Por José Geraldo de Sousa Junior
“Todas as semanas, atendo mais ou menos cinco pacientes dizendo que estão doentes, mas, quando examinamos, notamos que, na verdade, não é doença, é fome”, disse médica que trabalha em uma unidade de saúde de Sobradinho, cidade-satélite do Distrito Federal. “Em 15 anos de profissão, nunca imaginei que ouviria relatos como os que tenho ouvido ultimamente. Ainda mais em uma cidade tão rica”, completa a profissional, em entrevista para reportagem de El País.
Os profissionais ouvidos constatam que os pacientes estão doentes de fome e o único remédio para isso é comida. Mas, como pudemos demonstrar em trabalho realizado pela FIAN Brasil (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas) e pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, conforme o livro recentemente lançado O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: Enunciados Jurídicos (Brasília, 1ª edição, 2020), essa situação é resultado do empobrecimento da população brasileira, com o desemprego alcançando a cifra 14,5% em 2021. Em 2020, o país ficou na 22ª colocação, devendo alcançar a 14ª maior taxa de desemprego do mundo em 2021, conforme levantamento da Austin Rating, a partir das projeções do último relatório do FMI.
Desemprego e fome. O número de pessoas com insegurança alimentar grave ou moderada, 27,7% da população está neste grupo. Significa dizer que cerca de 58 milhões de brasileiros correm o risco de deixar de comer por não terem dinheiro. Os atendentes da área de saúde ouvidos na entrevista do El País, lançam o diagnóstico: fome e crise de ansiedade. O nervosismo ocorre principalmente por não saber como proporcionar uma vida digna à família.
Por isso a FIAN BRASIL pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ingressar como amicus curiae na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 831, exatamente para obrigar o governo federal a investir em medidas de combate à fome no contexto da pandemia de Covid-19.
Mas o vírus capitalista do cansaço incessante, diz em artigo o filósofo e ensaísta Byung-Chul, autor, entre outras obras, de Sociedade do Cansaço, fará que “Em breve teremos vacinas suficientes para vencer o vírus. Mas não haverá vacinas contra a pandemia da depressão”.
De fato, em pesquisa realizada por Unas (União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), com o apoio de pesquisadores da área da saúde pública da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o quadro de adoecimento de moradores de uma favela relata depressão: “A falta de políticas públicas para o combate [da pandemia] como a demora na definição do auxílio emergencial, além da falta de testagem nos casos suspeitos e a de informações sobre os casos de mortes e contaminados deixou a periferia em uma espécie de apagão de informações”, 86% dos entrevistados relataram depressão e 90% disseram que não estavam desfrutando das atividades normais. Morte foi uma das palavras mais citadas pelos moradores da favela – (Portal Uol, 12-01-2021).
É preciso reconhecer que os efeitos letais do coronavírus são, infelizmente, não apenas as mortes, mas também a imposição da distância com tudo o que traz consigo: tristeza, raiva, sensação de desamparo, frustração, solidão, insônia, angústia, depressão. A epidemia é psíquica. E tem proporções imponderáveis, escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana, em artigo publicado por Il Manifesto, 29-03-2020: “Não é apenas um evento histórico, que marca um antes e um depois na história. É também um choque coletivo que afeta nossos corpos. Não seguimos apenas os eventos na tela; sofremos os efeitos todos os dias. O biovírus assassino, invisível e incompreensível, que impede a respiração e causa uma morte horrível, também afeta a vida cotidiana de milhares de maneiras, dificultando o começo do futuro que nos projete para a utopia como indica Boaventura de Sousa Santos (O Futuro Começa Agora. Da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021).
Isso quando não se morre de morte matada ou de morte negligente, à falta de cuidados protocolares nas operações em todas as periferias de todas as regiões do Brasil. O Brasil é o país com maior número de mortes por balas perdidas entre os países da América Latina e Caribe durante os anos de 2014 e 2015, segundo relatório do Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na América Latina e Caribe (Unlirec, sigla em inglês), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU). O ranking internacional mostrou que, das 741 ocorrências envolvendo balas perdidas na América Latina e Caribe, 197 foram no Brasil, resultando em 98 mortos e 115 feridos.
De outra parte, os dados apontam 7.743 assassinatos nos primeiros dois meses de 2020. O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “Estaria havendo algum tipo de tensão no mercado de drogas que antes não havia? Será que o aumento de armas em circulação pode estar promovendo seus efeitos agora? A autoridade dos novos governadores e do presidente, que assumiram em 2019, estaria perdendo capacidade de dissuasão?”. Os coordenadores da pesquisa levantam suas hipóteses, mas ponderam: “Precisamos esperar mais tempo para responder. A pandemia tornou o contexto mais imprevisível. Mas os estados devem se preocupar desde já para a situação de violência não sair do controle”. Isso não explica, contudo, a chacina com contornos ainda misteriosos, ocorrida em Jacarezinho.
Morre-se de todos os modos na pandemia. Vivemos um luto contínuo, como me disse hoje uma aluna no correr da disciplina do Mestrado da Fiocruz Brasília (Fiocruz que, juntamente com o Instituto Butantan, acabam de ter a concessão do título de Patrimônio Nacional da Saúde Pública, já aprovada no Plenário da Câmara e encaminhada para o Senado Federal) Tópicos em Bioética e Saúde Pública, no qual desenvolvi a convite do coordenador Swedenberger do Nascimento Barbosa, o tema Direitos Humanos e Covid19. Grupos sociais vulnerabilizados e o contexto da pandemia (mesma titulação do livro que co-organizei para a Editora D’Plácido, Belo Horizonte, 2021). Nas palavras de Márcia Pisano, a aluna, “estamos todos vivendo o luto de maneira geral. Seja pela perda de algum ente querido, pessoa próxima, seja da nossa própria liberdade de ir e vir, luto pelos nossos direitos de socializar, luto por privações e incapacidades que até mesmo pessoas “curadas” ainda tem que lutar pelas sequelas, seja o transtorno/ trauma da hospitalização dentre tantas outras perdas…”.
Mas morre-se, principalmente de desgoverno. É o que sustentamos (como autores os professores Alfredo Attié, Renato Janine Ribeiro, Roberto Romano, Pedro Dallari e eu; os advogados Alberto Toron e Fábio Gaspar; e como advogados da causa Mauro de Azevedo Menezes e Roberta de Bragança Freitas Attié) em Ação Civil Originária, protocolada no Supremo Tribunal Federal, cujo objeto é o reconhecimento da incapacidade civil de exercer o cargo e as funções atinentes à Presidência da República, com seu consequente afastamento desse exercício, numa atuação destrutiva que provoca a situação de risco e insegurança a que expõe o povo brasileiro e provocando uma letalidade que ultrapassa em linha ascendente um total superior a quatrocentas mil mortes de pacientes por Covid-19. Conforme demonstramos na Ação e o confirmam mais de cem petições de impeachment, no Brasil hoje, tem gente morrendo de Covid, tem gente morrendo por bala, tem gente morrendo de solidão, tem gente morrendo de fome; mas morre-se mesmo é de desgoverno.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)