Por Vital Alves
Democracia em preto e branco (2014), documentário dirigido por Pedro Asbeg, registra uma fase fundamental do processo de luta pela redemocratização no Brasil. Narrado pela cantora Rita Lee, o filme tem por tema um movimento histórico e inovador no esporte brasileiro, nascido no Clube de Futebol Corinthians e liderado por jogadores como Sócrates, Wladimir e Casagrande. Tal movimento contribuiu para o aumento e a intensificação do clamor popular, principalmente, por eleições livres, garantia de liberdades individuais e o fim da censura. Liderado por esse trio de jogadores, no início da década de 1980, instaurou-se no Timão um processo democrático em que todos os jogadores participavam ativamente das decisões internas do clube, algo extremamente progressista para a época.
Naquela conjuntura, Sócrates, Wladimir e Casagrande praticamente assumiram o papel de porta-vozes dos desejos de uma geração asfixiada pela Ditadura civil-militar. Mas o sistema democrático inaugurado no Corinthians não se restringiu à luta pela redemocratização; no campo de futebol, o Timão conquistou importantes glórias como o bicampeonato paulista (1982 e 1983) derrotando o arquirrival São Paulo por dois anos seguidos. Ao mesmo tempo em que enfatiza a instauração da “Democracia corintiana” e sua expansão para o ambiente político brasileiro, o documentário também oferece pinceladas sobre como o surgimento do Rock Nacional dos anos 80 teve um importante papel no referido contexto político, mediante uma linguagem jovem, direta e urbana. Bandas como Barão Vermelho, Ira!, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Plebe Rude, RPM e Titãs, para citar as mais populares, traduziam para as letras de suas músicas os anseios e angústias de uma geração nascida e criada durante os repressivos anos da Ditadura civil-militar, servindo também dessa forma como porta-vozes daquela geração.
Política, Futebol e Rock se entrelaçam nesse interessante documentário que concede um panorama dos anseios brasileiros por mudanças na estrutura política e culmina na arrebatadora campanha pelas Diretas Já e no amargo sentimento de frustração do povo brasileiro com a rejeição da emenda das Diretas Já. Essa frustração é seguida por dois capítulos decisivos para a consolidação da redemocratização: a aprovação da Constituição Brasileira de 1988 (conhecida como Constituição Cidadã) e a eleição presidencial de 1989, na qual finalmente o povo pôde escolher, diretamente pelo voto, o presidente da República.
A nova Democracia brasileira firmava sua base sob um conjunto de leis estruturantes e objetivos a serem alcançados, enquanto o povo obtinha uma série de direitos civis, liberdades e garantias. Na sequência, novos desafios e capítulos de sua história foram escritos, respeitando as regras do jogo político democrático. Entretanto, os capítulos mais recentes da história da Democracia brasileira vêm oferecendo diversas provações que testam a capacidade das suas instituições em lidar com problemas complexos e questões que embora exijam ações pragmáticas levam certo tempo para serem interpretadas e compreendidas.
Dois exemplos recentes da história da Democracia brasileira que ilustram essas provações e presumivelmente encontram-se concatenadas são os seguintes: “As Jornadas de Junho de 2013” e “Os violentos atentados golpistas contra as sedes dos três poderes da república no dia 08 de janeiro de 2023”. Esses dois episódios, sem sombra de dúvidas, ainda estão sujeitos a análises e abertos a hipóteses. Contudo, já se pode inferir que a vertente política que mais se fortaleceu a partir do cenário de 2013 acha-se vinculada aos “violentos atentados golpistas de 08 de janeiro de 2023”.
Deflagrada pelo Movimento Passe Livre em São Paulo no início de junho de 2013, “As Jornadas de Junho” eclodiram como uma manifestação contra o aumento de 20 centavos nas tarifas de ônibus, metrô e trens. A mobilização foi repreendida com violência policial contra jornalistas e manifestantes. Iniciado com essa pauta, rapidamente o movimento se expandiu por diversas cidades brasileiras com inúmeras mobilizações de massa sucedidas simultaneamente. Observando o ponto de partida de “junho de 2013” e o que se sucedeu em termos de manifestações, nota-se que em um primeiro momento a agenda preliminar se estendeu para todo o país como uma reivindicação por um transporte público de qualidade, porém, paralelamente, outras pautas defendidas por movimentos sociais entraram no roteiro das manifestações: críticas à violência policial, defesa por mais investimentos em serviços públicos (especialmente educação e saúde) e críticas veementes ao sistema político representativo.
Essas pautas que inicialmente compunham uma agenda de viés progressista e nitidamente identificada com o campo político da esquerda, sendo encabeçada, em especial, por jovens, estudantes, negros, mulheres, movimento LGBTQIA+ e trabalhadores, foram perdendo espaço na medida em que outras manifestações foram se disseminando. Em seu lugar, viu-se o advento do que se convencionou chamar de “pautas difusas” e a inclusão de slogans como “o gigante acordou” erguidos por pessoas vestidas com a camisa da CBF – Confederação Brasileira de Futebol (entidade marcada por uma série de escândalos relacionados à corrupção), e que contraditoriamente defendiam o combate à corrupção.
Assim parece que a agenda exordial, cimentada em questões sociais e à esquerda, foi sendo substituída ou aniquilada por uma agenda do campo político ligado à direita, mas não propriamente uma direita democrática e liberal como a conhecida desde a redemocratização. Essa substituição de agenda abriu terreno para o aparecimento organizado de movimentos como o “Vem Pra Rua” e o “MBL” no ano seguinte, 2014, e o aparecimento de uma direita que preliminarmente se apresentava como “conservadora e liberal” (algo no mínimo paradoxal se examinarmos a acepção desses termos e a atuação incompatível dessas ideologias políticas ao longo da história) e que com o tempo se revelou como uma “extrema-direita”. Ocorre que o alvorecer desse extremismo de direita já vinha sendo germinado nas Redes Sociais alguns anos antes de “junho de 2013”. A “nova” cara da direita brasileira era carregada de velhas agendas políticas que muitos julgavam sepultadas, porém, infelizmente permaneciam vivas na alma de parte da sociedade brasileira. Essa “nova direita” (sempre vestida de “verde e amarelo” e ostentando a bandeira do Brasil) aglutinava, entre outras forças, forças políticas reacionárias e nostálgicas do sombrio período da Ditadura civil-militar.
Faz-se necessário então perguntar: quais outros acontecimentos políticos relevantes após “As Jornadas de Junho de 2013” podem ter contribuído de alguma forma para “os violentos atentados golpistas contra as sedes dos três poderes da república no dia 08 de janeiro de 2023”? Provavelmente alguns episódios que vieram na sequência das “jornadas” merecem realce; destacam-se três em especial:
O primeiro, remete às eleições de 2014. Naquele momento, “a nova direita”, talvez pela ausência de uma liderança ou devido à incerteza em torno de uma figura política que captasse e representasse seus desejos de maneira ampla, depositou todas as suas fichas na candidatura do tucano Aécio Neves, que, derrotado nas eleições, prometeu fazer uma oposição “incansável e intransigente” ao segundo mandato do governo Dilma Rousseff. A vitória de Dilma foi apertada, evidenciando-se ao longo do processo eleitoral a existência de uma profunda divisão na sociedade brasileira.
O segundo, o golpe de 2016, fantasiado de impeachment e que conduziu Michel Temer ao posto de presidente da república, sendo que com ele foi instaurada uma selvagem agenda econômica neoliberal que por meio do plano “Ponte para o futuro” suscitou um desmonte do Estado social que vinha se consolidando e que produziu: pobreza, aprofundamento das desigualdades sociais, aumento do desemprego, início de um desmantelo do modelo de Ensino médio vigente até então e fomento da precarização das universidades públicas.
O terceiro, a prisão do ex-presidente Lula (a partir de um processo eivado e parcial) no início de 2018, líder nas pesquisas de intenção de voto e a definição por sua inelegibilidade.
Tais acontecimentos tiveram uma importância decisiva para o que testemunhamos no cenário político brasileiro logo na sequência. Estava aberto o espaço político para a conquista do poder pela extrema-direita brasileira e ela já havia escolhido o seu líder: o deputado federal do baixo clero, Jair Bolsonaro, que estava no seu sétimo mandato e havia homenageado o Coronel Ustra (um torturador sádico e cruel que serviu à Ditadura civil-militar) no dia da votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
Se, por um lado, Bolsonaro era desconhecido por uma parte significativa da população brasileira e alguns setores mais intelectualizados da sociedade o desdenhavam por suas falas grotescas e suas fanfarronices, por outro, o então deputado tinha lugar cativo em programas televisivos de qualidade duvidosa e aproveitava a visibilidade que lhe davam para difundir suas opiniões controversas e bizarras, sobretudo em relação à pauta dos costumes. Ao mesmo tempo, essas opiniões eram disseminadas constantemente nas Redes Sociais, tornando Bolsonaro uma figura proeminente. Até aquele momento, o espectro político da extrema-direita dominava quase que inteiramente as Redes sociais no Brasil, tendo uma capacidade excepcional de empregar tal recurso tecnológico para propagar seu extremismo político. Adquirindo cada vez mais evidência à custa desses programas de televisão e, em especial, das Redes Sociais, Bolsonaro foi conquistando a identificação de parte da população brasileira e assim se tornou um político bastante popular.
Eleito presidente em 2018, conforme foi amplamente divulgado pela grande imprensa, durante todo o período de Bolsonaro (os dados encontram-se registrados em diversas mídias, podendo sua veracidade ser analisada pelo leitor), podemos constatar, em síntese que: o mandatário do poder executivo expressou uma espantosa falta de lisura e decoro em relação ao cargo público que ocupava. Não disfarçou também sua postura autoritária como alguns jornalistas e cientistas políticos acreditavam que iria acontecer a partir do momento em que começasse a exercer o cargo de presidente. Ao contrário, sua conduta autoritária foi se tornando cada vez mais cristalina. A afirmação de tal postura podia ser atestada, em certo sentido, por meio de suas falas ríspidas contra jornalistas que lhe perguntassem algo que o desagradasse, no seu desdém pela cultura, na adoção de um comportamento negacionista relacionado à ciência, na ausência de empatia, na destilação de ressentimentos sociais e em uma estranha necessidade de autoafirmação da virilidade. E, em outro sentido, quiçá mais grave, na sua demonstração de desprezo pela Democracia, nos seus elogios deslavados ao período da Ditadura civil-militar, nos afagos portentosos às forças armadas e à polícia militar, no incentivo ao armamento da população, no enaltecimento a golpes de Estado, nas falácias proliferadas sobre a liberdade de expressão como se essa fosse uma espécie de “direito” de ofensa verbal, nas divulgações de Fake News, nas distorções emitidas a respeito dos Direitos Humanos, nas tensões alimentadas e protagonizadas com os outros dois poderes, principalmente, o judiciário, e, em sua constante atuação contra o sistema eleitoral.
Mesmo Bolsonaro tendo sido derrotado no pleito de 2022, em poucos dias o bolsonarismo iria demonstrar com clareza, mediante ações políticas violentas planejadas, financiadas e autoritárias, sua face mais truculenta e o seu poderio de destruição. Descontentes com o resultado das eleições, bolsonaristas acamparam em frente a diversos Quartéis-generais do Exército, com destaque para o QG de Brasília. O primeiro ato ocorreu no dia 12 de dezembro de 2022: a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal em Brasília, próxima do hotel onde o presidente eleito (Lula, que havia sido diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral horas antes) encontrava-se hospedado. Vestidos de “verde amarelo”. Defendendo a soltura de um de seus comparsas, os vândalos piromaníacos incendiaram ônibus e carros no Setor Hoteleiro Norte e no Eixo Monumental. No entanto, as pavorosas cenas que vimos naquele dia expressavam apenas a ponta do iceberg; a dimensão mais ampla e violenta do bolsonarismo seria vista, de fato, no abominável episódio do dia 8 de janeiro de 2023, quando arruaceiros e delinquentes invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal Federal, perpetrando atos terroristas e criminosos contra as sedes das instituições em nome de um Golpe de Estado que visava manter no poder o presidente (Bolsonaro) vencido democraticamente por Lula.
Ao que tudo indica, os acontecimentos políticos de “junho de 2013” e seus desdobramentos culminam nos lamentáveis atos de “janeiro de 2023”. 2013 foi o ano que fecundou “o ovo da serpente”, denominação aqui dada em referência ao filme do cineasta Ingmar Bergman que trata do embrião do nazismo na Alemanha, pois foi a partir desse ano que a extrema-direita atravessou a fronteira das Redes Sociais e desembarcou na realidade política brasileira. No espaço de dez anos – 2013-2023 -, viu-se no Brasil o surgimento de um perigoso extremismo de direita que ergue as cores “verde e amarelo” como se fossem realmente patriotas e não só exaltam o nefasto período da Ditadura civil-militar como têm nele uma espécie de parâmetro político e amiúde expressam o desejo de seu retorno. Se Bolsonaro perdeu o pleito, mediante eleições limpas e democráticas, a sua visão política autoritária – para infelicidade daqueles que zelam pelos valores democráticos e republicanos e têm apreço pelos Direitos Humanos – permanece viva e vem demonstrando uma força política significativa. Os simpatizantes e filiados às ideias autoritárias de tipificação fascista personificadas pelo bolsonarismo não ocupam espaços apenas em cargos políticos, mas estão presentes em vários lugares na sociedade civil, representando um risco real para a Democracia e o Estado de Direito.
Nesse sentido, as palavras finais do documentário Democracia em preto e branco, são bastante reveladoras: “da frustração das diretas para cá a Democracia brasileira se consolidou, mas o pior da Ditadura ainda sobrevive na alienação promovida pelo Estado e pela mídia e nos métodos brutais das policias militares. É preciso seguir lutando!”. A partir dessas palavras, pode-se conjecturar que alguns episódios da política contemporânea do Brasil, expostos anteriormente, confirmam a existência de um saudosismo relacionado aos funestos anos de Ditadura por uma fração da sociedade civil e, igualmente, é sabido o tratamento violento que a polícia militar costuma dar à população que reside em comunidades pobres e também a maneira diferenciada como trata manifestantes de esquerda e de direita.
Possivelmente, tais aspectos, comprovam a presença de um autoritarismo social e institucional em setores da sociedade brasileira. Somado a esse viés autoritário, é notório que o modelo de Democracia representativa liberal vigente passa por uma crise mundial (o Brasil é um exemplo dessa crise), na qual se vê o alargamento das desigualdades sociais e o crescente sentimento das pessoas de não se sentirem representadas politicamente, elementos que as conduzem a questionamentos acerca da viabilidade da Democracia no sentido de ser uma forma de governo capaz de solucionar problemas sociais e econômicos e ao aumento de uma descrença no modelo político atual. Esse cenário, marcado pela crise da Democracia, vem criando um terreno propício para a promoção de rupturas das democracias contemporâneas e a ascensão do autoritarismo. Ascensão que atualmente não ocorre por meio de rupturas violentas nos moldes de golpes militares como o de 64 no Brasil, mas por meio do desgaste gradativo e frequente de instituições como o judiciário e a imprensa e, da mesma forma, pela corrosão de diretrizes políticas longevas, como defendem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do livro Como as democracias morrem. Para aperfeiçoar a Democracia e torná-la hábil para solucionar a crise que a afeta, “é preciso seguir lutando! ”.