Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Cultura de Direitos & Cultura Democrática. Narrativas Críticas. Organização Carol Proner, Gisele Ricobom, Manuel Eugenio Gândara Carballido/ Vários Autores/ Curadoria Maria José H. Coelho. Rio de Janeiro: Instituto Joaquín Herrera Flores América Latina, 2022, 116 p.
Nos dias 17, 18 e 19 de outubro o Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina realizou o Seminário Cultura de Direitos e Cultura Democrática, evento presencial e gratuito, no Teatro Casa Grande, Leblon, Rio de Janeiro. O objetivo foi discutir os elementos constitutivos do ethos da cultura democrática no Brasil, apresentando temas transversais como sistema de justiça, literatura e linguagem, história do direito, constitucionalismo, racismo estrutural, direito à cidade e aos territórios.
Conforme o programa do Seminário, seu terceiro dia foi dedicado ao lançamento do livro “Cultura de Direitos e Cultura democrática – Narrativas Críticas”, uma iniciativa do Instituto Joaquín Herrera Flores – América Latina que reúne textos e imagens acerca dos direitos humanos no Brasil e no Rio de Janeiro e que é o tema deste Lido para Você.
A apresentação do livro foi feita pela diretora do IJHF-AL Maria José Coelho, também curadora da obra, que abrilhantou o evento com um belíssimo discurso, algo próximo a seu texto na edição da Revista. Em seguida o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva fez a palestra de encerramento, sobre “Desafios para uma cultura democrática”. Cunca também está presente na publicação com um texto eloquente Direitos Humanos na Transição Paradigmática: A multiplicação das Vozes. No Seminário, a palestra do professor do NEPP (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos)-DH/UFRJ, cuidou de um balanço dos dias dos seminários, articulando os discursos dos expositores com a análise da conjuntura política brasileira, agudizada pelas eleições à Presidência da República, mais que um processo eleitoral, algo que acelera as injunções das tensões paradigmáticas. Foi de Cunca Bocayuva também a exposição “Arte e resistência”, com desenhos de sua autoria.
Voltando ao Seminário, os Organizadores tiveram o cuidado de convidar, como indutores do debate intelectuais e ativistas comprometidos em debater as verdadeiras causas da desigualdade que compromete a democracia e os direitos econômicos, sociais e culturais no país, conforme registra o Perograma do evento:
Seminário CULTURA DE DIREITOS E CULTURA DEMOCRÁTICA
DIA 17 de outubro.18h Será a Palestra de abertura – Cultura e Democracia será conferida por Jandira Feghali seguida de debate “Fatores que estruturam a construção do ethos democrático no Brasil” com a participação de Danieli Balbi, Juliana Neuenschwander ,Gisele Cittadino, Henrique Rodrigues Leroy, Vantuil Pereira. Moderação: Carol Proner.
DIA 18 de outubro.18h Teremos a conferência de José Geraldo de Sousa Junior e a participação de Lusmarina Garcia, Rosangela Cavallazzi e Margarida Lacombe no debate sobre os “Fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática” com a moderação de Manuel Gándara Carballido19 de outubro, quarta-feira
DIA 19 de outubro.10h será lançado o livro “Cultura de Direitos e Cultura democrática- NARRATIVAS CRÍTICAS”, apresentado por Maria José Coelho e a palestra de encerramento “Desafios para uma cultura democrática”, com Cunca Bocayuva. Moderação: Gisele Ricobom. Ainda teremos a exposição: Arte e resistência, com trabalhos de Cunca Bocayuva.
Na página do Instituto Joaquín Herrera Flores (https://joaquinherreraflores.org.br/ijhf-al-realiza-seminario-cultura-de-direitos-e-cultura-democratica/), podem ser obtidas mais informações. De lá o cartaz do Seminário, cuja arte dialoga com a capa da Revista:
O tema do Seminário, e da Revista, com a indução oferecida pelos participantes e pelo debate que se instalou, amplia e aprofunda uma linha de indagações muito característica da agenda do IHF. Assim, por exemplo, a bela obra, realizada conforme a mesma metodologia pelo Instituto em 2021 Cultura e Direitos Humanos, depois de Seminário Internacional promovido no Rio de Janeiro em conjunto com o Instituto Ensaio Aberto (2020).
Nesse livro, os textos, elaborados “por autores referenciais em suas áreas de conhecimento (Antonio Nóbrega, Alejandro Medici, Alexandre Bernardino Costa, Carol Proner, Gisele Ricobom, Joaquín Herrera Flores, Juliana Neuenschwander Magalhães, Manuel E. Gándara Carballido, Maria Pereira, Paula Martini, Richard Santos, Silvio Almeida, Silvio Tendler) versam sobre a construção histórica da cultura de direitos humanos, a proteção da cultura no direito internacional e sua observância no direito brasileiro, a diversidade cultural, a globalização e o universalismo dos direitos humanos, os impactos das novas tecnologias no acesso à cultura e a relação entre as manifestações culturais e as desigualdades estruturais no Brasil”.
Na obra tema deste Lido para Você, diz Cunca em seu texto de abertura:
Temos neste livro uma colagem dos afluentes deste rio que chamamos direitos humanos, como coroamento de uma experiência de formação inovadora realizada pelo Instituto Joaquin Herrera Flores. A nova reflexão crítica e da cultura dos direitos em sentido emancipatório vem sendo movida por correntes e processos que recusam a canalização restritiva do passado, que insistem em manter a força de seu curso com base no poder instituinte dos sujeitos sociais corporificados nos espaços e escalas de um agir transformador. No mundo em crise e transição precisamos manter vivas estas águas que permitem repor as condições básicas para sustentar projetos emancipatórios e lutas por espaços de liberdades, de bem-estar social e de biodiversidade. Seguindo as pegadas da abordagem na chave da teoria crítica na via proposta por Joaquin Herrera Flores, vemos no livro a importância dada ao resgate e reconstrução dos direitos humanos com ênfase no conceito de cultura como espaço da luta pela direção intelectual e moral da vida coletiva. Podemos destacar o terreno das ideologias na disputa travada nos aparelhos ou superestruturas que produzem a dimensão imaterial, simbólica e de socialização que condiciona e engendra os recortes do agir em sociedade, na disputa entre a linguagem dominante nas sociedades contemporâneas com suas resistências em relação a dignidade humana”.
O livro está organizado em 11 capítulos, com um amplo painel de temas e de uma qualificada autoria:
Capítulo 1. Luta Contra a Violência Policial do Rio de Janeiro. Dos navios negreiros ao camburão, dos quilombos às favelas, Victoria-Amália de Barros Carvalho Gozdawa de Sulocki; Thiago Dezan, Franscisco Proner e Erick Dau.
Capítulo 2. A Luta pelos Direitos dos Povos Indígenas. Diversidade cultural e invisibilidade sobre os direitos indígenas, Francineia Bitencourt Fontes; Christian Braga e Tuane Fernandes.
Capítulo 3. Cárcere e Direitos Humanos. Colonização e política de morte no país-prisão, Natália Damázio Pinto Ferreira, Nina Barrouin, Franscisco Proner e Thiago Dezan.
Capítulo 4. Direito a um Ambiente Saudável. Mudança climática, crises civilizatórias e luta pelo meio ambiente no Brasil, Gisele Ricobom, Charlotth Back, Maria Magdalena Arréllaga e Christian Braga.
Capítulo 5. Abolição e Emancipação. Desafios, conquistas e contradições do feminismo brasileiro, Denise Dourado Dora, Winnie de Campos Bueno, Tuane Fernandes e Francisco Proner.
Capítulo 6. Os Movimentos Antirracistas no Brasil. Uma luta constante pelo direito à vida, Renata Pedreira da Cruz, Maria Magdalena Arréllaga, Tuane Fernandes e Thiago Dezan.
Capítulo 7. Direitos dos Migrantes. Processos de resistência interseccionais, Charlotth Back, Thiago Dezan e Erick Dau.
Capítulo 8. Direito à Cidade. A necessidade de reafirmar a narrativa de que ‘favela é cidade’, Márcia Pereira Leite, Itamar Silva, Erick Dau, Christian Braga, Maria Magdalena Arréllaga e Francisco Proner.
Capítulo 9. A Luta por Direitos Humanos da População LGTBIQ+. Um ensaio sobre a diversidade na esfera pública, Fredson Oliveira Carneiro, Maria Magdalena Arréllaga, Francisco Proner e Erick Dau.
Capítulo 10. Luta pela Terra. Declaração da ONU sobre os direitos dos camponeses e das camponesas, Carol Proner, Juvelino José Ney Strozake, Franscisco Proner e Tuane Fernandes.
Capítulo 11. A Luta dos Trabalhadores. O desafio de reorganizar o coletivo, Prudente José Silveira Mello, Tuane Fernandes e Francisco Proner.
Juntei as autorias em cada texto, sabendo que elas se compõem de autores e autoras que verbalizam a discursividade e autores e autoras que o fazem por meio de imagens. O livro, efetivamente é, artisticamente, uma combinação dessas duas expressões, uma vez que junta texto (os intérpretes do IHF) e fotos (artista do Coletivo FARPA). A capa, aliás, é da fotógrafa Valda Nogueira, que presidiu o Coletivo e que faleceu em acidente. FARPA lhe faz uma homenagem na abertura: “…A Valda segue sendo essa mulher negra, destemida, fotógrafa da vida, mensageira de seu povo, tradutora de todo riso e toda dor. Nada poderá apagar a sua voz, a sua vontade de viver, a sua bondade e o amor inexplicável que todos sentimos por ela. É um privilégio sem tamanho dividir com ela essa trajetória, A Valda não tem medo de nada, e por isso ela segue entre nós. A nossa Valda, sempre-viva”.
A propósito desse enlace narrativo e do argumento que permitiu construir a estrutura da obra, os organizadores Carol Proner, Gisele Ricobom, Manuel Carballido e Maria José H. Coelho (curadora e editora), corroboram o texto de apresentação e o arrematam:
A partir do conteúdo propositivo dos artigos, entendemos que a necessária consagração normativa dos direitos humanos não implique no esvaziamento de seu fardo utópico. É claro que esta aposta exige profundas transformações inalcançáveis a partir do pensamento crítico, mas acreditamos que o ensino jurídico contextualizado e fundamentado pode contribuir para enredar processos sociais em prol de sociedades justas e igualitárias. Precisamos repolitizar a práxis dos direitos humanos ressignificando as lutas em prol de condições de vida dignas para todos.
Consideramos fundamental estimular debates que abram a discussão sobre os direitos humanos, a partir das realidades específicas de cada texto e de cada momento histórico, de modo que sejam promovidos processos de reflexão que estimulem experiências de luta em favor de uma vida digna para todos. Esse é o objetivo deste livro.
Aliando imagens, escritas e narrativas de compromisso, esperamos contribuir com as lutas descritas, somando nossa aposta na busca por uma cultura de direitos e uma cultura radicalmente democrática e, para usar uma frade utópica do processo político colombiano atual, até que a dignidade se faça costume.
Nada menos a esperar do que incumba a intelectuais que se organizem sob a influência de um pensador do quilate de Joaquín Herrera Flores. Muito vivas em todos nós que com ele convivemos e compartilhamos suas instigações críticas, essa exigência do reinventar, do instituir espaços de lutas e ressignificar a dignidade material do humano, projetados por sujeitos que se emancipam, demarcam o percurso utópico dos compromissos para o agir que transforma.
Com seus companheiros do IHF América Latina e com o núcleo editorial do livro produzido, é ainda muito forte a projeção de seu pensamento fecundo. Rememorei, no evento do Rio de Janeiro, as tertúlias que o querido amigo proporcionou no território simbólico do Monastério de La Rábida, nos seminário da Universidade Internacional de Andaluzia e seu programa de direitos humanos.
Algo que enquanto se renovava seu pensamento permaneceu como um fio condutor autoreflexivo. Ainda poucos dias antes de seu encantar-se, não obstante prematuro, ele reafirmava, conforme a entrevista que me concedeu (UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | JUNHO DE 2008, nº 23, págs. 12/13. Título “Reinvenção dos Direitos Humanos”).
Para a formalidade editorial, o editor registrou: professor da Universidade Pablo de Olavide de Sevilha, que dirige a cátedra de Direitos Humanos “José Carlos Mariátegui” e o Programa Oficial de Pós-Graduação em “Direitos Humanos e Desenvolvimento”, nesta entrevista concedida ao Professor José Geraldo de Sousa Junior, de Constituição & Democracia, fala de sua mobilização pela reinvenção dos direitos humanos e de alternativas para a ampliação da cidadania. A entrevista foi traduzida pela Juíza Luciana Caplan, de Campinas, cujos estudos de pós-graduação foram orientados pelo professor espanhol. Sublinho uma questão que lancei para a entrevista: O senhor tem proposto em sua docência e em seus escritos uma clara atitude de reinvenção dos direitos humanos. Quais são essas novas perspectivas e como a partir delas o direito se relaciona com processos institucionais e sociais que levem à abertura e consolidação de espaços de luta pela dignidade humana?
Atenção para a resposta que bem pode ser um apêndice para o livro aqui Lido para Você:
Creio que ao falar em direitos humanos, devemos ser conscientes de uma série de fatos históricos e sociais. Celebramos, em 2008, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mas, também os 42 anos de sua ruptura em dois Pactos Internacionais (1966): o de direitos civis e políticos e o de direitos sociais, econômicos e culturais.
Se a estrutura da Declaração era unitária, que razões fundamentaram e, o que é mais importante, segue fundamentando a visão dualista dos direitos? Se lermos com atenção os Informes de Desenvolvimento Humano que, anualmente, são publicados pelas Nações Unidas, observamos que, a cada ano que passa, aumenta o abismo entre ricos e pobres, e que não há modo de conter a pobreza e a mortalidade por fome nos países empobrecidos pelas políticas coloniais e globais do modo de acumulação capitalista. E, por fim se acessamos o último informe da Anistia Internacional no qual, de um modo direto, são questionados os avanços em direitos civis e políticos no mundo depois de seis décadas da assinatura da Declaração. Se fazemos estas leituras, creio que todos e todas perceberemos a necessidade de “reinventar os direitos humanos” desde uma perspectiva mais atenta ao que está ocorrendo ao nosso redor. Creio, sinceramente, que chegou o momento de redefinir uma categoria tão importante para compreender os desafios com os quais se depara a humanidade em início do século XXI. Neste sentido, nós definimos os direitos humanos como “processos de luta pela dignidade”, ou seja, o conjunto de práticas sociais, institucionais, econômicas, políticas e culturais levadas a cabo pelos movimentos e grupos sociais em sua luta por um acesso igualitário e não hierarquizado a priori aos bens que fazem digna a vida que vivemos.
Ora, cuida-se assim, de articular contribuições para a teoria crítica que não se estiolem no formalismo cientificista ou epistemológico mas, abrindo-se ao arejamento do cultural, no plano do direito e da prática democrática, permita o salto de consciência da história para a política transformadora. Tratei sobre isso recentemente, em dois ensaios para esta Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/30425-2/, acerca de contribuições para a teoria crítica do direito; e em http://estadodedireito.com.br/a-formacao-das-sujeitas-e-dos-sujeitos-perifericos-cultura-e-politica-na-periferia-de-sao-paulo/).
Cuida-se, em todos esses estudos, entre eles o de Tiaraju Pablo D’Andrea, nesse seu A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e Política na Periferia de São Paulo, evidentemente, de uma experiência emancipatória. Roberto Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.
Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Tiaraju D’Andrea, na primorosa edição da Editora Dandara. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.
No Seminário de outubro no qual o livro foi lançado, sem conhecer o seu conteúdo, como que pressenti seu ponto de partida, a tanto me convence o texto de Cunca Bocayuva, cuja passagem transcrevi. Com Bocayuva achei poder encontrar consonância para aqueles fundamentos que desde 1986, pelo menos (conforme o meu Cidadania e Cultura Afro-Brasileira. Sociedade e Estado. Revista do Departamento de Sociologia da UnB, vol. 1, nº 1, julho/86), eu vinha designando, o modo práticas coletivas realizam identidades culturais.
Mencionando, a propósito do tema ali tratado – Cidadania e Cultura Afro-Brasileira – a necessidade “de reconhecer, no processo geral que caracteriza a existência de povos e nações, a especificidade de certas relações internas desse processo que configuram a dimensão específica ligada às práticas de grupos no interior da sociedade e que expressam a sua maneira de conceber e organizar a vida social. Portanto, ainda que se fale de uma realidade cultural comum a toda uma sociedade, esse sentido generalizante não exclui, na definição de uma questão cultural, a perspectiva histórica de cada sociedade, sob cujos parâmetros aquela há de ser compreendida e organizada, a partir da dimensão interna da produção individual ou coletiva de setores específicos, insertos, porém, no processo cultural globalizante de criação e recriação social”.
Convocado a falar sobre “Fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática”, creio ter coincidindo com esses pontos de partida.
Com efeito, abri minha exposição, confiro aqui as minhas notas, citando uma passagem de um livrinho de Marilena Chauí, editado pela Perseu Abramo, em 2000 –Brasil. Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Nesse erudito estudo, preparado para marcar o simbólico dos 500 anos do descobrimento, a notável professora da USP, designa os muitos signos ideológicos, suas fontes, as metáforas e apropriações narrativas sobre “o processo histórico de invenção da nação que nos permite compreender um fenômeno significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da ideia de ‘caráter nacional’ para a de ‘identidade nacional’, essa tentação totalizante, de designar algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo) ou negativa (Silvio Romero, Manoel Bonfim, Paulo Prado), para louvar ou para depreciar isso que seriam os traços coerentes, fechados e sem lacunas do que nos constitui como natureza humana ou cultura determinadas.
Percorrendo, autores, temas, signos (verde-amarelismo, fé, orgulho, nação, povo), ela conclui de modo problemático:
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como ‘cultura senhorial’, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relações entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividadse nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de ‘parentesco’, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muito marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação uma e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constitui.
Ou, como anotam Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, em seu monumental Brasil: uma Biografia (Companhia das Letras, 2015), lembrando que “história não é conta de somar”, a cultura como afinal, “o que faz brasil, Brasil ou do Brazil, Brasil”, isto é, como nos inventamos, para elas, “um processo em que o Brasil, desde que inventou para si um sentido próprio e autônomo como nação, no qual a história do país vem se afirmando, como uma longa narrativa de lutas, violência, reivindicação de autonomia e igualdade, busca por direitos e construção da cidadania”.
Basta ver Querelas do Brasil, canção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós:
O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil
Tapir, jabuti, iliana, alamanda
Ali, alaúde
Piau, ururau, aqui, ataúde
Piá, carioca, porê, kamekrá
Jobim, akore, jobim açu, uô, uô, uô
Pererê, camará, tororó, olerê
Piriri, ratatá, karatê, olará
O Brazil não merece o Brasil
O Brazil tá matando o Brasil
Gereba, saci, kaandrades, cunhãs, ariranha, aranha
Sertões, guimarães, bachianas, águas
E marionaíma, arira, aribóia
Na aura das mãos de jobim açu, uô, uô
Cererê, sarará, sururu, olerê
Blablablá, bafafá, sururu, olará
Do Brasil S.O.S ao Brasil
Do Brasil S.O.S. ao Brasil
Tinhorão, urutu, sucuri
O Jobim, sabiá, bem-te-vi
Cabuçu, coitovia, caxambi, olerê
Madureira, olaria e bangu, olará
Cascacura, água santa, acari, olerê
Ipanema e nova iguaçu, olará
Do Brasil S.O.S. ao Brasil
Do Brasil S.O.S. ao Brasil
Voltemos, pois, aos temas por propostos entre outros, por Sergio Buarque, Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Darcy Ribeiro, José Murilo de Carvalho (Os Bestializados: Há Povo no Brasil?), para aferir esses fatores que desafiam a restruturação da cultura democrática, localizando os obstáculos, no plano da cultura: colonialismo e autoritarismo e todos os seus paroxismos (coronelismo, clientelismo, prebendismo, cunhadismo, filhotismo, nepotismo, milicianismo); no pano paradigmático, o positivismo, como limite epistemológico e como ideologia, que no plano do jurídico (cultura legalista), inibe a internalização no direito nacional posto das conquistas internacionais dos direitos humanos (minimamente inscritos nos tratados e nas convenções), enquanto não se dissolvam as falsas noções que a ideologia traz para o ensino e para a aplicação do Direito e o fascismo (Barthes) imponha à língua, inviabilizando, produzindo ausências e contendo emergências (Boaventura de Sousa Santos), que propiciem o livrar-se do favor, até que a cidadania ativa instaure uma verdadeira cultura de direitos (Victor Nunes Leal, Marilena Chauí).
Só assim, numa cultura de direitos como correspondência a uma cultura democrática, é que se poderá entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade, base e projeção paras os estudos e pesquisas que constituem a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua? Um processo que leve a perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).