Darcy Ribeiro, a UnB e suas peles

A UnB escolhe um novo reitor. São três candidatas, nutridas pelo ethos do generoso projeto que formou a UnB. Todas leais aos seus princípios, numa garantia de que não haverá traição à concepção dessa bela utopia acadêmica

José Geraldo de Sousa Junior – Opinião para o Correio Braziliense

Em seu discurso ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Copenhagen, o fundador da Universidade de Brasília (UnB), Darcy Ribeiro, confessou não ter mãos para fazimentos, compensadas pela exaltação que o mobilizava, que o afetava, o amor às gentes:  “As ínvias gentes índias, com quem convivi intimamente tantos anos, os mais belos que vivi. As gentes nacionais, que me acolheram nos meus longos anos de exílio mundo afora. Mas, principalmente, minha amada gente brasileira, que é minha dor, por sua pobreza e seu atraso desnecessários”. 

Ao seu jeito sentipensante, se comparando “com as cobras, não por serpentário ou venenoso, mas tão só porque, eu e elas, mudamos de pele de vez em quando. Usei muitas·peles nessa minha vida já longa”. Uma dessas peles é a de fazedor de universidades, América afora e no Brasil, a começar com o fazer civilizatório para conceber a UnB, a universidade necessária.

Vou a Darcy Ribeiro como uma fonte para lembrar que a pedra fundamental da educação e princípio da Universidade de Brasília reside em que “o Brasil não pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema. Essa é a tarefa da Universidade de Brasília. Para isso ela foi concebida e criada.” 

Por isso, em Darcy, a UnB foi concebida como uma universidade necessária, pensada em seu projeto como uma instituição que pudesse se vincular à nação, para cumprir funções que contribuíssem para o desenvolvimento do país e para atribuir ao caráter do saber acadêmico a condição de responder a desafios emergentes das expectativas de renovação social.

É notável constatar que a UnB jamais se deixou alienar socialmente, nem por elitismo, nem por corporativismo, nem por incapacidade paralisante de se interrogar e de questionar as condições de produção de conhecimento e de manter atenção aos interrogantes sociais acerca de seu papel. 

Assim como Darcy, também a UnB vai trocando suas peles, porém sempre renascendo em seus novos revestimentos. É a universidade tridimensional, conforme a pele interdisciplinar que lhe vestiu Cristovam Buarque; é a pele da inquietação, para abrir-se aos desafios da redemocratização, propostos pelo reitor Antonio Ibañez; é armadura da inclusão e dos direitos humanos, numa universidade alavancada pela demanda técnica de inovação e de responsabilidade social, até atingir os indicadores internacionais de excelência que foram alcançados na gestão da reitora Márcia Abrahão Moura. 

Agora, avizinha-se uma nova troca de pele. A UnB está em processo de consulta para a escolha de um novo reitor. Será uma reitora. Três mulheres, nutridas pelo ethos do generoso projeto que formou a UnB. Todas leais aos seus princípios, numa garantia de que não haverá traição à concepção dessa bela utopia acadêmica. Saudável exercício democrático-universitário que se fixará nas distinções sutis das propostas, a qualificação das associações que as pretendam realizar, a correspondência entre discursos, experiências e práticas. Separado o joio do trigo, agora o cuidado é separar o joio do joio e o trigo do trigo. 

Que não haja voluntarismos, ilusões tecnocráticas, financeirização privatizante da tremenda institucionalidade que sustenta a UnB. Que prevaleça a utopia assimilada já nas reformas de base, conforme o conteúdo da mensagem ao Congresso Nacional enviada pelo presidente João Goulart na abertura da sessão legislativa de 1964:

“A Universidade de Brasília (é destinada), sobretudo, a assessorar tecnicamente o governo brasileiro e tem por objetivos a formação científica de alto nível e o estudo dos problemas nacionais, no propósito de contribuir para a formação de soluções compatíveis com a realidade do país, (…) (de modo) que essa universidade (se constitua) em núcleo de uma autêntica elite intelectual empenhada no estudo e na solução dos múltiplos problemas nacionais no campo da cultura”.

É um momento rico para atualizar seu projeto de modo que a universidade necessária, assim denominada por Darcy Ribeiro, se faça também emancipatória. O que significa dizer também: solidária, comprometida com um conhecimento fundado na responsabilidade coletiva e na convicção de uma ética de redistribuição, que inclua e emancipe — tal como procurei reafirmar, teórica e politicamente.

José Geraldo de Sousa Junior — Foi reitor da Universidade de Brasília (UnB) de 2008 a 2012

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