José Comblin – 100 Anos de Vida

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

José Comblin – 100 Anos de Vida. Alzirinha Souza, Edelcio Ottaviani ( Organizadores). Aparecida (SP): Editora Santuário, 1ª edição, 2024, 128 p.

A obra “José Comblin – 100 anos de vida” reúne artigos que apresentam a vida, o trabalho, o pensamento e o legado do teólogo José Comblin (1923-2011), um dos mais importantes teólogos do Brasil e da América Latina, do pós-Vaticano II. Os artigos reunidos na obra foram apresentados na III Jornada José Comblin, realizada em 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre teólogo.

Meu primeiro contato com o pensamento profético e emancipador de José Comblin, assim o livro o nomina, foi por meio da leitura de seu livro de 1978, grafada a autoria como Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional- o Poder Militar na América Latina, na edição da Civilização Brasileira.Um livro indispensável e que li com atenção em razão do tema e da linha de libertação própria de um intérprete de Gálatas, uma epístola cara a Comblin,  tida como o manifesto da liberdade cristã e universalidade da Igreja. Leitura condizente com os tempos duros em que a obra foi escrita.

Eu ainda não conhecia Comblin o teólogo, o que só vim a fazer muito tempo depois, por meio de uma leitura muito profunda que dele faz Alzirinha Souza co-organizadora do livro 100 Anos de Vida, que já me anunciara a sua preparação e edição. Alzirinha, essa destacada teóloga católica que há dois anos, semanalmente, orienta nossas leituras – minhas e de um pequeno grupo doméstico – teológico-missionárias do Novo Testamento (já lemos com a sua orientação o Evangelho de Lucas, os Atos e estamos agora na leitura das Epístolas (Paulo), incluindo a Carta aos Gálatas. Pena que ainda não há a ordenação de mulheres. Alzirinha é leiga. Celebrasse e suas homilias me induziriam mais convicção, em sentido teológico-pastoral, do que a que me formou até aqui, no acumulado de meus 77 anos.

Valho-me frequentemente de aspectos até incidentais do substancioso manancial hermenêutico de Alzirinha. Então, quando nos escoramos em Comblin, seu amigo e seu tema de tese em teologia, em Louvain, sinto minha âncora bem fundeada. Até ouso ser assertivo (cf. https://estadodedireito.com.br/papa-francisco-carta-enciclica-fratelli-tutti/; ou, principalmente, cf https://estadodedireito.com.br/agenda-latino-americana-mundial-2024/), tal como registrei a propósito de outro trabalho em que ela teve forte participação autoral – https://estadodedireito.com.br/influenciadores-digitais-catolicos-efeitos-e-perspectivas/. Cito-me:

“desde uma perspectiva de  descolonização do mundo e da vida, disse isso em meu artigo, uma missão não só libertadora, no sentido de escapar dos reducionismos que a opressão e a espoliação produzem numa realidade de exclusão, mas a missão verdadeiramente emancipadora, aquela que não só liberta mas humaniza, pelo impulso daqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, além de muitas outras lições, ela que é leiga, professora na PUC-MG (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”. Comblin não está evidenciado nos documentos da Agenda, mas a partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco (“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol. Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.

O livro designa o personagem celebrado como José Comblin. É mais uma nominação que bem pode acrescer àquelas que são referidas no processo que na redemocratização (1985), buscou corrigir uma postura brutal da Ditadura quando, anota o processo instaurado no Ministério da Justiça buscou-se expulsá-lo e impedir seu retorno ao Brasil: Joseph Comblin ou Joseph Jules Comblin ou Joseph Combin ou Joseph Comblain.

À instância de Azirinha pedi a meu caríssimo amigo Jeam Uema, atual Secretário de Justiça, no Ministério da Justiça, a busca nos arquivos e o registro dessa saga. As anotações me comoveram, desde a abertura do processo (Processo de Expulsão nº 30.587/68, instaurado a partir de ofício da Deputada Federal Cristina Tavares, que para Sartre era a sua memória de Brasil (Simone de Beauvoir, A Cerimônia do Adeus. Madame Beauvoir lembra a moça ruiva, jovem jornalista que cativou Sartre e ciceroneou o casal em sua passagem pelo Brasil no ano de 1960). Aos seguintes encaminhamentos nos autos, de meu dileto amigo Humberto Pedrosa Espínola (parecer de 30/4/85, esclarecendo que a despeito do ofício da Deputada Cristina, atendendo “pedido da Comissão de Justiça e Paz da CNBB/Nordeste de revisão da permanência do Padre Joseph Comblin, perseguido pelo governo anterior”, cuidava-se mais propriamente de “revogação da determinação que proíbe o desembarque do alienígena no território nacional Padre Joseph Jules Comblin”.

Outra nota afetiva, a de encaminhamento para apreciação do Ministro Fernando Lyra pelo meu estimado amigo Cristovam Buarque, com quem trabalhei na Reitoria da UnB e no Ministério da educação, então Chefe de Gabinete do Ministro; e do notável Diretor Marcello Cerqueira, um dos mais destacados advogados brasileiros que se notabilizou na causa da advocacia da liberdade em defesa de presos políticos; ambos capeando a manifestação final de meu amigo-irmão Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, meu colega na Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF e na Comissão Justiça e Paz do DF, além de associados no Escritório de Advocacia de seu pai, o grande bâtonnier Antonio Carlos Sigmariga Seixas (sobre A. C. Sigmaringa Seixas, cf. meu Honradez e Dignidade, in Correio Braziliense, Brasil, 16/1/2016, pág. 5). O enunciado por Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Diretor-Geral do Departamento de Estrangeiros (3/5/1985), veio configurar o depacho final do Minsitro Fernando Lyra (10/5/1985): “arquivamento do processo e revogação da determinação que proíbe o desembarque…no território nacional”. Eis que Comblin voltou e está misturado ao solo brasileiro, seus restos revolvidos pela enxada que se fez sua teologia, a partir do chão que ele tanto amava.

Na apresentação do livro, num texto de intencionalidade manifesta – José Comblin: Uma Presença Necessária para o Tempo Presente – seus organizadores Alzirinha Souza e Edelcio Ottaviani, explicam o seu propósito: “Esta obra nasce de duas constatações importantes:  a primeira faz referência a duas formas de tratar a história. Podemos abordá-la de forma a esquecer, anular a sua própria construção ou fazer memória de pessoas e eventos. A segunda constatação, decorrente da primeira, faz referência à percepção de que alguns desses eventos ou pessoas se tornaram verdadeiros acontecimentos que redirecionam o rumo da história.  É a partir dessas duas constatações que o Grupo de Pesquisa José Comblin (PUCS-SP) e a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) realizaram a III Jornada José Comblin (1923-2011), em junho de 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre autor. O evento procurou, em seu sentido mais estrito, fazer memória de sua vida e obra, através de conferências, comunicações e debates, que tiveram por finalidade mostrar a importância de seu pensamento para o tempo presente, resultando nesta obra.    Nela, o leitor encontrará elementos do pensamento de Comblin, relidos através de um cronograma-teológico, que permite visualizar os elementos-chave de desenvolvimento de sua teologia ao longo de sua trajetória geográfica e intelectual, desde a Bélgica à sua amada América Latina, à qual dedicou a maior parte de sua vida pessoal, pastoral e intelectual”.

Além do Prefácio –  Pe. José Comblin: testemunho palpável do amor de Deus entre nós, da inteligência acadêmica a serviço dos pobres – a cargo de Domingos Zamagna, jornalista e professor em São Paulo, seu ex-aluno, a obra traz as seguintes contribuições: José Comblin (1923 – 2011): teólogo, missionário e educador  atento aos sinais dos tempos, de Edelcio Ottaviani, co-organizador, num texto que é o fio-condutor da tessitura do livro; José Comblin, uma testemunha epocal do Concílio Vaticano II. Vida no Chile de 1962 a 1965, de Anderson Frezzato; José Comblin: Missão e Testemunho na América Latina, de Adauto Guedes Neto; Uma ‘Ideia Arrojada’: José Comblin e a Fundação do Seminário Rural na Paraíba, de Elenilson Delmiro dos Santos; A Pneumatologia de José Comblin: Sua Contribuição para a Teologia (Brasil, 1980-2011), de Alzirinha Souza, co-organizadora; José Comblin, Teólogo Biblista: do Chão da Vida à Elaboração Teológica,  de Rita Maria Gomes; Como ler os livros de José Comblin? (Uma contribuição à III Jornada José Comblin, na PUC de São Paulo, entre 05 e 08 de junho de 2023), de Eduardo Hoornaert; além de um posfácio – Projetando Comblin em seu legado, desde o chão da amada “Pátria Grande”, assinado por Alder Júlio Ferreira Calado.

O material autoral foi acomodado pelos organizadores em tópicos estruturantes assim constituídos: BRASIL 1957-1965 Chegadas e partidasBRASIL 1972-1980 Conflitos e profecia;  BRASIL 1980-2011 Caminhos Teológicos à luz do Espírito; 2010 aos dias atuais HERANÇA TEOLÓGICA. Eles se prestam a periodizar, mas também a tematizar um percurso, e nesse trânsito, divisar os sinais temporais – de antes e de agora para designar os nossos tempos e os chamados que nos convocam, Conforme diz Edelcio Ottaviani, ao cartografar as contribuições, trata-se de “destacar os aspectos teológicos, missionários e educativos de Comblin atentos à leitura dos ST nos primeiros anos de seu ministério presbiteral e como missionário na América Latina”, mas também de situar esses aspectos “presentes ao longo de toda a sua vida”, desde “suas primeiras reflexões teológicas, publicadas em periódicos e que apresentam sua conexão com temas atuais discutidos posteriormente no Concílio Vaticano II, “nos moldes da Teologia das Realidades Terrestres” de Gustave Thils”, sem ter tergiversar em face “das incongruências notadas por ele nas preocupações do clero europeu com o seguimento de Jesus, trocando a Parte pelo Todo, deixando-se mais levar pelas relações de poder do que pelas exigências do Evangelho”.

Assim que, “como missionário, soube logo compreender as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira, particularmente no Sudeste do Brasil”, uma experiência que imanta a “atuação acadêmica de Comblin em espaços formais e informais, pautada no discernimento do Espírito, que animou as falas e as práticas de Jesus, dando especial atenção ao discipulado feminino e estabelecendo bases concretas para o discipulado de iguais”.

Uma leitura em suma que nos leva a discernir no âmbito teológico, e não só, também no mundo, movidos ao impulso de fé ativa para escavar o chão da libertação e abrir sendas e caminhos ao repique de enxadas missionárias.

|Foto Valter CampanatoJosé Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

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