A Atuação das Defensorias Públicas e das Ouvidorias Externas no Fortalecimento da Democracia Participativa

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

Com o tema “Direitos Humanos e Movimentos Sociais: A Atuação das Defensorias Públicas e das Ouvidorias Externas no Fortalecimento da Democracia Participativa”, aconteceu em Florianópolis a 2ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas. O encontro pretendeu estabelecer diálogo com especialistas e defensores dos direitos humanos para debater e promover a democracia participativa.

Participei do evento a convite da organização (Maria Aparecida LuccaCaovilla – Ouvidora-Geral Externa da DPESC e Vice-Presidenta do CNODP-Conselho Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas). O meu tema para o painel AS DEFENSORIAS PÚBLICAS BRASILEIRAS NA EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, compartilhado com o Professor Me. Willian Fernandes, o Secretário Executivo do Ministério da Justiça Marivaldo Pereira, a Presidenta do Conselho Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas Norma Miranda Barbosa, sob a mediação da Ouvidora – Geral da Bahia Naira Gomes

Certamente não é uma coincidência essa reunião no Conselho Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas se dá em seguida ao19 de maio, quando se celebra o Dia Nacional da Defensoria Pública, uma data que marca não apenas a criação dessa instituição fundamental, mas também a consolidação de um dos maiores pilares da nossa democracia: o acesso à justiça para todos os brasileiros.

A Defensoria Pública é fruto da luta incansável da sociedade civil e dos movimentos sociais por uma sociedade mais justa e igualitária. Sua criação, em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, representou um marco histórico na garantia dos direitos humanos e no fortalecimento do Estado Democrático de Direito em nosso país.

A Defensoria Pública é, portanto, uma conquista da democracia e da sociedade brasileira. E os defensores e defensoras, são verdadeiros agentes da transformação, em sua missão de defender os direitos dos vulnerabilizados, assim mesmo designados, ao invés de vulneráveis, já que não se trata de um destino mas de uma condição, quando confrontam pois, as desigualdades sociais e promovem a inclusão social. Ao lado da justiça social, garantem a voz daqueles que mais precisam seja ouvida e seus direitos sejam respeitados.

Estou muito de acordo com essa perspectiva, que encontro em posicionamentos de muitos defensores e daqueles, como a Ouvidora Maria Aparecida LuccaCaovilla e Rodrigo Medeiros, aqui também presente. Assim também me posicionei quando da edição do livro Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampim, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826.   Na nossa abordagem, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados para atender o plano da obra, que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico

No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos (https://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/).

Em perspectiva constitucional, a referência à Constituição de 1988 no Brasil tem o intuito de procurar inscrevê-la numa vertente inédita da abordagem constitucional, no âmbito teórico e no âmbito político, ao abrigo do que vem sendo denominado constitucionalismo latino-americano.

Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.

Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.

Relativamente à experiência brasileira a leitura de Raquel se vincula, pois, à perspectiva pois, do pluralismo jurídico, para tomar como medida caracterizadora o lugar dos povos originários e a consideração da natureza como base de reconhecimento de uma subjetividade constitucional inscrita em protagonismos e temas que ampliam os horizontes de interpretação e de realização das constituições.

É nesse quadro que procuro situar o que temos denominado constitucionalismo achado na rua (cf. Constitucionalismo Achado na Rua: uma Contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, volume 8, da Coleção Direito Vivo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2024), para caracterizar o caminho que a Teoria Constitucional percorre o caminho para retornar a sua função social, numa espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular, instituída pelo protagonismo democrático de sujeitos coletivos de direito inscritos nos movimentos sociais.

Com efeito, na CF/88, resultado desse processo, foram criados ou fortalecidos novos mecanismos de garantia de direitos e redesenhadas institucionalidades que prometiam um potencial democrático, como os conselhos gestores de políticas pública e a Defensoria Pública.

Quando analisamos o desenho institucional conferido à Defensoria, verificamos a presença de fortes elementos democratizantes, que aproximam a instituição e sua prática a esse subcampo político-jurídico. Presença esta que notamos desde a constitucionalização de sua função essencial à justiça, passando pela natureza dos direitos e sujeitos que tutela e serve, até alcançar a sua arquitetura institucional.

A Defensoria Pública é uma instituição que figura como um dos principais atores para o alargamento e a democratização do acesso à justiça no Brasil. Comumente associada ao exercício de uma de suas funções constitucionais, a saber, a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF/88, artigo 5º, inciso LXXIV) – ou, atualmente, na tutela de grupos socialmente vulneráveis –, suas funções institucionais não se reduzem à dimensão da assistência judicial, mas, antes, a projetam como ator qualificado para a democratização da justiça no Brasil.

Isso advém, também, do processo de institucionalização do órgão, que inova ao ser introduzido em texto constitucional – atuação de constituinte originário que, posteriormente, será agregada por diversos outros países latino-americanos  – como “verdadeiro modelo organizacional” a ser “assumido efetivamente pelo Estado”, prestigiando uma concepção ampla de acesso à justiça, que situa seus esforços na diminuição das desigualdades sociais, concretizadas em contundentes e rotineiras violações interpenetrantes de estruturas monetárias, raciais, sexuais, locais, identitárias, culturais, enfim, de um complexo de variantes discriminatórios que, na realidade fática, complexificam as dificuldades de efetivar acesso à proteção de direitos essenciais para o exercício básico da cidadania .

Nesse espaço sistêmico da Justiça, apenas a Defensoria Pública pensada nos termos da Constituição de 1988, é a instituição que mais avançou nessa direção, teórica, política e funcionalmente (https://brasilpopular.com/participacao-popular-consultiva-no-conselho-de-defensoria-publica/).

Em entrevista que concedi ao Boletim Forum DPU da Escola Superior da Defensoria Pública, visando a incutir esse fundamento na formação dos quadros da instituição, como projeto e como programa, acentuei esse carisma (Defensoria Pública e Acesso à Justiça – Forum DPU V.3 N.11 ISSN: 2526-9828 Ano: 2017 – https://www.dpu.def.br/enadpu/forumdpu/edicao-11)

À pergunta sobre o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do acesso à justiça e quais os principais desafios a serem enfrentados pela DPU para a concretização deste potencial? Respondi não ser por acaso que, nas mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o caso da Defensoria de Sâo Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida Lauris dos Santos, defendida em Coimbra (tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013 ”.

Logo, na sequência, a questão sobre o potencial do processo de coletivização judicial para a garantia do acesso à justiça e quais riscos este processo pode apresentar? Minha resposta: já não se trata de potencial, mas de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não diretamente parte em causas (amicuscuriae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e informada, expertises sociais etc). Ou ainda a orientação para rejeitar a incriminação por desacato, delito previsto no artigo 331 do Código Penal, afronta o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ao impedir que o cidadão manifeste-se criticamente diante de ações e atitudes dos funcionários públicos, no exercício de sua função, recomendado que Defensores Públicos sustentem a absolvição do indivíduo, no bojo das ações judiciais, utilizando como instrumento o controle de convencionalidade. Em estudo sobre essa incidência (CONTROLE DIFUSO DE CONVENCIONALIDADE: CASOS DE ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, de Maria do Carmo Goulart Martins Setenta, Defensora Pública Federal em Salvador/BA, R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n.14 p. 1-310 Jul/Dez . 2020), constata-se a aplicação do mecanismo do controle de convencionalidade como instrumento para a tutela dos direitos humanos, seja perante o Sistema Interamericano ou perante os Tribunais pátrios, porquanto se caracteriza em nova doutrina que prestigia os direitos humanos e promove uma interlocução entre o Direito Interno e o Direito Internacional.

Considero que a institucionalização das ouvidorias externas no corpo das defensorias é uma resposta contundente na direção da democratização do acesso à justiça e do debate que não pode ficar restrito corporativamente aos juristas. Por isso deve ser saudada a Lei Federal de 2009 que determina este formato de Ouvidoria Externa de Defensoria, mas só 17 das 27 defensorias cumprem a lei, que são: Acre, Rondônia, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Mato Grosso, Distrito Federal, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Por isso é notável a iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, por promoção de sua Ouvidora Externa Marina Ramos Dermann – (o Ouvidor atual Rodrigo de Medeiros, originado dos quadros da advocacia popular de movimentos sociais, foi nomeado depois de escrutínio do Conselho do órgão, avalisadopornota de apoio de 155 professores/as e acadêmicos/as de todo o país, carta de apoio de movimentos e entidades com 183 movimentos/entidades sendo mais de 120 do RS https://mst.org.br/wp-content/uploads/2023/03/Carta-Aberta-Apoio-a-Rodrigo-de-Medeiros-Para-Ouvidoria-da-DPE_RS-3.pdf, traduzindo a melhor forma de corresponder a um dever funcional tão democraticamente legitimado) – de constituição de um Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, como já realizado por outras Defensorias Públicas no País (SP, PR, BA e AC) e Defensoria Pública da União.

Do que se trata, em suma, é tornar possível a aproximação do direito à realidade social, proporcionando o apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e de conscientização. A aposta ultrapassa aspectos formais, do repertório jurídico tradicional e tenta compreender a realidade diante de sua complexidade, buscando, assim, ofertar respostas também complexas e abrangentes.

Essa a razão pela qual – https://brasilpopular.com/1o-forum-de-ouvidores-das-americas-democracia-e-inclusao-social/ – durante o 1º Fórum de Ouvidores das Américas – “Democracia e Inclusão Social”, Organizado pela Ouvidoria-Geral do MDS, a preocupação foi a de promover a discussão sobre o papel das ouvidorias na promoção da democracia e inclusão social nas Américas, além de ser um espaço para compartilhar boas práticas, experiências e desafios enfrentados pelas ouvidorias da região. O Fórum também serviu para estimular o diálogo entre ouvidores, autoridades, sociedade civil e demais interessados, além de proporcionar oportunidades de aprendizado e networking. “Esse encontro reflete todo o espírito do nosso governo, que é o espírito de democracia, de transparência, de permitir que o nosso povo possa viver a plenitude de todos os aspectos da vida. A ouvidoria é um instrumento capaz de nos levar nesta direção”, apontou Osmar Júnior, secretário-executivo do MDS.

Para mim, uma nora de relevo nesse evento, deveu-se a manifestação do presidente do Conselho Nacional de Ouvidoria das Defensorias do Brasil, Guilherme Pimentel, que ressaltou a importância da participação dos movimentos sociais e da sociedade civil para a melhoria da qualidade do serviço público. “A sociedade civil e os movimentos sociais têm conhecimento da realidade, mas não têm estrutura para dar conta do atendimento em massa. Não há como se falar de inclusão social e democracia num país continental como o Brasil sem defender o serviço público”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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