Hélio Doyle
É desnecessário dizer e comprovar que há inúmeras diferenças entre Portugal e Brasil, em todos os campos, da geografia aos costumes. É desnecessário também repetir que a realidade de um país não pode ser transportada automaticamente para outro, pois sempre é preciso considerar características específicas de cada um. Quando se fala em sistemas político e eleitoral, as diferenças são muitas.
Nada disso, porém, impede que nós, brasileiros, possamos analisar o que aconteceu nas últimas eleições em Portugal e tirar conclusões que possam ser úteis para avaliarmos acertos e erros lá cometidos pelas diferentes forças políticas, especialmente de esquerda, e que podem cá se repetir. Quando tanto se fala, no Brasil, sobre federações e uniões partidárias, polarização eleitoral, candidatos de “centro”, alianças rejeitadas pela esquerda e ameaça fascista, vale a pena entender o que aconteceu em Portugal. Há semelhanças.
Alguns resultados significativos nas recentes eleições em Portugal
– A maioria absoluta socialista
A conquista pelo Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, da maioria absoluta das cadeiras na Assembleia Nacional, o parlamento unicameral de Portugal, é o fato mais significativa dessa eleição. É a segunda vez, desde 1975, que isso acontece para o PS. Ter maioria absoluta significa não depender de alianças com outros partidos para aprovar o que interessa ao governo. A expressiva vitória dos socialistas, com 117 cadeiras em 230, podendo chegar a 121 com os votos dados por portugueses residentes no exterior, chamou ainda mais atenção porque, até poucos dias antes da eleição, várias pesquisas indicavam empate técnico com o Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, e se antevia que nenhum deles obteria maioria absoluta.
– A clara opção pelo “centro”
O segundo lugar obtido pelo PSD, partido tradicional na vida política portuguesa, não é relevante por si só, mas por indicar, sem que caibam dúvidas, que os eleitores portugueses optaram pelo voto no “centro” e, assim, pela estabilidade política, segurança econômica e rejeição às posições mais extremadas, à direita e à esquerda. O PS é o centro à esquerda, o PSD é o centro à direta. Aos 41,68% de votos e 117 deputados do PS, somam-se os 27,8% e 76 deputados do PSD, totalizando 69,48% dos votos e 193 deputados. Quando se imaginava que nenhum desses dois partidos conseguiria a maioria absoluta, especulava-se até a possibilidade de se unirem para governar o país pelo “centro”.
– A ascensão dos fascistas e dos ultraliberais
Dois partidos à direita que tinham apenas um deputado, cada, ganharam mais votos e mais cadeiras na Assembleia: o Chega e a Iniciativa Liberal (IL). São agora a terceira e a quarta bancadas. O Chega é a nova formação da extrema-direita em Portugal, com nítida postura fascista, racista e xenófoba. Tinha apenas um deputado e agora terá 12, graças aos 7,15% de votos obtidos. É pouco, mas é muito, considerando-se o risco que representa para as instituições democráticas portuguesas se continuar crescendo. A IL, que defende as teses do liberalismo exacerbado, obteve 4,98% dos votos e aumentou sua bancada de um para oito deputados.
– A queda da esquerda
Três partidos da esquerda da esquerda, como se diz em Portugal, sofreram as maiores derrotas de suas histórias. A Coligação Democrática Unitária (CDU), união do tradicional Partido Comunista Português (PCP) com o Partido Ecologista Os Verdes (PEV), teve apenas 4,39% dos votos e reduziu sua bancada de 12 para seis deputados, todos do PCP. Os Verdes perderam o único deputado que tinham. O Bloco de Esquerda (BE) caiu de 19 para cinco deputados, com apenas 4,46% dos votos. A derrota da esquerda atingiu também o ecológico Pessoas-Animais-Natureza (PAN), que tinha quatro a agora tem um deputado, com 1,53% dos votos.
– O “fim” do CDS-PP
O CDS-Partido Popular (CDS-PP), também tradicional partido da direita portuguesa, identificado com a democracia-cristã, junta-se aos cerca de 15 partidos que também estão fora do parlamento por não conseguirem eleger um só deputado. O partido tinha representação parlamentar desde as eleições de 1975, já foi a terceira força política no país e participou de vários governos. Agora, teve apenas 1,61% dos votos.
Acertos e erros
A vitória do PS reflete a avaliação positiva dos dois governos do primeiro-ministro António Costa e seu bom desempenho no combate à pandemia. Quando ficou em segundo lugar nas eleições em 2015, Costa conseguiu formar maioria na Assembleia com a CDU e o BE, a chamada “geringonça”, e assim a direita perdeu o poder que tinha desde 2011. Em 2019, vitorioso, mas sem maioria absoluta, o PS optou por fazer acordos pontuais no parlamento, contando com a CDU e o BE para aprovar suas propostas. Funcionou até a votação do orçamento para 2022.
Mas o PS venceu agora, sobretudo, porque a maioria dos portugueses quer estabilidade e teve receio da volta ao governo da direita que, entre 2011 e 2015, adotou fortes e impopulares medidas de austeridade fiscal impostas pela troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional), prejudicando trabalhadores e a população mais pobre.
Havia também grande receio de que, vencendo sem maioria absoluta, o PSD, ao buscar aliança com os demais partidos à direita, incorporasse o fascista Chega ao governo. As pesquisas de opinião que poucos dias antes da eleição indicavam o risco de uma vitória do PSD e a ausência de maioria absoluta para o PS, o que o levaria a buscar uma comprovadamente insegura aliança com os partidos à sua esquerda ou mesmo com o PSD, criaram uma onda de “votos úteis” de última hora para os socialistas.
Isso explica, em parte, a derrota da CDU, do BE e do PAN, pois eleitores desses partidos optaram por abandoná-los e assegurar a vitória do PS. Em parte, apenas, porque a queda do PCP e do BE tem a ver com a postura sectária e irrealista que esses dois partidos assumiram ao não aprovar o orçamento proposto para 2022 do governo de Costa e assim dar o pretexto para que o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dissolvesse a Assembleia e convocasse eleições antecipadas.
Embora como presidente da República não esteja filiado a partido, Marcelo é quadro histórico do PSD, tendo exercido a liderança do partido durante três anos e sido ministro de Estado em governos da direita. A convocação de eleições interessava ao PSD, para tentar ganhar o governo; e ao PS, para tentar obter o que conseguiu: a maioria absoluta que o livra de alianças.
Ao inviabilizar o governo de esquerda e levar a eleições em período de pandemia, queda de negócios e empobrecimento da população, o PCP e o BE mostraram desconhecer o sentimento da população e deram um tiro no pé. Passaram a ser responsabilizados pela instabilidade política e social e pelo risco que os eleitores à esquerda e satisfeitos com o governo de Costa viam na volta da direita ao poder. O PAN, que aprovou o orçamento proposto pelo PS, foi vítima do voto útil. O também ecológico e de esquerda Livre manteve o único deputado que já tinha, e até aumentou em 0,20% seu eleitorado.
Sem maioria absoluta, como era a situação na Assembleia dissolvida, o PS tinha de aceitar posições e medidas propostas pelo PCP, BE e Verdes, o que dava ao governo um viés mais à esquerda e mais voltado para a defesa dos trabalhadores, servidores públicos e desempregados. Agora, esses partidos, assim como o PAN e o Livre, são dispensáveis para o governo de Costa e terão de se reerguer.
Outro aspecto é que se a CDU e o BE tivessem se coligado para disputar as eleições, poderiam ter elegido, juntos, pelo menos 16 deputados, podendo chegar até a 20, em vez dos 11 que conseguiram. O Chega e o IL não teriam conseguido 20 deputados, mas cerca de 10. Essa é, porém, uma coligação improvável, dadas as divergências históricas não só na esquerda portuguesa, mas em todo o mundo.
Não há justificativa clara, porém, para não ter havido uma coligação entre o PSD, o CDS-PP e outros partidos de direita que não conseguiram eleger um só deputado. O IL provavelmente recusaria, em busca de afirmação, mas seria possível a reedição da Aliança Democrática, que funcionou de 1979 a 1982. A soma aritmética dos votos obtidos pelos partidos de direita, excetuando o Chega, não seria suficiente para derrotar os socialistas. Mas certamente a direita unida poderia ter feito uma campanha melhor e a sinalização de que não contava com os fascistas do Chega poderia ter lhe dado mais confiança nos eleitores e, provavelmente, votos.
Excelente análise!!! Abração
Ótimas anotações de futuro.
Bom dia, ótima análise política. Não ficou no achismo, mencionou números e buscou informações no que viu. Como sempre, Hélio sabe o que escreve.
Muito boa análise politica!!!
Ótima matéria. Importante aprofundar a análise sobre as eleições portuguesas. O que se viu na grande mídia foram apenas informações gerais, sem detalhar melhor os cenários e circunstâncias que interferiram no resultado, como se fez aqui.
As realidades são distintas, mas sua análise ajuda a entender o que pode ocorrer aqui se os que se dizem mais à esquerda, os sectários, não entenderem o momento político do país e não ajudarem na composição de uma frente em torno do presidente Lula. Abraço
Artigo esclarecedor, Hélio. Aqui, vamos pondo as barbas de molho, porque as ações de fascistas e milicianos crescem a olhos vistos, mesmo que sejam minoria em matéria de votos.