“Brasília, território de quem e pra quem?”

Por Bertha Brandão

Brasília é frequentemente cenário de diversas manifestações, como a que ocorreu em 7 de junho de 2023. Na ocasião, a capital federal foi um dos palcos de uma expressiva mobilização nacional contra o Marco Temporal, tese sob análise do Supremo Tribunal Federal (STF) e que suscitou questões cruciais sobre os direitos dos povos indígenas e a defesa de seus territórios ancestrais. Indígenas de diferentes povos e regiões do país se reuniram na capital para protestar contra o Marco Temporal, uma tese e interpretação jurídica que coloca em risco a demarcação das terras e os direitos dos povos indígenas, pois sustenta que apenas as comunidades indígenas que estavam com seus territórios ocupados até 5 de outubro de 1988 podem reivindicar a demarcação.

FOTO por BERTHA BRANDÃO, Manifestação contra o Marco Temporal, STF, 7 de junho de 2023.

Essas manifestações não se limitaram a Brasília, estendendo-se por todo Brasil.[1] Esse contexto levanta questões sobre a justiça e a temporalidade, instigando à reflexão sobre como conciliar as demandas dos povos indígenas com as perspectivas jurídicas vigentes. A pergunta “Brasília, território de quem?” adquire maior relevância, conduzindo-nos à reflexão sobre os povos indígenas que buscam o reconhecimento de seus direitos originários sobre os territórios que ancestralmente ocupam, lutando pela preservação de suas culturas e modos de vida.

Considerando a hipótese de que Brasília não é apenas o epicentro do poder político e de decisões do Brasil – com sua arquitetura modernista e por vezes austera -, mas também um território intrinsecamente vinculado aos povos indígenas, torna-se evidente o fato de que suas reivindicações e lutas ecoam nos corredores desse espaço, principalmente nos corredores dos “poderes”. Analisando o território candango, percebemos que a cidade não se resume ao visionário sonho de Dom Bosco; ela é o epicentro de diversas pautas, incluindo a defesa dos direitos dos povos originários.

Ailton Krenak[2], uma das vozes indígenas de maior visibilidade na atualidade, destacou em entrevista concedida em 2014[3] que o surgimento de novas identidades dentro das comunidades tradicionais desempenhou um papel crucial na obtenção de reconhecimento social. Para grupos como os povos indígenas, que deixaram de ser percebidos como minorias para se tornarem uma considerável maioria, a visibilidade “é uma espécie de garantia de sobrevivência”.[4] Essa visibilidade encontra em Brasília, além de seu simbolismo político, um ponto focal para amplificar as vozes e as demandas de grupos ainda marginalizados.

Diante dessa perspectiva, outra indagação pertinente seria: como a visibilidade pode ser uma ferramenta de resistência e preservação de identidades culturais em sociedade, especialmente, para grupos historicamente marginalizados? Krenak argumenta que, ao debater a presença dos povos indígenas no século XXI, é fundamental reconhecer que eles estão integrados em diversas esferas sociais, tornando-os mais evidentes. Ele destaca que “ser índio deixou de ser sinônimo de escondido no mato”[5], ressaltando que, tanto para aqueles que residem em áreas urbanas quanto para aqueles que vivem em locais considerados “remotos”, a visibilidade é maior quando associada a situações de perigo e fragilidade.

Essa mobilização e outras que ocorreram em 2023, evidenciam a necessidade de um olhar atento para a diversidade e as desigualdades presentes em Brasília. Enquanto a cidade se destaca por sua arquitetura modernista e seus prédios governamentais altivos, existem realidades invisibilizadas e marginalizadas, não só nas Regiões Administrativas (RAs) do Distrito Federal e seu entorno, como por todo Brasil, incluindo a situação de múltiplos povos e comunidades indígenas que enfrentam constantes ameaças e violações de seus direitos.

FOTO por RAFAEL HOLANDA BARROSO (Acampamento Terra Livre – ATL).

Sob um olhar mais filosófico a presença dos indígenas em Brasília nos convida a refletir sobre a ideia de pertencimento e de quem tem o direito de ocupar e usufruir das terras brasileiras. Segundo o pensador Ailton Krenak, “não somos herdeiros de uma terra, somos filhos da terra”. Essa visão nos instiga a repensar a relação entre sociedade e natureza, reconhecendo a interdependência entre todos os seres e a necessidade de respeitar os saberes ancestrais e a conexão com a terra.

A manifestação ocorrida em Brasília, no dia 07 de junho e outras de 2023, ressaltam a importância de se construir políticas públicas que garantam a proteção e o respeito aos direitos dos povos indígenas. É fundamental que o poder público esteja atento às demandas dessas comunidades, ouvindo suas vozes e reconhecendo sua expertise na preservação ambiental.

Brasília é uma cidade que abarca múltiplas histórias, identidades e lutas. Ela é terra de todas as brasileiras e todos os brasileiros, que têm o direito de manifestar, pleitear, ocupar e resistir.

Bertha Brandão

Licenciada em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB) e atualmente cursando Direito, dedica-se à atuação em prol da defesa dos Direitos Humanos.


[1] https://www.brasildefato.com.br/2023/06/07/protestos-de-indigenas-se-espalham-pelo-pais-em-dia-de-analise-do-marco-temporal-pelo-stf

[2]Ailton Krenak, nascido em 1953, nasceu no cenário do vale do Rio Doce, território ancestral do povo Krenak, um local cujo ecossistema foi profundamente impactado pela exploração de minerais. Como um ativista engajado na causa socioambiental e na defesa dos direitos dos povos indígenas, ele foi o idealizador da Aliança dos Povos da Floresta, uma coalizão que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na região da Amazônia. Figura proeminente no movimento que floresceu durante o grande despertar das comunidades indígenas no Brasil, ocorrido a partir dos anos 1970, Ailton também teve um papel fundamental na formação da União das Nações Indígenas (UNI). Sua atuação abrange um extenso trabalho nos campos educacional e ambiental, que incluiu a atuação como jornalista e a participação em programas de televisão e vídeo. Ao longo das décadas de 1970 e 1980, sua luta foi crucial para avanços da luta indígena na Constituição de 1988, que estabeleceu, ao menos formalmente, os direitos indígenas.

[3] Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/202285/188579> Acesso em 27 de jan. 2024.

[4] https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/202285/188579. Acesso em 27 de jan. de 2024.

[5] https://www.scielo.br/j/ra/a/x4tv5KtrkT6jSGWKnCLQSpB/?lang=pt. Acesso em 27 de jan. de 2024.

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