A efeméride do meu coração
Por José Reinaldo Carvalho (*)
Queridos leitores, camaradas e amigos,
Todos os dias às 7 da manhã, no exercício do meu mister de jornalista na TV 247, anuncio e comento uma efeméride. Num dia homenageio uma figura artística, noutro, um craque de futebol ou um protagonista de façanhas revolucionárias. Frequentemente evoco grandes acontecimentos históricos no Brasil e em terras distantes. Enalteço o bom combate por transformações políticas e sociais profundas, a luta pelo socialismo, os grandes enfrentamentos dos povos e o empenho pela solidariedade, o internacionalismo e a paz mundial.
Um hábito antigo, que herdei do Dom Norberto Sant´anna, Oblata de São Bento, prior do Mosteiro, professor de Português do antigo Ginásio, em cujas dependências e muros ainda hoje há marcas dos combates entre os primeiros brasileiros e os invasores holandeses.
O Ginásio funciona no interior do Mosteiro, onde a imponente igreja seiscentista domina o pequeno promontório a poucos metros do primeiro aldeamento em que Tomé de Souza fundou a gentil cidade de Salvador. Dali se avista a paradisíaca Baía de Todos os Santos (também dos Orixás). Ao longe, a Ilha de Itaparica, cenário das guerrilhas independentistas de 1822-1823.
O monge exigia aos alunos boa redação e gramática e valorizava os que carregavam no Latim com declinações escorreitas. Fazia parte da sua didática levar os alunos a compor dissertações e treinar retórica, exercícios nos quais interpretávamos acontecimentos relevantes, entre eles o assassinato de Kennedy e a rebelião de 68. Nos claustros do Mosteiro foram acolhidos e permaneceram escondidos militantes de esquerda perseguidos pela ditadura.
Por coincidência, herdei o hábito da evocação de efemérides também dos meus primeiros dirigentes clandestinos dos inícios dos anos 1970, que abriam reuniões de comunistas aludindo a datas históricas.
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Não poderia terminar o ano de 2022 sem registrar a mais importante efeméride de minha vida de militante comunista, combatente pelas mais elevadas e sagradas causas dos trabalhadores e do nosso grande e querido povo brasileiro. Não o fiz em tempo hábil, em meados do mês de outubro, porque encontrávamos todos imersos na mãe de todas as batalhas deste turbulento e também glorioso ano, que se encerra com uma vitória épica, a eleição do Presidente Lula, o maior líder popular da história do Brasil, que conquista seu terceiro mandato para restaurar a democracia, os direitos do povo e a soberania nacional, vilipendiados pela extrema direita que assaltou o poder no país na sequência do golpe de Estado de 2016.
É uma efeméride talvez irrelevante para o público, pelo que peço desculpas se o ocupo com algo que pareça tão pessoal. Mas é de fato a homenagem a uma causa, a uma luta e ao esforço de gerações pela construção de uma vanguarda revolucionária para a emancipação nacional e social do povo brasileiro.
Vamos a ela, a efeméride do meu coração. Há exatamente 50 anos ingressei nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Naquela ocasião, tomei um verso – “É preciso o Partido em tempestade” – de um poeta até hoje clandestino para mim, como um mandamento de vida. Como escrevi na epígrafe do livro “Comunistas no Brasil – 100 anos” (*), dedicado ao centenário de fundação do Partido, “o PCdoB é a minha alma mater”. Com efeito, é a minha universidade, a fonte do meu aprendizado, o lugar onde fiz meu batismo de fogo e prossegui em combates e batalhas pela realização dos mais elevados anseios da humanidade – a construção de uma sociedade próspera para todos, avançada, culta, progressista, harmônica e pacífica – o socialismo.
Com a ideia de que “é preciso o Partido em tempestade”, uma geração de jovens comunistas enfrentou a quase impossível tarefa – nas condições de dura clandestinidade, imposta por um regime de generais fascistas e facínoras – de construir política, ideológica e organicamente um partido comunista revolucionário, de classe e de combate.
Um documento do Comitê Central da época, contendo orientações táticas para enfrentar a ditadura, que acabara de entrar na sua fase terrorista, fazia-nos um veemente apelo: “Preparar o Partido para as grandes lutas”. E esta se tornou a ideia-força da minha vida, da nossa vida, dos da minha geração.
Centenas de nossos camaradas foram presos, torturados e assassinados. Destaco a saga heroica dos dirigentes mortos nos cárceres, os que caíram em combate ou em meio à realização de tarefas clandestinas. Maurício Grabois, Pedro Pomar, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, João Batista Drummond, Lincoln Oest, Lincoln Bicalho Roque, Osvaldão, Elenira e todos os jovens guerrilheiros do Araguaia. Presentes! À sua memória inclinamos nosso estandarte vermelho com a foice e o martelo e cerramos nossos punhos. Em seu nome, vale reafirmar que das nossas mãos esta bandeira jamais cairá.
Reverencio também a memória do camarada João Amazonas, que dirigiu a construção do Partido durante 40 anos. Até os últimos instantes de sua vida, fez-nos jurar – aos que então integrávamos o Secretariado Nacional do Comitê Central, quando tive a honra de ser Vice-Presidente do Partido e seu Secretário de Relações Internacionais – de dar continuidade à edificação do Partido e assegurar seu fortalecimento político, ideológico e organizativo, por cima de quaisquer circunstâncias.
Dizia o velho comunista que erros políticos passavam, mas desvios ideológicos não. Haveria momentos de orientações equivocadas no terreno tático, perfeitamente corrigíveis. Mas a renúncia aos princípios ideológicos seria fatal. O nosso compromisso foi de que nunca defraudaríamos. Os que assimilamos os seus ensinamentos renovamos hoje o juramento. Sempre teremos em conta a necessidade de lutar contra a traição aos interesses do povo, a renegação dos ideais socialistas, a renúncia à identidade comunista, o liquidacionismo orgânico, o oportunismo político e ideológico, a violação dos princípios e a deserção.
Não posso deixar de mencionar, ao rememorar os 50 anos atuando nas nas fileiras do Partido, os clássicos e continuadores do marxismo-leninismo, teoria sempre jovem e científica. Sem o estudo de Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao Tsetung, Dimitrov, Enver Hoxha, José Carlos Mariátegui, Fidel Castro, Antonio Gramsci, não teríamos apreendido os fundamentos da ideologia comunista. Devemos ter consciência de que o marxismo-leninismo se desenvolve, atualiza e aperfeiçoa imergindo-nos na ciência, assimilando conhecimentos, mas não somos revisionistas nem ecléticos.
Ao comemorar os 50 anos de militância no Partido, vem-me à lembrança o 8º Congresso de 1992, quando Amazonas enfrentou a crítica ao balanço que fazíamos sobre a contrarrevolução que levou de roldão o socialismo na União Soviética e no Leste Europeu. Havia uma pressão para que fôssemos “além” na avaliação e procedêssemos à maneira dos que aqui e alhures asseveraram que a experiência de construção do socialismo fora toda ela negativa ou que da Revolução de Outubro nascera uma “construção ambígua”.
Lembro-me também do 9º Congresso, em 1997, quando foi forte a pressão para que o PCdoB se tornasse um partido “moderno” e “renovado”. O João insistiu na inclusão do termo “de princípios”, para qualificar a “modernização” e a “renovação pretendidas.
Ocorre-me também a lembrança de alguns debates edificantes durante a primeira década do século 21 sobre a inclusão ou não do “marxismo-leninismo” nos preâmbulos dos nossos novos Programa e Estatutos e se deveríamos ou não manter a luta pelo “socialismo científico”, mencionando apenas vagamente o socialismo, contornando a definição dos marxistas históricos.
Nas condições peculiares de hoje, salta da memória e se escancara diante de nós como questão crucial o caminho a percorrer para a execução das tarefas programáticas. No Programa que aprovamos, primeiramente na 8ª Conferência Nacional (1995), depois no 9º Congresso (1997), chegamos a uma conclusão dialética. A luta pelo socialismo no Brasil percorreria um ínvio caminho, superaria encruzilhadas históricas por meio de lutas entrelaçadas pela democracia, a solução da questão social e a conquista da soberania nacional. Rejeitamos, depois de aturada reflexão e com conhecimento de causa, visões metafísicas que isolavam a luta política como se esta fosse reserva dos democratas liberais, a social como se fosse um tema privativo dos social-democratas e a questão nacional, que segundo uma visão distorcida, era um corolário do pensamento nacional-desenvolvimentista burguês. Defendemos que as bandeiras democrática, social e nacional se entrelaçavam e as lutas em torno delas formariam o caminho concreto da revolução brasileira e materializariam a palavra de ordem “Socialismo Já”, emanada do 8º Congresso (1992). Importante: essas lutas tinham por foco a ruptura com o sistema político, econômico e social das classes dominantes e visavam à conquista do poder político, caracterizado como uma República de Trabalhadores.
Esta é uma ocasião propícia também para destacar as datas que representam os grandes feitos da história dos comunistas no Brasil. O 25 de março de 1922 carrega o simbolismo da fundação. O 18 de fevereiro de 1962, o da ruptura com o oportunismo de direita e o liquidaicionismo ideológico e orgânico. A rigor, simboliza a refundação do Partido, a retomada de sua construção revolucionária, tarefa que continua na ordem do dia.
Ao rememorar o recrutamento nas fileiras do Partido há 50 anos, reflito sobre o presente. É mais atual do que nunca a tarefa de construir o sujeito político da luta pelo socialismo no Brasil, o grande exército político de massas da revolução brasileira, com os conteúdos e formas próprios da época presente. Na realização dessa tarefa devemos enraizar-nos nas massas populares, nas forças vivas da nação e manter frutífero diálogo e positiva interação com outras forças de esquerda que têm o socialismo como meta, convictos de que um partido comunista e revolucionário é um instrumento indispensável para os grandes combates do nosso tempo e a realização das grandes tarefas históricas.
Por óbvio, é uma construção coletiva, que não pode ser confundida com veleidades pessoais, aspirações estreitas, interesses carreiristas de pessoas e grupos. A ideia e a prática do Partido Comunista não começa nem termina na ocupação de cargos institucionais, ainda que isto possa ser útil na medida em que é um entre uma miríade de meios de acumulação de forças. Por esta razão, a adequação dos métodos para uma mais eficiente inserção nas batalhas eleitorais não pode ter como pressuposto a mudança da natureza, da essência, do caráter, da denominação e da simbologia do Partido.
São tantos e variados os embates políticos e teóricos em que nos envolvemos, os que pertencemos à geração atual de construtores do Partido Comunista do Brasil. Não deixa de causar-nos espécie a confusão semeada no enunciado de duas falsas questões: qual o lugar político do Partido Comunista do Brasil e para quê serve sua identidade cravada na missão histórica, em sua denominação e nos seus símbolos. É uma maneira cavilosa de induzir à renúncia do indeclinável papel e da identidade do Partido. O lugar político do PCdoB – e me perdoem pelo truísmo – é o de um partido de classe, revolucionário, que luta pelo socialismo no Brasil, com um programa adequado à realidade brasileira e consentâneo com as aspirações imediatas e de longo prazo do povo brasileiro. Este programa contempla as pequenas e grandes lutas do povo por seus direitos sociais e políticos, por justiça e bem-estar para o povo, por democracia, por direitos civis e humanos em sua plenitude, pela soberania nacional. Programa que tem por objetivo o socialismo, sempre levando em conta os embates cotidianos e objetivos parciais e imediatos conforme as questões colocadas na ordem do dia pela conjuntura em movimento, porque somos um partido vivo e atuamos no curso dos acontecimentos. Quanto à identidade, somos um Partido Comunista, com base teórica marxista-leninista, estruturação orgânica enraizada nas massas trabalhadoras e populares. Que sentido faz pôr isto em causa?
A vitória das forças progressistas nas eleições presidenciais de 2022 cria as condições para abrir um novo ciclo político progressista no país, com repercussão positiva inclusive sobre o quadro mundial marcado por instabilidade, turbulência e incerteza. Este novo ciclo pode ser mais favorecido pela existência de forças revolucionárias, como um Partido Comunista do Brasil forte, com influência política ampla, capacidade de intervenção política multilateral e multivetorial e de direção das lutas das massas trabalhadoras e populares. O período histórico atual requer a existência de um Partido Comunista do Brasil forte, capaz de fundir num crisol os três vetores principais da acumulação de forças – a luta política, a luta social e a luta teórica-ideológica, numa construção orgânica coletiva consistente. Isto só se faz com identidade comunista nítida, combinada com independência política, ideológica e orgânica. É falsa a visão de que o Partido Comunista tornou-se “irrelevante” politicamente e “inviável” eleitoralmente.
Comemorar 50 anos de militância contínua nas fileiras do PCdoB é renovar o compromisso de manter-se lado a lado com os militantes, quadros e dirigentes, aprendendo sempre e somando-me modestamente às tarefas correspondentes à defesa do Partido e ao avanço em sua construção em todos os terrenos.
Nestes tempos desafiadores, o Partido não pode prescindir de nenhum quadro ou militante. Não é uma boa prática censurar opiniões, vetar a publicação de artigos nas mídias partidárias. Isto não pune supostos infratores de alguma abstrusa norma, mas priva ao coletivo o acesso a textos úteis à boa informação e reflexão; pô-los à margem da vida partidária, excluí-los de eventos, comissões de trabalho, instâncias diretivas operacionais e ignorar sua presença nas estruturas orgânicas não os isola, mas subtrai força ao coletivo quando somos tão poucos; excluir da equipe de professores dos cursos quadros que em suas aulas sistematizam as lições da luta contra o revisionismo é relegar o coletivo à ignorância de conteúdos importantes da batalha das ideias; agir com métodos burocráticos, fazer propaganda de personalidades fúteis com elogios fáceis e despolitizados, ao mesmo tempo em que nas coxias se atacam supostos oponentes com base em desinformação são atos de intolerância.
Mas como diz o poeta, “gente é pra brilhar” e ao coletivo, em tempos obscuros não se pode negar sequer uma réstia de luz.
Lembremo-nos de que a refundação de 1962 foi também metodológica, anticaudilhesca, quando os chefetes dos finais dos anos 1950, usando como arma o prestígio adquirido em heroicas lutas, já não representavam o conjunto do Partido, mas um setor que na época era designado como “o pântano”, funcional à direita. A historiografia do Partido é farta de documentos a esse respeito. São até anedóticos os episódios nos quais os que se pretendiam luminares e portadores da verdade absoluta se converteram em estipendiários de algum setor da burguesia “nacional-desenvolvimentista”.
Ao contrário de tudo isso, é sempre útil ao Partido reverenciar a inteligência coletiva e se resguardar das falsas e efêmeras celebridades e de excêntricos modismos. Igualmente da soberba. O que distingue um partido revolucionário não é se sua direção comete ou não erros graves, se sofre ou não reveses eleitorais. Formada por seres humanos falíveis e vivendo em ambiente de extrema pressão e confusão política e ideológica, não é crime a direção cometer erros, tanto quanto não é nobre eximir-se da responsabilidade por decisões erradas que conduzem a derrotas. O traço distintivo é se o Partido e seus militantes, quadros e dirigentes mantêm a essência e o compromisso de vida com a causa que determinou sua existência. É isto que justifica que homens e mulheres permaneçam em suas fileiras dando o que têm de inteligência, capacidade de trabalho e experiência, por cima de quaisquer circunstâncias.
No outono da vida, ao celebrar o 50º aniversário do meu recrutamento nas fileiras do Partido Comunista do Brasil, seguirei dedicando o melhor das minhas forças à sua permanente construção como partido de vanguarda da revolução brasileira. Enquanto eu respirar.
(*) José Reinaldo Carvalho é membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do Partido Comunista do Brasil. É coordenador da área de Solidariedade e Paz. Nos primeiros anos de militância foi secretário político do Comitê Estudantil Universitaário na Bahia e membro do Comitê Municipal de Salvador. Representou o Partido na República Popular Socialista da Albânia, onde foi redator e locutor da Rádio Tirana, entre fevereiro de 1979 e março de 1982. Foi vice-presidente nacional do Partido entre os anos de 2001 e 2005 e membro do Secretariado Nacional de 1992 a 2017; Secretário de Relações Internacionais durante 25 anos; editor das publicações do Partido (jornal A Classe Operária, órgão central do PCdoB; Princípios, revista teórica, política e de informação e Portal Vermelho) e um dos fundadores da Escola de Formação Teórica do Partido (1983). Atuou também no antigo Instituto Maurício Grabois.
Publicado em Resistência