Testemunhos da história de uma das maiores crueldades contra seres humanos indefesos

Cinquenta anos depois, repórter percorre cidades onde viveu sua infância, adolescência e juventude para reencontrar as dores e alegrias dos “bobos”

Por João Negrão 

Prepare-se para um narigão de cera.

Havia um gemido de dor entrecortado por gritos estúpidos, ordens peremptórias e sadismo transbordante. Eu, menino com minha pesada pasta de escola na periferia de Araxá (MG), a coloquei no chão e, assustado e curioso, fui olhar pelas frestas do muro de pau-a-pique. Espreitei por entre as folgas naquela cercania rústica e vi um homem ser surrado. Suas vestes estavam caídas e suas nádegas à mostra, com um velho calção de pano rude pendendo pelas coxas até próximo à dobra atrás do joelho. Ele estava de costas e, apesar de não ver seu rosto de imediato, imaginei sua expressão de dor a cada chicotada. O homem, meio gordo e ofegante, mais parecia uma criança. Apesar da violenta surra, ele não saía do lugar. Só gemia. Um gemido abafado e, por vezes, um grunhido beirando a um grito breve.

Eu tinha 7 anos de idade e morava na cidade do Triângulo Mineiro, para onde a empresa que meu pai trabalhou na construção de Brasília foi fazer a pavimentação da BR que dá acesso à cidade. Havia uma ladeira a subir rumo à escola e todas as vezes que eu a descia, já à tardinha, escutava os gemidos pouco antes de chegar à ponte do córrego próximo à minha casa.

Era assustador o som e a imagem daquele ser humano quase sexagenário apanhando. Não raro ele estava lavando ou estendendo roupas enquanto era surrado. Outras vezes estava cuidando de outros afazeres da casa. Ela, a casa, era grande, num estilo colonial, e naquele canto do vasto quintal cheio de lodo, que transbordava para a rua, ele, o homem torturado, estava sempre por lá no horário que eu descia da escola.

Raras vezes consegui ver seu rosto. Havia nele, naquela face, um tipo de sorriso sempre aberto, desdentado, que nunca era de alegria. Era de pavor, com brevidades de serenidade e misto de um conformismo, resignação. Ele aceitava aquele horror, aquela dor, e ainda sorria apavorado para seu torturador. Aquele ser humano, branco e doente, em sua condição débil, dos chamados “bobos”, era um escravo. Eu saía daquela espreita e ia para casa calado e triste e algumas vezes não queria tocar no jantar. Deixei de olhar para aquele muro e, meses depois, tomei a decisão de nunca mais passar por lá.

(Reprodução)

‘Bobo rico’

No final do ano mudamos para Juiz de Fora, também em Minas Gerais, onde havia outro vizinho, duas quadras à diante, naquela rua do Benfica. Ele ficava atrás da grade da frente daquela casa bonita, com anões e sapos de barro no amplo jardim, com muretinhas em volta de arbustos e pequenas árvores. Era tudo calçado e muito limpo. Ali, todas as manhãs, estava o “Coisinho”. Quando eu passava, ele cumprimentava: “Tudo bem, coisinho?” Ele babava e ficava excitado quando passava uma “coisinha”. Eram as meninas que, como eu e outros colegas, iam e voltavam da escola. “Oi, coisinha!”, exclamava ao mirar nas saias plissadas do uniforme da escola das meninas.

O Coisinho era bem arrumado e aparentava uns 40 anos, a idade do meu pai à época. Ele me parava e queria sempre contar uma inconfidência do pai ou da mãe dele ou de alguém que os visitaram. Usava camisas listradas e abotoadas ao punho, com uma discreta gravata borboleta e calças folgadas sustentadas por suspensórios, que invariavelmente traziam uma mancha de urina na frente e ou de fezes atrás. Ele era um “bobo rico”. A família cuidava dele, embora raramente o dava a liberdade de sair ali daquele jardim para a rua. Nunca soube seu nome. Era chamado de “Coisinho” porque assim tratava os meninos e as meninas, “Coisinha”. Teve a sorte de não ser mandado para um asilo ou ofertado a quem pudesse “cuidar” em troca de trabalho doméstico. Sim, porque a maioria dos bobos era de família pobre, que não tinham condições de pagar asilos, e estas os deixavam “aos cuidados” de quem tinha condições de “alimentá-los” e dar-lhes “roupas e pouso”.

Nem todas as famílias, mesmo as mais pobres, abandonavam seus filhos, irmãos, sobrinhos ou netos tidos como bobos. Muitas os mantinham em casa, sob cuidados ainda que em alguns casos precariamente e ajudando nos afazeres domésticos. Alguns até trabalhavam fora dignamente, como é o caso do Popó, do Burro Preto e do Alta Capa, que conheci em Pontalina (GO) e sobre os quais falarei mais adiante. Mas aqueles que eram entregues sazonal ou definitivamente a outras famílias para que tivessem alimentação, roupas e pouso a lhes dar, pagavam preços muito elevados. Aqueles seres humanos não tinha uma vida digna na maior parte das situações. Invariavelmente eram transformados em escravos.

Por uma razão que não sei explicar até hoje, aqueles seres me fascinavam desde a minha mais tenra infância. Nas minhas lembranças mais antigas eles viviam presentes em mim e carreguei isto durante mais de cinco décadas. Quando me tornei jornalista no início da década de 80 eu senti vontade de contar essas histórias que presenciei. A música Arnold Layne, do Pink Floyd, composta por Syd Barrett, que fala de um homem que gosta de colecionar e usar roupas femininas, já me remetia, quando eu tinha 13 anos e adentrei ao mundo floydiano, ao Popó e seus irmãos que faziam o mesmo.

Mantive reservada minha vontade de contar a história dos bobos que trilharam meu caminho (ou que eu trilhei o deles) até que, em pesquisa pela Internet, encontro o excelente trabalho da professora Marilucia Melo Meireles – “Os ‘bobos’ na tradição da cultura da Cidade de Goiás: enigmas e silêncios sobre um tipo característico de figura do povo”, sua tese de doutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Isto foi em novembro de 2014. A partir de então alimentei a ideia de retornar às cidades mineiras e goianas onde mantive contato na infância, adolescência e juventude, com os bobos. A tese da professora Marilucia foi uma grande inspiração, mas demorei quase seis anos para organizar e concluir minhas viagens. Esta reportagem tem como base as minhas memórias de criança até a juventude, mas, sobretudo, o magnífico estudo da professora Marilucia. Peço permissão ao leitor para jogar aqui toda a minha indignada emoção ao longo deste texto. Obviamente que trarei o necessário equilíbrio ao pontuar questões que requerem isenção e transcreverei a abordagem científica da doutora que se apaixonou por um tema tabu nas três décadas antes e vem sendo esquecido tacitamente por atores de um processo cruel de subjugação de seres humanos indefesos.

Retorno a Pontalina

Meu retorno às cidades onde convivi com esses seres humanos em geral estigmatizados se limitaram às do Estado de Goiás. Por questões de logística, apenas fiz contatos com profissionais de asilos das cidades mineiras de Araxá e Juiz de Fora. Reticente em falar sobre o tema, esses profissionais se limitaram a informar que raramente se vê por lá esses deficientes mentais perambulando pelas ruas ou sendo escravizados por famílias que os “adotavam”. “O desenvolvimento das cidades e a facilidade de comunicação, que ajuda nas denúncias a órgãos de proteção que antes não existiam, impedem a escravidão. Mas muitas famílias ainda têm dificuldades de cuidar e, com pouca informação, não acessam os serviços públicos de saúde e educação que atendem pessoas deficientes. Como o abandono existe, muitos são recolhidos aos abrigos”, pontuou a funcionária da prefeitura que atende num dos abrigos de Araxá. Situação semelhante eu verifiquei com o funcionário da Secretaria de Desenvolvimento Social de Juiz de Fora.

Meu retorno a Pontalina, em Goiás, foi um mergulho de 50 anos antes. A cidade parece que não evoluiu neste intervalo de meio século. A não ser o fato de estar melhor em termos de infraestrutura e a modernização de suas edificações, muito era praticamente igual. A começar pela casa onde morei, ao lado da quadra onde moravam Popó, igualmente sem alteração, fora o fato de que as cercas rústicas de antes viram muros e os colchetes, portões.

Mudamos para aquela cidade do Sul de Goiás no início de 1969. A Coenge, companhia que meu pai trabalhava desde a construção de Brasília, onde eu nasci, foi pavimentar a rodovia que liga a cidade à BR-153. No segundo dia morando na casa, minha mãe se esqueceu de recolher as roupas dela e de minhas irmãs estendidas no varal. Quando acordamos no dia seguinte as roupas não estavam mais lá no quintal. Dona Laura ficou profundamente irritada com o roubo. Saiu perguntando pela vizinhança. Antes que alguém respondesse, minha irmã Fátima, mais velha que eu dois anos, gritou: “Olha meu vestido lá!”

Foi quando vimos três figuras passando na frente de casa com os vestidos e calcinhas de minha mãe e minhas irmãs, algumas peças sobre as outras, formando estranhas figuras, como se fosse espantalhos ambulantes. A reação de minha mãe e irmãs foi de raiva e dona Laura avançou a tapas sobre o primeiro que passou a nossa frente. Era o Popó, mais novo de todos. O ímpeto de minha mãe revoltou os vizinhos, que partiram para cima dela para proteger o Popó. Enquanto isto eu fiquei admirando aquela cena, aqueles três seres e suas irreverências. Só depois ficamos sabendo que Popó, Burro Preto e Alta Capa eram muito queridos pela vizinhança acostumada com seus hábitos estranhos. “É só não deixar as roupas dormirem no varal”, explicou a vizinha, depois de advertir minha mãe que os três bobos eram “patrimônios” da cidade e, portanto, intocáveis.

Depois desse episódio, dona Laura nunca mais esqueceu as roupas no varal e a família passou a tratar os três irmãos com respeito. Especialmente porque eles eram excelentes trabalhadores e dominavam uma habilidade extremamente necessária naqueles tempos. É que não havia água encanada em toda a cidade e o abastecimento vinha de poços, as famosas cisternas, cavada no quintal das casas. Como a energia elétrica também era rara, poucas famílias tinham o privilégio de bombas hidráulicas elétricas para encher seus reservatórios, ou mesmo comprar manuais. Assim, o que funcionava era a carretilha com corda e o balde. Com o tempo, aquele manuseio diário com água molhando as cordas, elas iam apodrecendo e os baldes despencavam cisterna abaixo. A especialidade de Popó e seus irmãos era tirar os baldes. Ou seja, a profissão deles era “tirador de balde de cisternas”.

Alta Capa, o mais velho, era muito “emburrado”, nunca sorria e tinha um olhar dissimulado e distante. Além de “tirador de balde de cisterna”, era um excelente pedreiro, muito requisitado. Burro Preto era o mais tranquilo de todos, se irritava menos e era dado também a afazeres domésticos. Popó era o caçula e com as características da adolescência gostava de brincar com a meninada da vizinhança. Os três moravam com os pais, igualmente com a mesma deficiência mental. Os parentes estavam sempre presentes e ajudavam a família, inclusive com a necessária proteção, embora o trabalho dos três – que era remunerado – garantisse a sobrevivência.

História de “Menino”

Fiquei amigo do Popó e aprendi com ele o ofício de tirar baldes de cisternas. Ensinou-me a manusear aqueles ganchos e a técnica de deitar sobre a mureta de proteção da cisterna e equilibrar o balanço da corda até que o gancho de quatro pontas fixasse na alça do balde. Subir com aquele balde que vinha com água e balançando era outra arte. Qualquer descuido ele caia de volta.

Cinquenta anos antes havia uma fazenda bem próxima à cidade, praticamente cortada pela rodovia que a companhia em que meu pai trabalhava pavimentou. Ali vivia “Menino”. Era um pouco mais novo que Popó. Ele era o “empregado” da família. Trabalha exaustivamente o dia inteiro. “Menino, venha cá! Vai ajudar o João a colher mamão”, ordenava o dono da fazenda quando nos preparávamos para ir embora e nos eram ofertadas frutas, enquanto meu pai pagava pelas galinhas e bandas de porco.

“Menino” era sempre ofegante e com uma via de catarro amarelado escorrendo pela narina direita, que, quando ele limpava com as costas das mãos, esparramavam pela face de brotoejas e depois mostrava uma leve “canaleta” do orifício nasal até os lábios, um ferimento que nunca cessava. Nunca vi “Menino” ser espancado como o bobo de Araxá a caminho da minha escola. Mas ele estava frequentemente sujo e doente e me olhava com uma tristeza tímida. E sempre corria desesperando perante às ordens do “patrão”. Aquilo tudo era uma coisa normal para meu pai e o resto da cidade que se aproveitava do trabalho de seres humanos indefesos e, conscientemente ou não, praticavam a mais pura escravidão.

Saí de Brasília numa manhã de janeiro deste ano, passei por Goiânia e segui pela BR-153 até o entroncamento à direita para Pontalina. Logo à entrada da cidade vi o brejo à direita onde meu pai caçava rãs, o que indicava: a cidade havia mudado muito pouco em meio século. A primeira pessoa com quem converso, um taxista, que chegou aos 10 anos na cidade, um ano antes de minha família, conta que dos três irmãos apenas o do meio, Burro Preto, estava vivo e internado no Lar dos Idosos São Judas Tadeu. Fiquei muito triste por não poder encontrar meu amigo Popó. Fui ao Lar e encontrei Burro Preto. Como ele, dezenas de outros deficientes mentais, a grande maioria idosa, lotava a instituição. A diretora não quis me dar entrevista nem permitiu fotografar.

Como Burro Preto, o mais velho, Alta Capa viveu no Lar dos Idosos até morrer cinco anos atrás. Popó faleceu em 2017. A funcionária da prefeitura que me atendeu e preferiu não ser identificada, conta que a cidade não possui mais deficientes mentais perambulando pelas ruas como antigamente. “E escravizados?”, pergunto. “O quê?”, se assusta ela, que por ser muito nova não devia ter conhecido esses episódios. Conto a ela o caso do “Menino”. “Nunca soube, nunca ouvi falar”, finaliza ela de forma peremptória.

A escravidão dos bobos era uma situação corriqueira, mas ninguém direta ou indiretamente envolvido gostava de mencionar o tema. O senso comum era que aqueles seres humanos recebiam pouso, comida e roupa e “pagavam” esses favores com trabalho. Nos rincões do país, como até em grandes centros, esta lógica predominava. E ainda predomina. Meninas são levadas de casa sob a promessa de que irão para a cidade estudar. Chegando lá viram escravas, sendo obrigadas a trabalhar por um quarto de empregada, um prato de comida e as sobras de roupas das filhas dos patrões. Com muitas “bobas” “adotadas” pelas famílias abastadas, essas meninas invariavelmente eram violentadas e não raro houve casos de “escravas sexuais” servindo inclusive para a iniciação dos filhos dos senhores. Escravidão e patriarcado operando juntos. Trabalhadores braçais são levados para as fazendas do Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Goiás, entre outros Estados, para jornadas extenuantes e não raro ficam “endividados” e presos até pagarem com suor uma dívida que nunca cessa. Com os bobos a situação nunca foi diferente. E não importava a qualidade da moradia, das refeições e das condições de trabalho. Para a maioria das pessoas aquilo era normal.

(Reprodução do site do MPT)

Como em Guapó, cidade a 20 quilômetros a Oeste de Goiânia. Ali eu conheci bobos escravizados. Era uma situação corriqueira. Ter um bobo no trabalho doméstico ou nas lidas da fazenda era normalizado e garantia de status. Era 1979 e eu estava concluindo o curso de Agrimensura na então Escola Técnica Federal de Goiás, quando fui estagiar na cidade fazendo o cadastramento técnico. Nas medições e apontamentos percorrendo todas as residências urbanas e rurais do município, conheci cada palma daquela pequena cidade cortada pela BR-060. Mas não me acostumei com os gritos e gemidos dos bobos e os gritos das ordens que eles recebiam, quase sempre sob chibatadas. Com meus então 18 para 19 anos eu tinha muito mais compreensão do que ocorria que dez anos antes em Pontalina e 12 anos antes em Araxá. Mas aquelas faces contraídas e semblantes contritos, aquelas bocas com parcos dentes e seus sons doloridos eram os mesmos. Difícil conviver com aquilo, mas a cidade aceitava sem comiseração.

De Pontalina fui direto a Guapó. Tal qual a cidade ao Sul de Goiânia, aquela ao Oeste havia mudado muito pouco. Uma das poucas mudanças em quase 40 anos foi a duplicação da BR-060, imponente trevo e viaduto e a proliferação de loteamentos periféricos. Aquele núcleo urbano original, no entanto, parece que “sobreviveu” ao tempo. A maior mudança não estava na aparência da cidade. Estava nos subterrâneos daqueles quintais, onde não havia mais bobos sendo escravizados. Numa das praças da cidade me deparo com senhores. Falar sobre os bobos ali é tabu. Era um sábado e não consegui contatar ninguém da prefeitura e saber sobre a assistência aos deficientes. Um dos senhores se arrisca a um comentário: “Tinham muita gente que pegava para criar”. Por telefone conversei na semana seguinte com a pessoa responsável pelo asilo local, o São Vicente de Paulo. “Nunca ouvi falar disso não”, afirmou.

‘Enigmas e silêncios’

Após o resumo de minhas experiências pessoais, passo a expor o trabalho da professora Marilucia Melo Meireles – “Os ‘bobos’ na tradição da cultura da Cidade de Goiás: enigmas e silêncios sobre um tipo característico de figura do povo”, sua tese de doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Há uma confluência entre nós. “Procurei um exemplo de estigma social que não correspondesse necessariamente à presença da marca da intolerância. Foi assim que me recordei da figura dos ‘bobos’ que conheci na infância e juventude. Personagens históricas, encontram‐se hoje em processo de desaparecimento. Essa marca da intolerância, neste caso, é insuficiente para explicar seu papel no cotidiano das relações sociais das pequenas cidades do interior do Estado de Goiás”, discorre ela na introdução de sua obra.

“O modo particular pelo qual as pessoas destas comunidades interagem com seus ‘bobos’ denota a presença de um leque de características sui generis, encobertas, ainda hoje, por enigmas e silêncios. Surpreendentemente, apesar de cantadas em verso e prosa, a cotidianidade das relações dos ‘bobos’ com seu entorno social não foi objeto de qualquer estudo mais acurado. Em minhas aproximações iniciais ao tema, visitei diversas destas pequenas cidades: Vianópolis, Luziânia, Pirenópolis, Formosa, e até Goiânia, na tentativa de delinear um modo de investigação dessas figuras tão peculiares. Dada a necessidade de restringir o campo da investigação, a Cidade de Goiás e seus ‘bobos’, berço cultural do Estado, foi a escolha privilegiada para a realização de meu estudo a respeito das relações e das práticas de convivência  entre  a  comunidade  e  seus deficientes mentais, popularmente denominados de ‘bobos’. São personagens que estão ainda presentes na intimidade das famílias e nas praças públicas, fazem parte da cultura do Estado e, a meu ver, cobram, como um retorno do recalcado, seu legítimo espaço na investigação científica”, acrescenta.

E prossegue: “Acredito que esses costumes, desencadeados desde os tempos do desbravamento daquelas terras, comportam a demanda de desvelar a qualidade do elo social construído com os “bobos”, cujos resquícios se mantêm até hoje. Sem nenhuma intenção de se modificar, enquistados na tradição há alguns séculos, resistiram galhardamente à extinção pelos imperativos do progresso. Temo que seus enigmas e segredos seculares, se continuarem eternamente fechados no mutismo e na surdez da familiaridade doméstica, corram o risco de cair no esquecimento, perdendo o merecido e adequado lugar no reconhecimento histórico de um povo, no mapeamento de sua cultura, na explicitação de seus conflitos e de suas estruturas sociais”.

A elaboração acadêmico-científica da professora Marilucia me trouxe um aprofundamento neste contexto que vivenciei e deglutou ? ainda. “A complexidade que encontrei nas resistências e transformações das relações sociais, concomitante com o inesperado, o imprevisível e o surpreendente do desenvolvimento do processo civilizatório, lança outras indagações sobre o enraizamento social na produção dos modos de subjetivação”, escreve ela sobre a experiência na cidade de Goiás Velho, antiga capital do estado homônimo.

A professora explica, por exemplo, a definição dos ‘bobos de Goiás’ como uma “categoria de pessoas com deficiência mental de grau leve a muito elevado, algumas apresentando também lesões físicas, muitas surdas e mudas, outras com sequelas de bócio (grifo meu), em sua grande maioria de estatura baixa e, em geral, de vida longeva. Não são doidos varridos nem loucos de rua; tampouco doentes mentais. Insisto: são deficientes mentais”. O bócio: “distúrbio da glândula tireóide que se caracteriza por um aumento perceptível no tamanho desta glândula e se manifesta por inchaço na parte anterior e inferior do pescoço, formando o que popularmente é denominado de ‘papo’. Suas causas mais comuns são: escassez de iodo na dieta alimentar, doenças hereditárias decorrentes de defeitos na síntese de hormônios, proliferação de folículos da glândula e tumores benignos ou malignos”.

“bobos-ônibus”

A doutora Marilucia explica que os “bobos” emergem de uma extensa rede complementar de papéis, vivem na comunidade e estão inseridos, secularmente, na dramática e na imagética da cultura mais tradicional do Estado de Goiás. “Figurantes essenciais, participam do desenrolar dos argumentos familiares e públicos do cotidiano de suas cidades mais antigas, de grande importância histórica para o Estado, convivendo de maneira indiscriminada e naturalizada, em seu meio social”, escreve. “Trata‐se de um tipo de relação social que se apoia em elementos tipificados muito arraigados, legitimando‐se numa argumentação de natureza sócio‐religiosa, que será especificamente abordada em capítulos subsequentes”, acrescenta.

“Como já afirmei, escolhi a Cidade de Goiás como fulcro de minha investigação. É a guardiã das tradições mais genuínas e da própria história da formação do Estado.

Considerada como expressão maior de uma cultura que incorpora o estigma do ‘bobo’, utilizando‐se, inclusive, desta palavra em seu proseado íntimo e informal, rejeita, entretanto, com veemência, a mera referência a ela quando ouvida de um forasteiro.

Etimologicamente, a palavra bobo (baubus, em latim) quer dizer gago. Não raro foram as vezes que, frente à colocação do tema, ouvi um gaguejar em resposta. A autorização de uso da palavra ‘bobo’ define com clareza a fronteira entre os que pertencem e os que não pertencem à comunidade”, pontua a professora.

“Fortemente inseridos nessa cultura tão rica e peculiar, os ‘bobos da Cidade de Goiás’ têm uma especificidade ímpar, expressa na amplitude contraditória do estigma que carregam. Talvez, por isso mesmo, só possamos pensá‐los  na acepção  de uma ‘palavra‐ônibus’, e também de um papel‐ônibus, de um personagem‐ônibus, de um tema‐ônibus. Ser ‘bobo‐ônibus’ é ser um quase‐tudo e quase‐nada, baldeador de polivalência, polissemia, indiscriminação, caso típico de anomia em ato. Esta comunidade estabelece com o ‘bobo’ uma constante ambivalência. Ele, ao mesmo tempo, é defendido e atacado. Se vive na intimidade de uma família ou nas praças públicas, é e não é valorizado, é indispensável e, ao mesmo tempo, dispensável, é insubstituível, mas pode ser substituído. É objeto sexual, mas também objeto de repulsa e escárnio, é portador de afetos e violências, de trocas e exigências, de piedades e castigos. Quem é afinal esse ‘estranhado’ tão incorporado, mas que não pode ser tocado nem falado?”, indaga a professora.

E prossegue: “Por isso mesmo, também não foram os ‘bobos’ tema de discurso político propositivo, não transitaram para o espaço institucional, para eles não houve propostas e nem programas oficiais. Jamais a integridade pessoal de um ‘bobo’ foi protegida por qualquer denúncia formal de assédio. Os que restaram  permanecem  imersos,  ainda  e  sempre,  no anômico. Trata‐se de uma modalidade de interação estática, que não estabelece qualquer conversa com as outras transformações por que o mundo passa. Como psicanalista, foi o silêncio — explícito na recusa que a população manifesta em tratar do assunto — o aspecto que me capturou”.

“O que justificaria a discrição calada, compactuada pela comunidade, em relação a este tema? Essa sensação que nos passam de que ‘quem é de fora não pode entender o que se passa entre nós’? Seria uma forma sutil de elisão das manifestações mais corriqueiras de dominação‐submissão? Quais os diferentes códigos, seus repertórios e seus limites que autorizariam falar e não falar de ‘bobos’?”, questiona a professora Marilucia.

E complementa: “Esse silêncio toca uma diversidade de conteúdos e sentidos e abarca um conjunto variado de fenômenos relacionados às questões de aceitação e inclusão do outro nas relações de vínculos. Pede explicação para além do simples aprisionamento em estereótipos, talvez outros parâmetros para que os processos críticos desses acontecimentos sociais não fiquem retidos no certo ou no errado, no normal ou no patológico, no prezado e no desprezado, ou, pior ainda, no tolerado ou no intolerado”.

O silêncio, para o psicanalista, é profundamente ‘barulhento’, pois é aí que acontece o embate, uma tentativa de reflexão, de reconstrução psíquica, ou uma negação, um isolamento, momento propício da eclosão da angústia, tão necessária para a percepção e captação da externalidade e, consequentemente, do nosso lugar como protagonistas de um mundo em relação”. A tese da professora Marilucia Melo Meireles é uma pesquisa essencial para quem deseja conhecer os que ocorreu com esses seres humanos tão desumanizados na história de nosso país. Por limitação de espaço, me limitei à introdução da sua obra. Contudo, quem desejar aprofundar na leitura, segue abaixo o link para acessá-la na íntegra:

https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-14072010-191336/pt-br.php

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