Anistia: por justiça de transição nem reversa, nem perversa

por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

Em recensão que fiz de trabalho de Thelma YanagisawaShimomura, Educação e justiça de transição na era digital: análise comparativa dos cursos à distância relacionados ao direito à memória e à verdade no Brasil (2015-2020), em Dissertação de Mestrado – Belo Horizonte, 2021, anotei uma conclusão interpelante da Autora no sentido de que “na atual conjuntura, o discurso da extrema-direita tem sido o de assumir os crimes de lesa-humanidade e o de criar para os violadores uma aura de heróis nacionais, além de construírem um discurso de passado idílico. Desta forma, altera-se o entendimento de que os crimes devem ser negados ou esquecidos para serem afirmados e exaltados. Vive-se, no tempo presente, as consequências de uma justiça transicional incompleta, na qual prevaleceu a impunidade dos crimes cometidos.  A educação e a Justiça de Transição, como política de Estado, iniciaram sua jornada na modalidade virtual e estão ainda em estágio inicial. Têm sido aprimoradas com a experiência de instituições que abordavam esta temática em cursos presenciais e necessitam de expansão e fortalecimento em todos os meios”.

Nos quatro de governança, animada por esse discurso, pode-se aferir a ação de governo, direcionada ao apagamento de registros dessa realidade sombria. Registro matéria com o título “Servidores denunciam o descarte de documentos sobre a ditadura. A ameaça estende-se a dados financeiros que nem sequer foram analisados pelo TCU” – https://www.cartacapital.com.br/politica/servidores-denunciam-o-descarte-de-documentos-sobre-a-ditadura/, a Carta Capital publicou matéria denúncia sobre o assunto: “Não é só de fakenews nas redes sociais que vive a desinformação propagada pelo governo federal. Internamente, um insidioso processo de apagamento da memória nacional espalha-se por instituições responsáveis pela análise e guarda de documentos histór… Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/politica/servidores-denunciam-o-descarte-de-documentos-sobre-a-ditadura/. O conteúdo de CartaCapital está protegido pela legislação brasileira sobre direito autoral. Essa defesa é necessária para manter o jornalismo corajoso e transparente de CartaCapital vivo e acessível a todos”.

Com essa preocupação, ainda mais acentuada em face de atitudes criminosas de censura e de silenciamento, abri uma discussão pública em minha Coluna no Jornal Brasil Popular conforme meu artigo Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. Censura e Silenciamento (https://www.brasilpopular.com/para-que-nao-se-esqueca-para-que-nunca-mais-aconteca-censura-e-silenciamento/).

Em que pese as hesitações e tibiezas das manifestações judiciais no Brasil,a ampla jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de memória, verdade e justiça, manifestadas em sentenças especificamente dirigidas ao Brasil (Caso Gomes Lund e Caso Vladimir Herzog), têm estabelecidoque as autoridades de todos os poderes do país devem a adotar medidas para garantir o direito à memória e à verdade.

Não se trata de disputar narrativas. De fato, além dessa disputa, o projeto derrotado nas eleições de outubro passado, desenvolveram toda uma estratégia de desarticulação da institucionalidade que dá sustentação às políticas de justiça e de transição. Seja, desconstituindo organismos, capturando a agenda dos que não logrou extinguir, insinuando mentalidades hostis ao tema na composição dos mecanismos de implementação dessas políticas e esvaziando orçamentariamente suas possibilidades de atuação.

Tenho sustentado esses mesmos fundamentos para afirmar o caráter cogente do direito à memória e à verdade e o conjunto de enunciados que formam o que atualmente se adensa como justiça de transição. Em texto publicado em 2008 –Memória e Verdade como Direitos Humanos (in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor), sintetizo esses enunciados e lembro Hanna Arendt para dizer com ela, que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”. Esse é o pressuposto que se faz núcleo da concepção de justiça de transição e que se projeta para o objetivo de que não se esqueça; para que nunca mais aconteça.

Em outro texto sobre esse tema (Revista do Sindjus • Fev-Mar/2010, ano XVIII, n. 64), anotei que a reivindicação de incluir uma Comissão de Verdade e Justiça, mesmo na forma atual de Comissão de Verdade, decorreu da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008 com caráter deliberativo. Decorre também da natureza cogente do direito internacional dos direitos humanos, expressa em decisões de tribunais internacionais que indicaram ao Brasil a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, para evitar repetições de ciclos de violência. E que essa reivindicação inscreve-se nos fundamentos do que se denomina justiça de transição, que pode ser definida como esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.

Por isso foi com enorme alento que acompanhei a iniciativa do ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania, assumir a organicidade da Comissão de Anistia, até então vinculada ao Ministério da Justiça, para fazê-lo recuperando esses fundamentos que simbolizam sua autenticidade teórica e política. De um lado validando pessoalmente a sua relevância institucional, conferindo aquela proximidade entre o dizer e o fazer que se materializam nas titularidades que os ativam, pluralizando as percepções pelas subjetividades protagonistas dos membros designados (pela primeira vez uma designação de membro indígena, considerando a estimativa de letalidade das comunidades e indivíduos atingidos ao limite do genocídio), e a sua necessária e pedagógica desmilitarização (pela primeira vez também, a representação do Ministério da Defesa recai sobre um civil, abandonando-se a escolha castrense da cadeira; quem sabe a exemplaridade de Pandiá Calógeras, o ministro da guerra civil que fez história no ministério incluindo criando as escolas de formação, oriente a nova representação).

E que ela não se deixe intimidar pela recrudescência do discurso da direita, antes difundida na esfera difusa da comunicação mas que já começa a ser vocalizada por parlamentares – deputados e senadores – que a representam e que buscam atenuar as práticas criminosas que em seu nome infligiram à República, suas Instituições e à Democracia, por meio de um golpe felizmente fracassado. Para esses não há anistia como pedem esses discursos cúmplices.

Sempre é bom lembrar a aula magna do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB, na qual o professor Paulo Sergio Pinheiro, que coordenou a Comissão de Memória e Verdade do Brasil (A Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão temporário criado pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014 (conheça o seu Relatório: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv), nos lembrou a todos e todas que a “vigência de um regime tendencialmente democratizante não é condição automática para o alastramento e consolidação de direitos” (veja a sua bela exposição em: https://www.youtube.com/watch?v=qon6RVukYjo). E confira a fidelidade ao que já dizia em 1987 (Dialética dos Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de – org, O Direito Achado na Rua. Curso de Extensão à Distância, Série O Direito Achado na Rua. Brasília: Editora UnB, 1987), salientando que “os direitos individuais somente podem prevalecer na medida direta em que foram reconhecidos como direitos sociais para todos os grupos marginalizados, mortificados e anulados na sociedade brasileira”.

Muito me anima que na sua forma atual tenha sido designada para presidir a Comissão de Anistia, a minha colega professora na Faculdade de Direito da UnB, Eneá de Stutz e Almeida, que já integrou a Comissão quando ela estava vinculada ao Ministério da Justiça. Porque desta e de outras questões candentes trata o livro que ela organizou – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).

O livro, dizem os organizadores “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. Analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.

Trata-se de repor a anistia no seu rumo de realização de fundamentos que permitam resgatar memória e não produzir esquecimento, para o nunca mais, e para pedagogicamente, reconstituir as instituições democráticas.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *