Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
“Democracia, uma pedagogia da cidadania”
O título do artigo é de Mateus Quevedo, da Fiocruz Brasília, um dos coordenadores da atividade de formação, promovida pelo Núcleo Angicos, que tive a satisfação de poder dela participar. Está assim em matéria para o Informativo da Fiocruz, publicada em 17 de junho de 2024. Para uma síntese da atividade e complementos, sugiro conferir https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/noticias/leitura-noticias/?id=103226&t=democracia-uma-pedagogia-da-cidadania.
Com efeito, eu havia recebido de Kelly Dandara da Silva Macedo, Coordenadora Adjunta do Núcleo de Educação Popular, Cuidado e Participação na Saúde – Angicos da Fiocruz Brasília, o convite para as atividades que se referem ao Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica (PRMAB), sendo que neste cenário de aprendizado e evolução contínua, ela dizia no convite, “seguimos com os encontros do módulo teórico: “Educação Popular e Educação Permanente” e “gostaríamos de convidá-lo para facilitar a aula-encontro, em específico, durante abordagem da temática sobre “A Democracia e a Participação Popular”.
No convite ela explicava que o Núcleo “é novo na instituição, mas trabalhamos com vários projetos de ação territorial, pesquisa e formação há algum tempo, a exemplo da Especialização em Educação Popular em Saúde o qual, por meio do convite do coordenador Osvaldo Peralta Bonetti, o senhor participou da aula inaugural em 2021, que tinha como tema “Amorosidade em Tempos de Pandemia”.
Ela ainda acrescentava que no “Núcleo também trabalhamos com o Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica – PRMAB, que tem como apoiador o professor Swedenberger Barbosa. Esta formação tem por objetivo qualificar o processo formativo de profissionais da saúde, por meio de um processo de aprendizagem que se dá nas Unidade Básicas de Saúde do Distrito Federal, e que é realizado por meio da problematização e reflexão do vivido no cotidiano do trabalho, tendo como eixo metodológico a Educação Popular em Saúde. Além disso, os educandos tem uma carga horária teórica, que é realizada através de módulos e que tem como objetivo subsidiar suas vivências no campo de prática (serviços de saúde). Atualmente, estamos ministrando o módulo de Educação Popular em Saúde que tem por objetivo refletir acerca da Educação Popular em Saúde no contexto da Saúde Pública e fomentar práticas de cuidado transformadoras, com vistas a contribuir para uma maior autonomia dos sujeitos e o fortalecimento das comunidades”.
Não escondi a minha satisfação em acudir ao chamado. Não é de agora a minha ligação com a saúde como um direito social, um bem público, fora de mercado, atributo da vida digna e não um recurso mercadorizável. Diferente da matéria de Mateus que lembra a minha participação na 8ª Conferência Nacional de Saúde, ali não estive como delegado, mas como painelista, logo em seguida à abertura e dos discursos dos ministros da saúde (Roberto Figueira Santos), da Previdência Social (Raphael de Almeida Magalhães), do Diretor-Geral da OPAS (Carlyle Guerra de Macedo), do Presidente da República (José Sarney); da Conferência de inauguração proferida pelo Presidente da Conferência Antônio Sérgio da Silva Arouca; meu tema: “A Construção Social da Cidadania” (8ª Conferência Nacional de Saúde, Anais. Brasília: Ministério da Saúde, 17 a 21 de março de 1986).
Ao impulso dessa concepção de saúde, saúde como direito, abre-se o percurso que tem permitido aprofundar o sentido democrático necessário a esse processo de construção social. Um registro desse percurso está no vídeo do Seminário Cebes 40 anos: Democracia e Saúde. Eixo temático ‘Crise Política, Golpe Institucional e impactos sobre a Democracia e os Direitos Sociais’ (https://www.youtube.com/watch?v=_aGQVP5yN-w) produzido pelo CEBES.
Mas está também documentado na vertente que ao tema atribuiu o programa do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, em publicações que alcançaram relevo conforme o livro Sousa Junior, José Geraldo de et al., orgs., O Direito Achado na Rua. Introdução Crítica ao Direito à Saúde, Brasília, CEAD/UnB, 2008 e Maria Célia Delduque, José Geraldo de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa et al, orgs. Série El Derecho desde laCalle, vol. 6: Introducción Critica al Derecho a laSalud. Brasília: UnB/Opas/Fiocruz, 2012.
Nessas publicações vamos encontrar trabalhos do professor Swedenberger Barbosa (UnB e Fiocruz), atual Secretário-Executivo do Ministério da Saúde, mencionado por Dandara. Com Swedenberger venho entretendo contínua cooperação. Nas publicações mencionadas, da Série O Direito Achado na Rua, mas também na condução de disciplina no Programa de Pós-Graduação da Fiocruz Brasília, relevo para a disciplina DIREITO À SAÚDE, DIREITOS HUMANOS E O DIREITO ACHADO NA RUA: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS DIREITOS, com a ênfase: “Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua: Reflexões sobre o Futuro no Pós-Pandemia. Mundo do trabalho na saúde: repercussões no cenário pandêmico e pós-pandêmico e aspectos da gestão da ética pública” (https://estadodedireito.com.br/ciencia-saude-coletiva-publicacao-de-abrasco-condicoes-de-trabalho-e-saude-mental-dos-trabalhadores-da-saude-no-contexto-da-covid-19-no-brasil/), além de outras incidências por mim mencionadas ao fazer a crítica de seu livro A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras, Swedenberger do Nascimento Barbosa. Brasília: Editora UnB, 2010, 188 pp. (https://estadodedireito.com.br/a-bioetica-no-estado-brasileiro-situacao-atual-e-perspectivas-futuras-swedenberger-do-nascimento-barbosa/).
Um pouco desse modo sentipensante(método desenvolvido pelo sociólogo colombiano Orlando Fals Borda) inseri em minha interlocução com o grupo de residentes, e que foi bem sintetizada na matéria de Mateus Quevedo, quando ele anota minha consideração de que essa construção social pode ser apreendida no processo de constitucionalização que demarca a experiência constituinte brasileira: “O que separa uma constituição da outra (A Constituição da ‘mandioca’ de 1824 e a ‘cidadã’ de 1988) é a luta por emancipação, só assim foi possível sair da absoluta alienação do trabalho para uma constituição onde a emancipação não encontra limites” apontou. “É necessário se armar de capacidade ativa para fazer com que essa consciência, que a história permite se abrir como condição de presença na realidade, se transforme em ação política e emancipatória”, na medida em que se desvele o fio condutor desse processo, nele compreendidas “as transformações necessárias para radicalizar a democracia (como) resultado de um movimento social em que o processo é iniciado e conduzido por sujeitos que se associam a um objetivo comum. Foi assim, que ele explicou como o movimento social sanitarista foi protagonista na formulação do direito à saúde garantido na Constituição de 88”.
Mateus destaca de minha apresentação, a nota de distinção para a demarcar a construção do SUS (Sistema Único de Saúde): “Foi trabalhado a construção pelo engajamento do movimento sanitarista que levou a configuração de uma concepção de saúde como um direito e não como uma mercadoria, é o Sistema Único de Saúde (SUS), que significa que a democracia não é uma abstração, mas, uma concretude de sujeitos que a realizam a partir do processo participativo, não é poder não é apenas poder constitucional, mas poder de povo”.
Um protagonismo que vai se imantar no sistema de educação e de formação que se constitui a partir do modelo de participação popular (deliberativa e de controle das políticas), tal como se manifestou por meio PORTARIA Nº 2.761, DE 19 DE NOVEMBRO DE 2013, que Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS).
É notável o que estabelece o art. 3º, ao fixar que a PNEPS-SUS é orientada pelos seguintes princípios: I – diálogo; II – amorosidade; III – problematização; IV – construção compartilhada do conhecimento; V – emancipação; e VI – compromisso com a construção do projeto democrático e popular. Definindo cada categoria, inédita em qualquer sistema funcional, mas própria da concepção de educação em Paulo Freire. Sobre uma dessas categorias inéditas – a amorosidade – a portaria vai prescrever, no § 2º: “Amorosidade é a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas”.
Com a mesma intensidade a Portaria vai fixar (Art. 4º), os eixos estratégicos da PNEPS-SUS: I – participação, controle social e gestão participativa; II – formação, comunicação e produção de conhecimento; III – cuidado em saúde; e IV – intersetorialidade e diálogos multiculturais, definindo, como está no conteúdo do programa desenvolvido com os residentes, que o § 1º eixo estratégico da participação, controle social e gestão participativa tem por objeto fomentar, fortalecer e ampliar o protagonismo popular, por meio do desenvolvimento de ações que envolvam a mobilização pelo direito à saúde e a qualificação da participação nos processos de formulação, implementação, gestão e controle social das políticas públicas (§ 1º).
Essa dimensão participativa esteve presente no encontro expressa na manifestação interpelante e imaginativa dos residentes presentes. Mateus Quevedo registrou algumas dessas manifestações, em vídeo, para a memória da sessão:
Isabela de Almeida Menezes, da 4ª turma da Residência, falou sobre a importância deste debate para as turmas de residentes. “Que bom que a gente escolheu estar aqui, de estar neste lugar de residentes, de especialista de saúde pública, de defender o SUS, não é o caminho mais fácil, o mais rentável, mas é o que transforma o mundo, o futuro, as pessoas, a educação, a saúde, a saúde pública”.
“Qualificar a participação nas conferências distritais de saúde é um passo importante e que muito tem aver com esse processo de emancipação, tivemos residentes que participaram das conferências e puderam entender os desafios e potencialidades do processo de participação social”, apontou Luciana Tavares Barbosa, integrante do Núcleo de Educação Popular, Cuidado e Participação na Saúde (Angicos) da Fiocruz Brasília.
O que me levou, também em manifestação registrada por Mateus Quevedo, que a experiência vivida nesse contato pedagógico, revelou não só a convicção de a“Democracia, (é) uma pedagogia da cidadania”; mas um processode muita confiança também pedagógica: “Pelo que percebi de todos que manifestaram a presença de um conhecimento que se realiza, que não é apenas tópico no sentido da sala, do programa, é, também, em uma dimensão transformadora, utópica, de constituir um pensamento que transforma, pensamento-ação”, um pensamento de intervenção na nervura do real, dando calibre à Democracia e horizonte à emancipação.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
(*) José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).