Ernesto ‘Beato Salu’ Araújo

Por Márcia Azevedo

Precisamos falar de Ernesto Araújo – ou Beato Salu, alcunha pela qual é conhecido o ainda Ministro das Relações Exteriores entre seus legítimos críticos dentro e fora do Itamaraty.

Ernesto Araújo falou ao Congresso Nacional na quarta-feira, 24 de março, dia em que o Brasil ultrapassou a marca fúnebre de 300 mil mortos por COVID-19. Após tensa reunião no Planalto, que o colocou na berlinda, o Ministro participou virtualmente de audiência pública da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Em seguida, compareceu ao Senado Federal, onde foi duramente cobrado pela péssima condução da política externa brasileira, sobretudo durante a pandemia, que exige habilidades típicas da diplomacia que parecem faltar ao Chanceler. Perante senadores muito insatisfeitos, e pressionado pelas notícias de que estaria demissionário, mentiu e tergiversou reiteradamente. Na Comissão da Câmara, que o ouviu em reunião morna, o visivelmente nervoso Ernesto Araújo gaguejou mais do que de costume e, quebrando o pouco verniz que ostenta, ofendeu pessoalmente um dos deputados – como se não fossem as mentiras desrespeito bastante.

Ernesto Araújo também desacreditou a imprensa, declarando que simplesmente não se informa, não lê, não acompanha os grandes veículos de comunicação.  Um perfeito negacionista

A exemplo do que fizera na véspera o presidente Jair Bolsonaro, o Ministro repetiu a informação de que o Brasil ocupa a 5ª posição entre os países que mais vacinaram no mundo. A informação é verdadeira, mas incompleta e enganosa. Em números proporcionais (número de doses por cem habitantes), o país está na 60ª posição no ranking mundial. Ainda no campo da estatística sobre vacinas, quando o Brasil aderiu ao Covax Facility – consórcio coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a produção de vacinas contra o novo coronavírus – com meses de atraso, no final setembro de 2020, o governo brasileiro optou pela cobertura mínima, assegurando a imunização de apenas 10% dos brasileiros. Naquela época, eram pouco menos de 150 mil mortos no país. Hoje, são mais de 300 mil vítimas. Optamos pela metade das doses e agora temos o dobro dos mortos. Na véspera das audiências com os parlamentares, 3.158 vidas haviam sido perdidas para a Covid no Brasil, enquanto, no mundo, o total fora de 9.889 óbitos pela doença.  Com apenas 3% da população do planeta, o país tem respondido diariamente, em média, por 30% de todos os mortos pela pandemia no mundo.

“Eu não me informo”

Ernesto Araújo negou que a recusa brasileira em apoiar a quebra de patentes das vacinas prejudique as nações mais pobres e em desenvolvimento. Negou haver hostilizado vizinhos, como Argentina, Venezuela e, especialmente, o maior parceiro comercial do Brasil, a China. Negou o constrangimento recente em visita controversa a Israel, onde foi publicamente repreendido por não usar máscara. Negou o alinhamento aos Estados Unidos de Donald Trump. Negou desrespeitar minorias e desdenhar da ciência e do meio ambiente, sobretudo no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Recentemente, na 46ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, negou-se a endossar Declarações Conjuntas em defesa de direitos das mulheres e do reconhecimento do direito ao meio ambiente saudável como um direito humano. Negou que a ruptura de posturas históricas da diplomacia brasileira – como o apoio à condenação, pelas Nações Unidas, ao embargo americano a Cuba – represente a corrosão de princípios que norteiam as relações internacionais do país e estão positivados na Constituição de 1988, entre os quais a não-intervenção e a prevalência dos direitos humanos. Ernesto Araújo também desacreditou a imprensa, declarando que simplesmente não se informa, não lê, não acompanha os grandes veículos de comunicação. Um perfeito negacionista.

Não pode haver, para o Beato Salu, lugar no panteão da pátria, ao lado de nomes como Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, San Tiago Dantas, João Cabral de Melo Neto e Celso Amorim, que tanto honraram a chancelaria brasileira

A temperatura subiu no Senado quando o Assessor Especial do Presidente da República que acompanhava o Ministro, Filipe Martins, fez um gesto duvidoso, identificado com o sinal racista, portanto, criminoso de WP – White Power,  movimento de extrema direita da autodeclarada “supremacia branca” – e, ao mesmo tempo, plausivelmente confundido com sinal obsceno. Ou, menos provável, de “OK”, já que brasileiros usam mais o polegar apontado para cima. O gesto inadequado, para dizer o mínimo, dificilmente se confunde com a alegação de Martins – também conhecido como “Sorocabannon” – de que apenas ajustava a lapela do terno.

Às avessas, o flagrante em Martins remete à cena do filme Bastardos Inglórios na qual um espião inglês infiltrado, fazendo-se passar por oficial alemão da SS Nazista, é desmascarado ao inadvertidamente sinalizar o número 3 do modo convencional britânico, que difere do germânico. Já o dog whistle (“apito de cachorro”) de Filipe Martins foi um sinal voluntário e, embora ostensivo, direcionado àqueles que reconhecem a mensagem de ódio e com ela se identificam, sempre com o escudo da evasiva plausível. A covarde provocação do assessor de Bolsonaro e aspirante a Ernesto não pode ficar impune.

Por mero e infeliz acaso, a audiência coincidiu com a semana em que o MERCOSUL completou 30 anos.  Em 26 de março de 1991, os presidentes do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai assinaram o Tratado de Assunção, criando o bloco econômico estratégico para além dos quatro países fundadores. O Mercosul contempla um projeto geopolítico de América Latina. Hoje enfraquecido, o Mercosul é apenas um dos exemplos de política de Estado não cumprida pelo Itamaraty de Ernesto no governo de Bolsonaro, que ontem abandonou a reunião virtual em que os presidentes celebravam o aniversário e debatiam o futuro do bloco. Preterem um mercado com potencial para reafirmar a complementaridade econômica e a cooperação entre os Estados sul-americanos e, ainda, potencializar a vocação de liderança regional do Brasil. Afinal, não é esse o papel que o olavo-bolsonarista Ernesto Araújo almeja para o país cujos mais altos interesses deveria representar. A aspiração pessoal que ele projeta para o Brasil já foi dita claramente: que sejamos um pária.

Ernesto Araújo precisa sair. Vivemos um momento extraordinário, na pior acepção da palavra. Mesmo em circunstâncias ordinárias, ele sempre esteve aquém do cargo. Que siga sozinho o caminho de “pária, com orgulho” que traçou para si! Ou convide Filipe Martins. Não pode haver, para o Beato Salu, lugar no panteão da pátria, ao lado de nomes como Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, San Tiago Dantas, João Cabral de Melo Neto e Celso Amorim, que tanto honraram a chancelaria brasileira.

* Márcia Azevedo é Analista Legislativo da Câmara dos Deputados. Jornalista, Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília; em Economia, pela George Washington University; em Direito Constitucional, pelo Instituto Brasiliense de Direito Público; em Justiça Social e Direitos Humanos, pelo Instituto Legislativo Brasileiro (ILB/Ilanud), e em Instituições e Processos Políticos, pelo Centro de Formação, Aperfeiçoamento e Treinamento da Câmara dos Deputados.

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