Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Antonio José Avelãs Nunes. O Capitalismo sem Máscaras em Tempos de Crime Sistémico e Outras Pandemias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 372 p.
O mais recente livro de António José Avelãs Nunes, lançado no Brasil, com o sele da Lumen Juris, é um sopro de alento na pobreza e aridez das leituras sobre a realidade e a conjuntura. Deixando de percorrer o caminho raso do medíocre, Avelãs Nunes, um homem com qualidade, a partir dos textos que compõem a obra, propõe ensaios instigantes que, em conjunto, oferecem uma interpretação sobre as interpelações econômico-políticas de nosso tempo.
Fiz alusão a homem com qualidade em alusão a Musil e seu notável O Homem sem Qualidades, para configurar em Avelãs, o estofo de concepções presentes em suas obras, muito diversas daquelas concepções e de homens novos, que em certas circunstâncias derrapam no medíocre, ainda que, diz Musil, “estas concepções, estes homens novos, não eram com certeza totalmente maus; apenas existia neles um pouco mais de mau naquilo que era bom, um pouco de erro a mais na verdade, um pouco de maleabilidade a mais na definição” (cito aqui a partir da edição portuguêsa, volume I. Lisboa: Livros do Brasil, sem data).
No meu testemunho, formado a partir de um afetivo e institucional intercâmbio com o autor, o que o caracteriza é ver Avelãs verdadeiramente um homem com qualidades. Já deixei isso registrado em várias oportunidades e, em mais de uma anotação, aqui neste espaço da Coluna Lido para Você.
Reporto-me para sintetizar, aos textos de recensão já lançadas por mim, conforme http://estadodedireito.com.br/neoliberalismo-e-direitos-humanos/. Também em http://estadodedireito.com.br/25767-2/, neste último a propósito de RETRATOS ESCRITOS. Homenagem a ANTÓNIO AVELÃS NUNES. Coordenadores: Augusto Monteiro, Fernando Martinho, Inês Seabra, José Vitória, Maria José Ribeiro, Rogério Leal. Coimbra: Editora Lápis de Memórias, 2019, no qual também contribuo.
Este livro, aliás, digo em minha resenha, carrega intrinsecamente as marcas desse sentido de contribuição que um homem de universidade imprime a sua docência e ao movimento de espírito que busca oferecer disposição de entendimento para as questões que desafiam a compreensão das comunidades de inteligência.
Por isso que, o livro, se inspira em diálogos inter-universitários, em atenção ao interesse acadêmico, para aferir o significado econômico da política de globalização que marca a fase atual do capitalismo em escala mundial. Isso se identifica bem ao analisar as relações entre neoliberalismo e direitos humanos, matéria de sua intervenção em workshop sobre políticas neoliberais e direitos fundamentais (Onãti, Instituto Internacional de Sociologia Jurídica, julho de 2002), cujas notas se revelam nos textos que compõem a obra Neoliberalismo & Direitos Humanos.
O Capitalismo sem Máscaras, designa o Editor certamente com texto preparado pelo Autor, é uma antologia de textos dispersos, dos quais se destacam três: aquele em que se analisa a intervenção dos tribunais brasileiros em matéria de proteção do direito à saúde; o que se ocupa do neoliberalismo para tentar mostrar que ele é incompatível com a democracia; aquele em que se procura justificar a classificação capitalismo do crime sistémico.
Percorrendo os ensaios, o tema da globalização, sua caracterização e seus problemas, opera como um fio condutor, que culmina com o ensaio sobre a Europa enquanto projeto colonialista.
A globalização, referindo-me à descrição da obra, é uma realidade e um problema dos dias de hoje. Por isso, vários textos deste livro ocupam-se dela, na tentativa de mostrar que a globalização não é uma consequência inevitável do desenvolvimento científico e tecnológico. Este é o caminho da libertação dos homens, não a fonte dos nossos males. O veneno da globalização está na ideologia neoliberal que a inspira e nas políticas neoliberais que a concretizam. Porque o neoliberalismo conduziu ao capitalismo do crime sistémico e ó incompatível com a democracia.
As mesmas preocupações de desmistificar as ideias feitas e difundidas aos quatro ventos pelos órgãos ao serviço da ideologia dominante estão na origem do estudo em que se procura explicar os objectivos colonialistas do projecto de integração europeia.
A realidade brasileira está presente, abertamente, no estudo sobre a intervenção dos tribunais na concretização do direito à saúde.
O autor incluiu no livro três entrevistas, uma delas que me foi concedida. Nesta entrevista, a meu ver, permite entrever a linha condutora de seu pensamento ou melhor dizendo, sua leitura da realidade. A entrevista foi originalmente publicada no Observatório da Constituição e da Democracia – C & D (sobre o C & D conferir Coluna Lido para Você: http://bit.ly/2unYJIg). Porque considero que nela o entrevistado demarca o ângulo forte de sua reflexão e, mais do que isso, expõe a sua visão de Justiça sobre a crítica ao que representa o capitalismo hegemônico, mostrando o caráter de exclusão social provocado por esse processo e a sua face de desenvolvimento injusto, perverso, senão maligno, julgo valioso reproduzi-la como fecho deste Lido para Você.
ENTREVISTA COM ANTÓNIO JOSÉ AVELÃS NUNES (Desenvolvimento como respeito integral às pessoas e à afirmação plena das suas capacidades)
- 1. Uma linha significativa de sua produção científica tem se orientado pela busca de interligação entre economia, globalização e direito. É possível falar-se em justiça social ou em estratégias aceitáveis de desenvolvimento pela mediação das instituições e de políticas forjadas nos parâmetros do capitalismo ainda hegemônico no mundo atual?
É verdade que, sendo jurista de formação (a minha tese de mestrado é sobre um tema de direito societário), fiz o meu doutoramento e toda a subsequente carreira unviersitária na área das ciências económicas. E acredito que é importante que se faça investigação e ensino das ciências económicas nas Faculdades de Direito. Na minha Faculdade (a Faculdade de Direito de Coimbra) ensina-se Finanças Públicas e Economia Política desde 1837. Nos dias de hoje, é para mim indiscutível que um bom jurista não pode desconhecer as instituições e os mecanismos da vida económica.
Nos últimos anos, tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática.
Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.
A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenómenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.
É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a actual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim-da-história.
Assim como esta globalização não é um ‘produto técnico’ deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projecto político levado acabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, assim também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, pressupõe um espírito de resistência e um projecto político inspirado em valores e empenhado em objectivos que o ‘mercado’ não reconhece nem é capaz de prosseguir.
Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.
De resto, talvez a utopia de Marx esteja a confirmar-se: o desenvolvimento científico e tecnológico conseguido pela civilização burguesa proporcionou um aumento meteórico da produtividade do trabalho humano, criando condições novas no que toca à capacidade de produção. Este desenvolvimento das forças produtivas (entre as quais avulta o próprio homem enquanto produtor e utilizador do conhecimento e do saber) só carece de novas relações sociais de produção, de um novo modo de organizar a vida colectiva, para que a humanidade possa saltar do reino da necessidade para o reino da liberdade.
- Que possibilidades reais o Senhor identifica para a adoção nos novos arranjos constitucionais atualmente em curso, sobretudo na América Latina, para a adoção de estratégias alternativas de desenvolvimento fundadas em imperativos morais impulsionados pela participação de cidadãos na formulação, na aplicação e na avaliação de políticas sociais e econômicas?
Devo confessar que não conheço suficientemente bem a realidade da América Latina e não sou especialista em Direito Constitucional. O que posso dizer é que Amartya Sen tem razão quando defende que “o desenvolvimento é um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam” e que a expansão da liberdade humana é tanto o principal fim como o principal meio de desenvolvimento”.
Isto significa que o verdadeiro desenvolvimento pressupõe o respeito intgegral das pessoas, a afirmação plena das suas capacidades, a liberdade para exercer em consciência os seus direitos, não apenas os clássicos direitos, liberdades e garantias, mas também os direitos económicos, sociais e culturais. E isto exige uma democracia que não se limite ao voto de tantos em tantos anos, mas uma democracia participativa, um verdadeiro governo do povo, pelo povo e para o povo. Se assim não for, não haverá, certamente, um “desenvolvimento do povo, pelo povo e para o povo”.
Em 2001, o Forum Social Mundial, reunido em Porto Alegre, afirmou o direito dos povos a organizarem-se livremente em vastas comunidades de nações solidárias, com o objectivo de evitar o domínio dos mais poderosos sobre os mais fracos, de proteger os povos por meio de barreiras de preferências comunitárias, de controlar os movimentos de capitais especulativos, que arruínam as actividades produtivas e mergulham as populações na incerteza, na crise e na miséria.
O Forum defendeu o direito dos povos à protecção das suas actividades vitais, o direito à livre escolha do modo de valorizar o seu território e os seus recursos, o direito a promover e a preservar a sua auto-suficiência alimentar, e rejeitou a lógica globalizadora que reduz à dimensão de simples mercadorias os valores sociais, as culturas e todos os valores que constituem a essência da identidade dos povos.
Creio que hão-de passar por aqui os caminhos do futuro. Todos concordaremos com Amartya Sen quando defende que o facto de haver pessoas que passam fome ¾ e que morrem de fome… ¾ só pode explicar-se pela falta de direitos e não pela falta de bens. O problema fundamental que se nos coloca não é, pois, o da escassez, mas o da organização da sociedade.
- Num ensaio instigante e de ampla circulação o Senhor qualificou a tentativa européia de criar uma norma fundamental comum, de “constitucionalização do neo-liberalismo”. Por que essa iniciativa fracassou e quais as chances de retomada desse projeto ainda sob impulso neo-liberal?
Hoje, ao menos no quadro europeu, parece claro que a social-democracia assumiu muito consciente e empenhadamente a sua função de gestão leal do capitalismo. E vem assumindo cada vez mais a inspiração doutrinal, os métodos e os objectivos políticos do pensamento neoliberal dominante, não fosse ela a principal responsável pelo processo de integração europeia que, segundo alguns observadores, “teve como efeito tornar praticamente impossível qualquer alternativa ao neoliberalismo” (é a opinião de Ignacio Ramonet). Como escreveu Um dissidente do Partido Socialista francês (George Sarre) defendeu, durante o debate preparatório do referendo sobre a chamada Constituição Europeia, que “a Europa transformou-se no joker de uma esquerda sem projecto nem reflexão”, uma “esquerda que não tem outro projecto para além da construção europeia, a Europa”, uma esquerda que, para ser credível e não assustar os mercados, defende e pratica “uma política ainda mais à direita do que a direita”.
O menos que se pode dizer é que o estado social (que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi a menina dos olhos da social-democracia europeia) não vive hoje na Europa uma hora feliz. E os resultados estão à vista: taxas de crescimento muito baixas; precariedade do emprego; desemprego acentuado (prolongado para os jovens e os desempregados com mais de 45 anos); deslocalização de empresas; deterioração acentuada dos resultados no que toca à distribuição funcional do rendimento (a parte dos rendimentos do trabalho passou, na UE/15, de 65% em 1980 para 57% em 2005); desigualdades crescentes, com manchas de pobreza significativas, mesmo nos países mais ricos; prática generalizada de dumping fiscal, social e salarial; baixa dos níveis salariais e dos níveis de protecção social.
Esta é a Europa construída, em grande parte, por obra dos dirigentes socialistas e sociais-democratas europeus, quase sempre à custa de conciliábulos entre ‘élites’, retirando à ponderação do voto popular as opções de fundo tomadas. E é hoje inquestionável que esta ‘Europa’, construída sob a invocação beata do modelo social europeu, acabou por se transformar, para os povos europeus, como observou Bernard Cassen, num verdadeiro “cavalo de Tróia da globalização neoliberal”.
A chamada Constituição Europeia, não acrescentando nada de novo, pretendia apenas consolidar este acquis communautaire através da sua constitucionalização. E como ela seria praticamente inalterável (por tal exigir a vontade unânime dos países da UE) este acquis ficaria como que fora do quadro das opções políticas, transformado em verdade indiscutível, definitiva, válida para todo o sempre como o é o capitalismo para os defensores do fim da história.
Muitos europeus (entre os quais me incluo) entendem que, mais do que a questão de saber se seria correcto ou não falar-se de Constituição Europeia (e esta é sem dúvida uma questão importante, no plano jurídico e, sobretudo, no plano político), a questão decisiva residia em saber se a Europa que queremos é a que estava desenhada naquele projecto de ‘constituição’. Na minha opinião, a resposta é NÃO. Os europeus e o mundo inteiro precisam de uma outra Europa, uma Europa governada por princípios de solidariedade social e não a Europa orientada pela livre concorrência, que aceita (resignada, ou exultante) a “violência da concorrência (…) sem regulação nem limite”; uma Europa dos direitos sociais e do progresso social e não a Europa da precariedade do trabalho, da desigualdade crescente, da exclusão social, que quer fazer andar duzentos anos para trás o relógio da história; uma Europa livre de tutelas e capaz de definir os seus objectivos na cena internacional e não a Europa de joelho dobrado perante o império norte-americano; uma Europa dos cidadãos e dos trabalhadores, e não a Europa dos negócios e do capital financeiro; uma Europa (e um mundo), em suma, em que o mercado não substitua a política, a concorrência não substitua a cidadania, a eficiência e a competitividade não substituam o direito e a justiça. Para tanto, é imperioso que a União Europeia, enquanto comunidade de estados soberanos e iguais, seja uma comunidade de povos e de culturas, uma comunidade de afectos, coesa e solidária, uma comunidade de valores democráticos, acima de tudo fiel a um dos objectivos estratégicos iniciais, uma comunidade de paz, uma comunidade promotora da paz, através do combate ao subdesenvolvimento, ao racismo, à pobreza, à exclusão.
Pela minha parte, apesar de os tempos presentes não alimentarem grandes optimismos, quero acreditar que a construção da Europa continua a ser um projecto em aberto. Porque o neoliberalismo não é o fim da história. E porque os caminhos da história não passam por aqui.
- Apesar de suas tarefas atuais extremamente exigentes o Senhor tem encontrado tempo para freqüentes visitas ao Brasil e tem contribuído com os esforços institucionais para a afluente qualificação da pesquisa e da pós-graduação em Direito. De fato, o Senhor participou na condição de observador internacional de várias jornadas de avaliação da pós-graduação em Direito no Brasil, a convite da CAPES. Como observador, que tendências podem ser postas em relevo, pensando, por exemplo, temas como desenvolvimento justo, processos de deliberação conformes a um constitucionalismo democrático, direitos humanos?
Considero um privilégio ter podido participar, como observador estrangeiro convidado pela Direcção da CAPES, nos trabalhos da Comissão de Avaliação Trienal dos Programas de Pós-Graduação em Direito, nos anos de 2001, 2004 e 2007. Creio que fiquei com uma ideia bastante informada sobre o ensino pós-graduado do Direito no Brasil e senti-me feliz por ter observado a melhoria verificada, no conjunto da Área, durante o período referido. A este propósito, é-me grato deixar aqui a minha opinião muito positiva sobre o trabalho realizado pelos Colegas com quem partilhei as tarefas da avaliação, sob a orientação dos Professores Luiz Edson Fachin, Fernando Scaff e Jacinto Miranda Coutinho. Conheço bem e sou amigo do novo Coordenador da Área, Prof. Gilberto Bercovici. E estou certo de que ele saberá dar continuidade ao trabalho desenvolvido nos últimos anos, contribuindo para o reforço da qualidade da Pós-Graduação em Direito no Brasil e garantindo a seriedade e o rigor das tarefas de acreditação e de avaliação dos respectivos programas.