de constitucionalidade e convencionalidade do crime de desacato.
Parte da ementa do acórdão ((ADPF 496, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-235 DIVULG 23-09-2020 PUBLIC 24-09-2020), sustenta, a meu ver impropriamente, que “de acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e, em casos de grave abuso, faz-se legítima a utilização do direito penal para a proteção de outros interesses e direitos relevantes”.
Ressalvem-se os votos vencidos dos ministros Luiz Edson Fachin e Rosa Weber. Para Fachin, seja por ofender os tratados internacionais, seja por ofender diretamente o próprio texto constitucional, o crime é inconstitucional. Para a ministra Rosa Weber na mesma linha, no caso da tipificação do crime de desacato, sobressai o particular interesse social em que seja assegurada a livre opinião relativamente ao exercício de função de interesse público. Segundo ela, em consonância com a diretriz contínua da OEA, “uma sociedade em que a manifestação do pensamento está condicionada à autocontenção, por serem os cidadãos obrigados a avaliar o risco de sofrerem represália antes de cada manifestação de cunho crítico que pretendam emitir, não é uma sociedade livre, e sim sujeita a modalidade silenciosa de censura do pensamento”.
Aliás, os Relatórios de monitoramento têm sido enfáticos (http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/desacato/Informe%20Anual%20Desacato%20y%20difamacion%202004.pdf), no sentido da incompatibilidade das leis de desacato com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. O problema reside, se vê, lembrava o ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antonio Augusto Cançado Trindade, em vencer o obstáculo do positivismo que ainda impede, no país, internalizar no direito nacional, as decisões cogentes das Cortes Internacionais de Direitos Humanos sobre Tradados e Convenções relativas a Direitos Humanos.
De todos esses aspectos tratou a Dissertação, conduzido para a conclusão do que bem responde a sua pergunta de pesquisa: “a atuação das Defensorias Públicas estaduais e do GAETS está sendo eficiente para a construção de jurisprudência favorável aos direitos humanos de grupos vulneráveis no STF e STJ. Ademais, buscou analisar a sistemática de trabalho do grupo e indicar aspectos a serem aprimorados para o melhor desenvolvimento de suas funções. As hipóteses levantadas para a investigação foram em sua maioria confirmadas. Com efeito, a litigância estratégica das Defensorias Públicas estaduais e a atividade de advocacy dos(as) defensores(as) no STF e STJ trouxeram importantes resultados na evolução da jurisprudência em favor dos invisibilizados”.
A Autora teria grande proveito para a continuidade de seus estudos, a partir do criterioso levantamento de dados que realizou, no diálogo com estudos muito avançados que tomaram a promessa institucional de implantar serviços de atenção aos vulnerabilizados, para potencializar acesso à justiça.
Faço referência especial à tese de Doutoramento em Coimbra, de Élida de Oliveira Lauris dos Santos – Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece : dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra : [s.n.], 2013, Orientador Boaventura de Sousa Santos. Participei como arguidor de sua banca e fiquei muito bem impressionado com a densidade de sua análise, que tem como base empírica no estudo comparado, o sistema português de listas de advogados para a assistência jurídica e o modelo brasileiro de Defensoria Pública, no caso, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Com seu estudo, resume Élida, “convoca-se tanto o realismo da carência, quanto o potencial da promessa de acesso à justiça. Na conjugação dessas duas extremidades, reinvidica-se uma reflexão crítica quer sobre as condições de desenvolvimento dos mecanismos de acesso, quer sobre as direções apontadas e seguidas pelos estudos sociojurídicos. Com suporte em métodos de análise qualitativa e ancorados numa abordagem culturalista do direito, os resultados do estudo apuram uma constelação de significados, interpretações e experiências subjetivas inerente aos processos societais de criação, aplicação e uso do direito. As condições de cumplicidade entre a proposta de igualdade jurídica formal e as relações de dominação consagradas pelo sistema jurídico são desveladas a par do conhecimento ilustrativo do funcionamento dos serviços jurídicos de assistência”.
Finalizando, folgo em que a Autora da Dissertação, em sua conclusão, tenha firmado a condição de uma atuação que se faz em favor dos invizibilizados, assim tornados pelas políticas públicas e por uma governança anti-povo útil a um sistema de produção de ranço colonizador ao extremo da alienação da dignidade – portanto, quem mais precisa de acesso e quem luta por justiça. Assim, a Autora já não usa o vocábulo invisíveis. Pergunto: Não pode, por tudo que sugeri, substituir a expressão vulneráveis por vulnerabilizados(as)?
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55