Direitos Humanos e Covid-19

Por José Geraldo de Sousa Junior

DIREITOS HUMANOS E COVID-19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral. Prefácio de Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021,

https://www.editoradplacido.com.br/direitos-humanos-e-covid-19-grupos-sociais-vulnerabilizados-e-o-contexto-de-pandemia                   

             A obra já disponível na Editora terá lançamento virtual no dia 19/3, a partir das 14.30 hs, pelo Canal Youtube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com),           com uma programação que contará com os organizadores e autores e que poderá ser acompanhada no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=0j6-JRRBVFU .

          Com Prefácio de Boaventura de Sousa Santos – O coronavírus, nosso contemporâneoeste livro foi uma demanda direta do editor Plácido Arraes, mobilizado para oferecer uma leitura panorâmica mas crítica que abrangesse o campo interpretativo da pandemia e a afetação de grupos vulnerabilizados sob a perspectiva dos direitos humanos.

Assim é que nos convocou os organizadores da obra, todos editados pela D’Plácido portanto, sintonizados com os fundamentos editoriais do selo que fundou e que já ostenta um expressivo catálogo de referência sobretudo nos temas dos direitos humanos e das teorias de justiça e de sociedade.

            A resposta foi imediata, de autores e de autoras consagrados, nacionais e estrangeiros, e logo excedemos o volume razoável de textos, tanto que acumulamos material para um segundo volume, já programado pelo Editor para lançamento em março de 2022.

Além de nosso texto de organizadores, que abre o Sumário: A pandemia e o isolamento de direitos: uma análise a partir da perspectiva de O Direito Achado na Rua e se constitui, por seus fundamentos, fio condutor do rico material assim produzido, o livro se desdobra num arranjo muito sofisticado de temas que se prestaram a organizar as abordagens oferecidas pelos Autores e Autoras reunidos no livro: PARTE 1 – Aprender com o presente para disputar e construir o futuro; PARTE 2 – Direitos Humanos e Democracia: vida e subjetividade protagonista no contexto da pandemia; PARTE 3 – A Recusa da Vulnerabilização: ser sujeito e definir um futuro solidário; PARTE 4 – O Pós-Pandêmico e Direitos Humanos.

Compondo esse arco e distribuídos nas quatro partes do Sumário, o libro contêm os seguintes temas e respectivos Autores e Autoras:

El cinismo, el escepticismo y la tecnocracia frente a los derechos humanos en el contexto del Covid-19, de O Direito Achado na RuaDavid Sánchez Rubio; Não podemos lavar nossas mãos, de Manuel E. Gándara Carballido; A Covid-19 e os desafios para a sociologia, de Lourdes Maria Bandeira; Austeridade fiscal em tempos de coronavírus: reflexos da emenda constitucional do teto de gastos públicos no aumento das desigualdades educacionais no Brasil, de Claudiane Silva Carvalho Alexandre Bernardino Costa; Direitos humanos e democracia: os atalhos da pandemia da COVID-19, de Antonio Henrique Graciano Suxberger; Democracia adoecida: crise do tempo da Constituição e as promessas de justiça ameaçadas no Brasil, de Mauro Almeida Noleto; A oportunidade e o abismo: deslocamentos criminológicos em tempos de pandemia, de José Carlos Moreira da Silva Filho; Diálogo remoto no processo legislativo durante a pandemia e os riscos para as garantias trabalhistas, de Eneida Vinhaes Bello Dultra; Tempo, trabalho e sociedade ocidental: a esperança de reflexões pandêmicas, de Catherine Coutinho; Emergências em saúde pública, Covid-19 e justiça reprodutiva: o que deveríamos aprender com a epidemia de Zika para proteger mulheres e meninas, de Luciana Brito Gabriela Rondon; Acesso à justiça & Defensoria Pública na pandemia: entre os fatores de vulnerabilidade e os vulnerabilizados, de Edilson Santana Gonçalves Filho, Jorge Bheron Rocha Maurilio Casas Maia; Emergencia penitenciaria y emergencia sanitaria. Propuestas para mitigar las violaciones a derechos humanos en las cárceles argentinas, de Gabriel I. Anitua; Do açoite ao calabouço, da casa de correção à superlotação carcerária: revisitando o sistema punitivo brasileiro em tempos de Covid-19, de Eduardo Xavier Lemos; O direito humano à moradia no contexto da Covid-19: as disputas em torno da suspensão das remoções, de Adriana Nogueira Vieira Lima, Alex Ferreira Magalhães, Luciana Bedeschi Rosane Tierno; Quilombos e quilombismo: uma luta permanente, de Eduardo Fernandes de Araújo, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Givânia Maria Silva Vercilene Francisco Dias; Agência quilombola, racismo e covid-19: reoríentando a luta por direitos, de Rodrigo Portela Gomes; Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia, de Vanessa Ponte Fabrício Neves; O impacto da pandemia para mulheres em situação de violência doméstica e familiar no Distrito Federal: observações a partir de um projeto de extensão universitária, de Ela Wiecko V. de Castilho, Sônia Maria Alves da Costa Isabella Flávia Maia Coutinho; Pandemia, Legislativo brasileiro e o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres e meninas, de Fabiana Cristina Severi, Ana Carolina de Sá Juzo Inara Flora Cipriano Firmino;  A pandemica violação dos direitos humanos das mulheres e o contexto do Covid-19, de Lívia Gimenes Dias da Fonseca; Direitos Humanos LGBTI+: gênero e sexualidade em tempo de pandemia, de Luanna Marley; Reflexões sobre o futuro e sobre o direito no pós-Pandemia: uma perspectiva solidária aos povos indígenas, de José Geraldo de Sousa Junior Renata Carolina Corrêa Vieira.

            O texto dos organizadores, que abre o livro, está assim resumido: “a partir dos pressupostos teóricos de O Direito Achado na Rua e visualizando as mudanças drásticas de rotinas, vidas e relacionamentos, o texto procura situar o acesso à justiça em tempos de pandemia do Covid-19, problematizando uma situação de isolamento que é marcada pelas dessemelhanças estruturais, que fragiliza ainda mais os grupos socialmente. Compreender o acesso à justiça exige, com ainda maior força, visualizar para além da letra positivada e visualizar o não-dito, mas socialmente inegável, na busca de minorar a exclusão de direitos dos excluídos”.

            E ainda que se tenha, em tempos de pandemia, a rua sensivelmente esvaziada, já que são preenchidas, com todos os riscos e adversidades inerentes, pelos necessitados, precarizados, obrigados a se expor para garantir uma condição mínima para si e sua família, ao lado dos impertinentes negativistas, negadores e afrontadores, que amealharam uma discussão política mais profunda em um triste episódio de desrespeito à razoabilidade, sem qualquer empatia para os demais e, pior, sem qualquer estima por sua própria situação e das pessoas próximas a si.  Mas se a rua é esvaziada, de outro lado, esta rua indiscutivelmente irá adentrar nos lares e os locais, antes públicos, são publicizados por formas diversas, que acabam por ressignificar e reposicionar questões históricas e sentidos novos.

Mesmo nesse cenário, mostra-se pertinente a compreensão de que a “rua”, externa ou instrusivamente incluída, é ainda “o lugar simbólico do acontecimento, do protesto, do gesto paradigmático que, como divisa Marshal Berman, “transforma a multidão de solitários urbanos em povo e reivindica a rua da cidade para a vida humana”.

Nesta rua ressignificada, local propício para que sociabilidades reinventadas abram “a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participações democráticas”, tomando como protagonismo dos sujeitos para romper a as situações que os alienem ou coisifiquem, por isso que não se diz que são vulneráveis, mas vulnerabilizados, podendo representar-se em projetos de sociedade com possibilidades reais de emancipação.

Trata-se de confrontar e de superar destempos de nossa coexistência, atentos ao que, no prefácio, vislumbra Boaventura de Sousa Santos, acerca das implicações da contemporaneidade do vírus.

O coronavírus – ele diz –é nosso contemporâneo no sentido mais profundo do termo. Não o é apenas por ocorrer no mesmo tempo linear em que ocorrem as nossas vidas (simultaneidade). É nosso contemporâneo porque partilha connosco as contradições do nosso tempo, os passados que não passaram e os futuros que virão ou não. Isto não significa que viva o tempo presente do mesmo modo que nós. Há diferentes formas de ser contemporâneo. O camponês africano é contemporâneo do executivo do Banco Mundial que foi avaliar as condições de investimento internacional no seu território. Nos últimos 50 anos acumulou-se um repertório extremamente diverso de problematizações da noção de contemporaneidade. Muito diferentes entre si, todas essas noções têm vindo a questionar as conceções dominantes de progresso e de tempo linear herdadas do Iluminismo Europeu dos séculos XXVIII e XIX. Essas conceções buscavam reduzir a contemporaneidade ao que coincidia com o modo de pensar e de viver das classes dominantes europeias, tudo o resto sendo considerado resíduo ou lixo histórico.

            Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus. O modo como o vírus emerge, se difunde, nos ameaça e condiciona as nossas vidas é bem fruto do mesmo tempo que nos faz ser o que somos. Implica ter presente que, se nos quisermos ver livres do vírus, teremos de abandonar parte do que mais nos seduz no modo como vivemos”.

            É um alento dar-se conta que por toda parte começa-se a operar um movimento responsável para mudar o estado de coisas que produziu tamanho assombro nos sentidos de nossa existência. Noto com esperança que entre esses movimentos distinguidos ressoa muito convocatoriamente a voz do Papa Francisco, resoluta em vários pronunciamentos, exortações, encíclicas. Agora mesmo, enquanto escrevo, o Vaticano publica a sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2021 a ser celebrado em1º de janeiro de 2021.

          O Papa retoma o tema da pandemia para lembrar que “o ano de 2020 ficou marcado pela grande crise sanitária da Covid-19, que se transformou num fenómeno plurissectorial e global, agravando fortemente outras crises inter-relacionadas como a climática, alimentar, económica e migratória, e provocando grandes sofrimentos e incómodos. Penso, em primeiro lugar, naqueles que perderam um familiar ou uma pessoa querida, mas também em quem ficou sem trabalho. Lembro de modo especial os médicos, enfermeiras e enfermeiros, farmacêuticos, investigadores, voluntários, capelães e funcionários dos hospitais e centros de saúde, que se prodigalizaram – e continuam a fazê-lo – com grande fadiga e sacrifício, a ponto de alguns deles morrerem quando procuravam estar perto dos doentes a fim de aliviar os seus sofrimentos ou salvar-lhes a vida. Ao mesmo tempo que presto homenagem a estas pessoas, renovo o apelo aos responsáveis políticos e ao sector privado para que tomem as medidas adequadas a garantir o acesso às vacinas contra a Covid-19 e às tecnologias essenciais necessárias para dar assistência aos doentes e a todos aqueles que são mais pobres e mais frágeis. É doloroso constatar que, ao lado de numerosos testemunhos de caridade e solidariedade, infelizmente ganham novo impulso várias formas de nacionalismo, racismo, xenofobia e também guerras e conflitos que semeiam morte e destruição. Estes e outros acontecimentos, que marcaram o caminho da humanidade no ano de 2020, ensinam-nos a importância de cuidarmos uns dos outros e da criação a fim de se construir uma sociedade alicerçada em relações de fraternidade. Por isso, escolhi como tema desta mensagem «a cultura do cuidado como percurso de paz»; a cultura do cuidado para erradicar a cultura da indiferença, do descarte e do conflito, que hoje muitas vezes parece prevalecer”.

          Na contramão desses esforços, no Brasil, em meio à desorientação funcional e errática de autoridades das quais um mínimo de coordenação devesse ser esperada, concedendo que não se atenham a intenções dolosas, constatar a mobilizada resposta social de defesa sanitária e de respeito à cidadania, tal como tratei aqui neste espaço (https://estadodedireito.com.br/28656-2/).

Algo que ultrapassa “todos os limites” ao impulso da “estupidez assassina” que implica o próprio “presidente diante da pandemia de coronavírus” ao ponto de uma “irresponsabilidade delinquente”, que sequer finge “capacidade e maturidade para liderar a nação de 212 milhões de habitantes num momento dramático da sua trajetória coletiva”. É o que diz em editorial o Jornal Folha de São Paulo (O que Pensa a Folha, 12/12/2020), ao apostrofar: “Chega de molecagens com a vacina!”.

          Com mais de 180 mil pessoas que já morreram de Covid-19 no Brasil pela contagem dos estados, subestimada e com a epidemia voltando a sair do controle, o jornal considera “o presidente da República, sabotador de primeira hora das medidas sanitárias exigidas e principal responsável por esse conjunto de desgraças”, largando a população “abandonada pelo governo federal”, em “descaso homicida!”.

          Por isso começam as mobilizações da Sociedade Civil, tal como a campanha Vacinas Já!, lançada nesse 10 de dezembro (dia universal dos direitos humanos), pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo  exatamente “pelo direito de todo ser humano à vacina gratuita contra o Covid-19”,  chamando o País a se unir “para assegurar o direito humano à vida , garantido pelo art. 5o da Constituição Federal”, pois “a vida de todo ser humano importa”. Além de um amplo registro de muitas iniciativas, no nível local de governança (prefeituras), ou regional (Consórcio Nordeste) ou ainda de organizações sociais do campo (MST), indígenas e pastorais, oferecendo respostas à crise que não encontram correspondência no plano nacional.

Assim, é com o valioso respeito e consideração ao acumulado democrático de políticas públicas e sociais, sobretudo na área de saúde, que desde a Constituição de 1988 foi considerada direito de todos e dever do Estado, por meio de um sistema único de atenção universal mantida pelo orçamento público.

Ainda bem que se assiste nessa quadra de desconstrução de políticas, o engajamento para a defesa desse modelo de atenção, não só por meio de atuação de defesa do sistema público de saúde e de seu principal instrumento o SUS, como acontece agora com a Campanha O Brasil Precisa do SUS. Soa como uma canção ouvir Caetano Veloso entoar que no “Brasil tão desigual precisamos defender o SUS como nossa maior política pública social”.

O nosso editor Plácido Arraes, por isso mesmo, já solicitou aos Organizadores da obra um outro volume centrado exatamente na identificação dessas respostas, sua exemplaridade, sua extensão solidária, seu horizonte de possibilidades para novos sentidos sociais e para novos futuros possíveis.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

* Publicado originalmente no site Estado de Direito

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