Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Conflitos no campo Brasil 2023 / Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno. – Goiânia : CPT Nacional, 2024. 214 p.: il., tabelas, gráficos, fotografias.
Saiu a edição 2023 de um dos mais completos estudos sobre o tema dos conflitos do campo no Brasil. Ao fazer a recensão do relatório de 2022, tive a oportunidade de indicar o escopo, método e procedimento de elaboração – compartilhamento dos dados por uma forte rede de intercomunicação, conforme https://estadodedireito.com.br/comissao-pastoral-da-terra-conflitos-no-campo-brasil-2022/ (Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2022. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT). Goiânia: CPT Nacional, 2023, 254 p.).
A propósito, sintetizei:
Conflitos no Campo Brasil 2022 vem se juntar a outros estudos importantes sobre a violência nessa que é a mais crítica faixa de agressividade da expansão capitalista e da ganância acumuladora no mundo e em nosso país. Há poucos meses, também na UnB, tivemos o lançamento de relatório semelhante, do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, sobre violência contra os povos indígenas. A propósito, meu artigo na coluna O Direito Achado na Rua do Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/as-chamas-do-odio-e-a-continuidade-da-devastacao-relatorio-do-cimi-sobre-violencia-contra-os-povos-indigenas/. O Relatório pode ser consultado e copiado na página do CIMI (https://cimi.org.br/2022/08/relatorioviolencia2021/), violência contra os povos indígenas e seus territórios e sobre os conflitos no campo. Mas também quando uma virada democrática acontece no Brasil, com a volta de uma governança de base popular, participativa e radicalmente democrática que se abre à elaboração de políticas sociais e públicas que podem se valer desses estudos para orientar essas políticas.
O Relatório de 2023, lançado nesta segunda-feira, na CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, tem a seguinte composição:
Apresentação
Metodologia
Organograma dos temas publicados
Tabela 1 – Comparação dos Conflitos no Campo Brasil (2014 – 2023)
Infográfico 1 Ruptura política e contrarreforma agrária: geografia dos conflitos no campo brasileiro
Paulo Alentejano, Luiz Jardim Wanderley, Karoline Santoro, Pedro Catanzaro da Rocha Leão, Amanda Guarniere Ribeiro, Vinícius Martins
Tabela 2 – Conflitos no Campo
Conflitos por terra e concentração de renda
Tales dos Santos Pinto
Tabela 3 – Violência Contra a Ocupação e a Posse
O mercado de carbono e os impactos
negativos sobre as comunidades do campo
Carlos Augusto Pantoja Ramos
Tabela 4 – Conflitos por Terra
Povos e comunidades do campo: entre as águas que fluem para a Vida e as águas capturadas e contaminadas
Raquel Maria Rigotto e Aline do Monte Gurgel
Tabela 5 – Conflitos pela Água
Infográfico 2
CONFLITOS NO CAMPO, TERRA, ÁGUA
Infográfico 3
As cadeias produtivas do trabalho escravo em 2023
André Campos e Carlos J. Barros
Tabela 6 – Conflitos Trabalhistas
O paradoxo da (geo)grafia da violência e da r-existência no campo brasileiro: o caso da mãe Bernadete
Rafaela Pinheiro de Almeida Neves
Tabela 7 – Violência Contra a Pessoa
Mercantilização da natureza, espiritualidades e práticas de enfrentamento
Flávio Lazzarin
Tabela 8 – Assassinatos
Tabela 9 – Tentativas de Assassinato
Tabela 10 – Ameaças de Morte
Manifestações: as ações de resistência ao Marco Temporal e o avanço das ações de retomada e das teias de organizações dos territórios indígenas e tradicionais
Kum’tum Gamela
Tabela 11 – Manifestações
Notas
Listagem de Movimentos Sociais (2023)
Fontes de Pesquisa
Como nos anos anteriores, a divulgação do Relatório (na verdade um consistentes estudo muito autoral), foi recebida com grande interesse pelos meios críticos de comunicação. A mídia Ninja, assim se reportou ao evento:
Relatório da CPT – Conflitos no Campo 2023 (https://midianinja.org/news/brasil-bate-recorde-de-conflitos-no-campo-em-2023-norte-foi-a-regiao-com-mais-conflitos/): Brasil bate recorde de conflitos no campo em 2023; Norte foi a região com mais conflitos
E no corpo da matéria:
O relatório da CPT também ressalta a crescente preocupação com os conflitos relacionados ao acesso à água, onde fazendeiros, governos estaduais, empresários, hidrelétricas e mineradoras são apontados como principais agentes de violência
O ano de 2023 registrou um recorde de conflitos no campo no Brasil, conforme revelado pelo mais recente relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Divulgado nesta segunda-feira (22) em Brasília, o relatório destaca que o país enfrentou 2.203 conflitos no campo, afetando a vida de 950.847 pessoas.
Embora os números tenham aumentado em comparação com o ano anterior, a área em disputa diminuiu em 26,8%, agora totalizando cerca de 59,4 mil hectares. As regiões mais impactadas foram o Norte e o Nordeste, concentrando 810 e 665 ocorrências, respectivamente, seguidas pelo Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168).
A terra permaneceu como o principal ponto de disputa, com 1.724 disputas registradas em 2023, representando 78,2% do total de conflitos. Outros focos de tensão incluem disputas por água (225 ocorrências) e trabalho escravo contemporâneo na zona rural (251 ocorrências).
A violência contra a ocupação e a posse de terra se destacou, com 1.588 conflitos relatados, dos quais a invasão de territórios e a pistolagem foram os tipos mais prevalentes. Este último registrou um aumento de 45% em comparação com 2022, afetando principalmente trabalhadores sem terra, posseiros, indígenas e quilombolas.
O relatório também ressalta a crescente preocupação com os conflitos relacionados ao acesso à água, onde fazendeiros, governos estaduais, empresários, hidrelétricas e mineradoras são apontados como principais agentes de violência.
Ronilson Costa, coordenador nacional da CPT, expressou preocupação com a ascensão da extrema-direita e a falta de mediação estatal nos conflitos, destacando que o agronegócio tem gerado desequilíbrio ambiental e social.
O governo federal anunciou medidas para abordar os desafios, incluindo a compra de propriedades para reforma agrária pelo programa Terra da Gente, visando uma reforma agrária menos conflituosa. O Ministério dos Povos Indígenas também ressaltou esforços para acelerar demarcações de terras indígenas.
Apesar disso, críticas ao governo persistem, com chamados para uma ação mais efetiva na proteção dos direitos das comunidades tradicionais e dos povos originários.
*Com informações da Agência Brasil
Na sua página, o Instituto Humanitas, da Unisinos (Universidade do Rio dos Sinos), fez como é seu modelo de reunião de notícias, um excelente resumo do teor da publicação, colando no texto o seu exercício de pesquisa de temas correlatos, que podem ser consultados para complementar e aprofundar o conhecimento da matéria.
Trago o texto do IHU (https://www.ihu.unisinos.br/638784-o-brasil-registra-numero-recorde-de-conflitos-no-campo-em-2023-conforme-relatorio-da-comissao-pastoral-da-terra):
O Brasil registra número recorde de conflitos no campo em 2023, conforme relatório da Comissão Pastoral da Terra
Ao som de um lamento, ao ritmo grave e cadenciado do atabaque, três membros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) cantaram: “Chega Mãe Bernadete, chega Edvaldo, chega Fernando, chega por aqui, eu mandei tocar chamada, foi para resistir”. Esse momento marcou o início do lançamento do Caderno Conflitos no Campo 2023, realizado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em Brasília–DF, em 22 de abril de 2024.
Maria Bernadete Pacífico foi tragicamente assassinada em agosto de 2023 com 12 tiros no quilombo Pitanga dos Palmares, na região Metropolitana de Salvador. Por defender a mesma causa, o direito ao território, Edvaldo Pereira Rocha, líder do quilombo Jacarezinho (MA), foi assassinado em abril de 2022 com seis tiros.
Em outra situação, mas no mesmo contexto, Fernando Araújo dos Santos, um trabalhador rural sem-terra e sobrevivente do Massacre de Pau D’Arco no Pará, foi morto a tiros em janeiro de 2021. Mãe Bernadete, Edvaldo e Fernando não são exceções isoladas; no Brasil, há pessoas sendo mortas ao tentar proteger seus territórios e o meio ambiente de forças predatórias.
Sinais de esperança
O bispo auxiliar de Brasília (DF) e secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Ricardo Hoepers, deu as boas-vindas aos participantes e enfatizou que as dores, sofrimentos e mortes mencionadas no relatório representam as dores de Jesus Cristo. Ele destacou que a presença das pessoas que representam os agentes da CPT de todo o Brasil são sinais de esperança e ressurreição de Cristo. Em nome dos bispos do Brasil, dom Ricardo expressou sua gratidão pelo trabalho realizado pela CPT.
O administrador da prelazia de Itacoatiara (AM) e presidente da CPT, dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, SDV, enfatizou a importância da publicação do caderno para expor as violações de forma transparente. “O objetivo deste caderno é manter-se fiel ao Deus dos pobres e à terra que pertence a eles”, disse.
Ele ressaltou que publicação possui uma base teológica, lembrando que Deus escuta o clamor dos pobres. Dom Ionilton destacou também a dimensão ética do material, pois a luta pela terra é uma questão de justiça que requer uma ordem social equitativa. Salientou a necessidade de uma sociedade organizada para combater a violência no campo e salvar vidas. Além disso, mencionou a importância política do caderno, auxiliando as lideranças a serem protagonistas de suas histórias com base em dados seguros e recordou que a CPT tem como missão ser parceira, não substituta, dos trabalhadores em suas lutas.
Outra dimensão do caderno, segundo o bispo, é a pedagógica porque promove transformações necessárias e históricas, mantendo vivas as lutas passadas e inspirando as futuras gerações. Por fim, destacou que o conteúdo possui embasamento científico, passando por processos rigorosos de levantamento e consolidação de dados antes da publicação, incluindo averiguações, confirmações e análises.
Dos conflitos no Brasil
Dos 2.203 conflitos no campo registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2023, no relatório Conflitos no Campo Brasil, a maior parte é relacionada aos conflitos por terra (78,2%), representando 1.724 ocorrências. Em relação ao ano de 2022, houve um aumento de 7,6% no número de ocorrências nesse eixo, em que 187.307 famílias tiveram suas vidas impactadas pelas violências desse tipo de conflito.
Os números revelam uma intensificação da violência contra os povos da terra, das águas e das florestas, que vivem sob a mira dos conflitos no campo no Brasil. Do total de conflitos por terra em 2023, 92,1% é referente às Violências contra a Ocupação e a Posse e/ou contra a Pessoa (1.588), representando um aumento de 4,3% nos registros de violência nesse eixo em relação ao ano anterior.
Subvertendo tamanha violência, os povos e comunidades do campo somam ações coletivas de resistências. As novas Ocupações/Retomadas (119) e os novos Acampamentos (17) superaram em 60,8% e 240%, respectivamente, os números de 2022. As ações de Retomada foram protagonizadas por indígenas (22) e quilombolas (3), já as Ocupações (94) foram realizadas pelas demais identidades sociais camponesas. Os sem terra e posseiros foram responsáveis por todos os novos Acampamentos em 2023, que representam um aumento expressivo em relação ao ano anterior, mas ainda demonstram números tímidos em relação aos dados alarmantes de violências contra as comunidades, que cresceram intensamente neste mesmo período.
Em 2023, a discrepância entre os números de violência e ações de resistências nos conflitos por terra continuou na tendência de crescimento iniciada em 2016. Este ano, os registros apontam 92,1% correspondente às violências, enquanto as ações de resistências representam apenas 7,9% das ocorrências. As análises presentes no relatório apontam que esse quadro é resultado da escalada da extrema direita, com a reconfiguração das forças políticas e econômicas após o Golpe/Impeachment, somada ao trágico e criminoso governo Bolsonaro, que promoveu uma verdadeira política de ódio contra os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas, os tornando ainda mais vulnerabilizados, como expresso nos dados dos últimos anos.
Este contexto sociopolítico não apenas permitiu, como preparou o terreno para que o agronegócio avançasse inescrupulosamente contra as comunidades do campo, que enfrentam cotidianamente invasões de suas terras e territórios, pistolagem, incêndios criminosos, contaminação por agrotóxicos, grilagem e desmatamento, entre tantos impactos sofridos pelos povos em defesa de seus modos de vida, dos direitos humanos e da natureza. Agrupando as categorias de agentes causadores de violências identificados como fazendeiros, grileiros e grandes arrendatários, em 2023, foram registradas ocorrências de pistolagem (165), invasão (181), grilagem (86), desmatamento ilegal (67), incêndios (34) e contaminação por agrotóxicos (21) como algumas das violências promovidas por eles no Eixo Terra.
Geografia dos conflitos por terra
Dos estados em que mais se registraram conflitos por terra, destacam-se a Bahia (202 ocorrências), seguida do Pará (183), Maranhão (171), Rondônia (162) e Goiás (140). Do recorte por região, a que apresenta maiores números de conflitos por terra é a região Norte (700 ocorrências), que acumula 40,6% do total, seguida da Nordeste (530), representando 30,7%. A região Centro-Oeste registrou 300 ocorrências (17,4%), a Sudeste obteve 106 registros (6,1%), e a região Sul, com 88 (5,1%).
Principais causadores das violências
Em 2023, o principal agente causador das violências no Eixo Terra foi o Fazendeiro, responsável por 31,17% das violências, seguido da categoria Empresário, com 19,71%, o Governo Federal, com 11,02%, Grileiro, com 9,06% e o Governo Estadual, com 8,31%. Houve uma diminuição nos números de violências causadas pelo Governo Federal, passando de 240, em 2022, para 175 ocorrências, em 2023, uma diminuição de 27,1%.
Nesse, o tipo de Violência contra a Ocupação e a Posse denominada Omissão/Conivência cujo o Governo Federal foi o agente causador diminuiu de 214 ocorrências, em 2022, para 165, em 2023 (-22,9%). Algumas mudanças de atuação do novo governo podem justificar a diminuição desses números, com a abertura de canais de diálogos com movimentos e organizações de luta no campo, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
Já em relação aos Governos Estaduais, os dados revelam um aumento de 109,5% no número de violências causadas, passando de 63 ocorrências, em 2022, para 132, em 2023. Foram 13 tipos de violência protagonizados por este agente causador, com destaque para Omissão/Conivência (58 ocorrências) e as ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas (103 ocorrências). Em 2023, os estados de Goiás e Bahia estiveram à frente neste recorte de categoria que causou a ação.
Indígenas e posseiros são as principais vítimas
É sempre válido enfatizar que os dados não são apenas números, é preciso humanizá-los. Os registros da CPT evidenciam a intensidade e os tipos de violência a que estão submetidos os povos do campo, das águas e das florestas. Por trás dos números dos conflitos está o martírio de famílias, povos e comunidades que vivem uma rotina de ataques contra suas vidas e suas terras e territórios. Povos que sofrem com ameaças, expulsão, destruição de suas casas, pertences e roçados, despejos e outras diversas violências já mencionadas.
Como no ano anterior, os Indígenas continuam a ser a categoria que mais sofreu violência no Eixo Terra, com 29,6% do total de violências registradas. Desde 2019, os povos originários aparecem nos registros da CPT como a categoria que mais vem sofrendo violências nesse eixo. Em 2023, não foi diferente: com um crescimento de 10,8% em relação a 2022, os indígenas foram as vítimas em 470 ocorrências de violências por terra.
Em número de ocorrências, seguem os Posseiros (18,7%), os Sem Terra (17,5%), os Quilombolas (15,1%), e os Assentados (6,7%). O relatório destaca um aumento de 61,6% das violências sofridas pelos sem terra, passando de 172 ocorrências em 2022, para 278 em 2023. Esse aumento pode ser decorrente do crescimento do número de novas ocupações e acampamentos, uma vez que nos territórios em que houve estas ações de resistências foram registradas, em 2023, 96 ocorrências de Violência contra a Ocupação e a Posse, 34,5% do total das violências sofridas pelos sem terra.
A rotina de ataques contra povos e comunidades
Os dados levantados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT) permitem aprofundar nos tipos de violência sofridas pelas comunidades no contexto da luta pela terra. Como nos últimos dez anos, Invasão é o tipo de Violência contra a Ocupação e a Posse com o maior número de registros em 2023. Foram 359 ocorrências de invasões no ano, que afetaram 74.858 famílias.
O ano de 2023 também foi o que mais se registrou ocorrências de Expulsão no último decênio e o segundo em que mais se registrou famílias expulsas dos territórios. Foram 37 ocorrências, que envolveram 2.163 famílias. Destaca-se que, dessas 37 ocorrências, 59,4%, contaram com algum tipo de apoio das forças policiais, evidenciando a respaldo dessas forças no processo de retirada das famílias das áreas, sem que houvesse a mediação do Poder Judiciário.
Outro tipo de violência que se destacou foi em relação às ocorrências de Despejo Judicial, com aumento de 194,1%, passando de 17, em 2022, para 50 em 2023. O crescimento sucede um período de diminuição dos casos, devido a suspensão dos despejos coletivos, proposto na Arguição de Descumprimento de Poder Fundamental (ADPF) 828, entre meados de 2020 e final de 2022, com o intuito de evitar os impactos maiores da pandemia junto às populações vulneráveis. Passado esse período, percebe-se que a atuação de fazendeiros e empresários do campo segue respaldada pelo Poder Judiciário, voltando fortalecida em 2023.
Em relação às ocorrências de Grilagem, em 2023 foram registrados 152 casos, envolvendo 29.797 pessoas. Desses, 25% ocorreram em territórios indígenas (38 ocorrências), e 26,3% ocorreram em terras de famílias posseiras. Os casos de Pistolagem registraram um aumento de 45%, com 264 ocorrências. Dessas, 113 contaram com algum apoio das forças policiais. Os sem terra foram os principais alvos das ações de Pistolagem, representando 130 ocorrências, seguidos pelos posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19). Os números de Desmatamento Ilegal e Incêndios caíram em 2023, com redução de 33,3% e 38,6%, respectivamente. Foram registradas 27 ocorrências de contaminação por agrotóxicos no Eixo Terra, com 2.068 famílias atingidas no ano.
Conflitos pela Água representam 10,21% dos conflitos
Nos últimos anos, verifica-se uma queda nas ocorrências de Conflitos pela Água, após um pico de registro em 2019, o que demonstra os impactos dos crimes de Mariana, Brumadinho e do vazamento de petróleo de um navio cargueiro no litoral brasileiro naquele ano. Em 2023, as ocorrências de conflitos no Eixo Água chegaram a 225, número 1,32% menor que os 228 registrados em 2022.
A região Nordeste concentra o maior número de Conflitos pela Água, com 71 ocorrências. Entre os estados com mais registros, estão o Paraná (44), a Bahia (34), o Maranhão (22) e o Pará (22). Dentre os causadores das violências contra as comunidades nesse eixo, o Fazendeiro ficou em primeiro lugar, com 27,56%, seguido por Empresário nacional e internacional, com 21,33%, do Governo Estadual, com 19,56%, e Mineradora nacional e internacional, com 10,22%. As cinco categorias de identidades sociais que mais sofreram com ações violentas foram os Indígenas (24,44%), Pescadores (21,78%), Ribeirinhos (13,33%), Quilombolas (12,44%) e Assentados (8,44%).
A principal Situação de Conflito pela Água registrada em 2023 foi o Não Cumprimento de Procedimentos Legais (78 ocorrências), decorrente da violação de direitos das comunidades, que são atacados por inúmeras formas de projetos de empreendimentos que têm a água como objetivo central de atuação. Em seguida, as situações de Destruição e/ou Poluição (56), sendo a maioria decorrente do Uso e Preservação (46 ocorrências).
Os registros de Diminuição de Acesso à Água somaram 37 ocorrências em 2023, que representam as várias dificuldades criadas às comunidades para acessarem os corpos d’água. A Contaminação por Agrotóxico resultou em 26 ocorrências de conflitos pela água, um aumento de 52,9% em relação aos números de 2022. Os conflitos pela água são permeados por denúncias por parte de povos, comunidades e organizações sociais aos projetos de empreendimentos predatórios, uma vez que atuam por meio da apropriação, contaminação, privatização e mercantilização desse bem comum.
Observe-se que a bela reportagem, de Osnilda Lima (com informações da Comissão Pastoral da Terra), publicada por CNBB, 23-04-2024, começa com a referência da mística, preparada a partir do lamento que foi o modo sensível de apresentar o documento.
E deriva da abertura editorial do trabalho, “Por que cantamos?”, tal como perguntava Mário Benedetti, em um poema eivado de sofrimento e desesperança, no qual o canto não teria lugar diante dos sofrimentos da vida. Mas Benedetti também respondia com a esperança e com a força que o canto traz para as lutas, para os homens e mulheres militantes desta vida, que pretendem construir um mundo melhor.
Por isso dizem os editores, na edição do relatório Conflitos no Campo Brasil 2023, “queremos presentear os leitores e as leitoras com a imagem da capa, que é a representação das (Re)existências populares. Ela retrata o tambor de crioula para os povos, com os corpos, cores, movimentos e sorrisos, e ao ler as análises presentes nesta publicação, os convidamos a compreender ao modo de Benedetti, porque dançamos”.
E eles afirmam: “Perguntam por que dançamos diante de 2.203 ocorrências de conflitos no campo. Dessas, a maioria sendo caracterizada pela violência dirigida às diversas comunidades da terra, das águas e das florestas. Os conflitos no campo atravessam a história do Brasil, mas, após o golpe contra o governo de Dilma Rousseff, em 2016, a situação no campo se agravou em conflitividade, com números acima das 1.500 ocorrências anuais, entre 2016 e 2018, e chegando a mais de 1.900 por ano entre 2019 e 2022. As ocorrências registradas em 2023 — o maior número da série histórica da Comissão Pastoral da Terra — apresentam uma taxa 8% superior às ocorrências documentadas em 2022, sendo que, nos últimos 10 anos, a violência no campo cresceu 60% em intensidade. A maior parte dos conflitos, em 2023, ocorreu na região Norte, representando 35% das ocorrências, e na região Nordeste, 32%. O Maranhão — território de origem do tambor de crioula — é o segundo estado com maior registro de conflitos entre 2014 e 2023, com 1.926 ocorrências, atrás apenas do Pará, com 1.999 ocorrências no mesmo recorte temporal”.
E, tal como assina o Conselho Editorial | Março de 2024:
Dançamos descalços, sobre a terra nua, e em comunhão com os que estão em volta, pois a riqueza que queremos acumular não deve ser restrita apenas a uma pequena elite que pretende controlar a imensidão do território brasileiro. Dançamos para que a riqueza seja repartida de modo igual. Dançamos para que os territórios sejam destinados de modo igual a todas e todos que neles trabalham e que deles necessitam para produzir e reproduzir sua vida. Dançamos e cantamos, pois é nossa forma de viver. Dançaremos e cantaremos no mesmo ritmo e movimento, pois é nossa forma de lutar.
Por isso também, faz todo sentido a Dedicatória lançada na publicação:
Primeiro ao MST:
Há 40 anos…
Nascia o MST (Movimento de Sem Terra), em contexto de ditadura civil-militar, na cidade de Cascavel, estado do Paraná. Movimento popular de luta que surgiu reivindicando a justa distribuição da terra, a reforma agrária e a transformação social, contra as cercas do latifúndio. À medida que caminhava e lutava percebeu que a democratização do acesso à terra precisava pautar também a disputa do modelo produtivo de agricultura, bem como uma uma reforma agrária que defende o meio ambiente, a educação, cultura, saúde e as práticas agroecológicas, por alimentos saudáveis e sem agrotóxicos, em contraposição ao modelo do agronegócio (antigo latifúndio), que transforma a terra/território em mercadorias e se sustenta por meio da exploração do trabalho e do controle político do mercado. Parabéns, MST! Pelos seus 40 anos de luta e resistência em defesa da reforma agrária e dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras do campo (e da cidade).
Depois, num In memoriam a:
Carlos Walter Porto-Gonçalves (21/07/1949 – 06/09/2023). A profecia de Daniel diz: “Os homens esclarecidos brilharão como brilha o firmamento, e os que ensinam a muitos a justiça brilharão para sempre como estrelas” (Dn 12:3). Assim é o Carlos Walter, homem sensível e aberto ao diálogo e à escuta das comunidades e dos povos intencionalmente colocados à margem do Estado; homem que no decorrer da caminhada junto ao Centro de Documentação da CPT, aprendemos a chamar de amigo. A ele, a nossa gratidão e saudade eterna. Carlos Walter, presente!
E por fim, a Dona Maria Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete (1951 – 17/08/2023):
Certa vez, a pensadora e ativista Ângela Davis disse que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Assim foi a vida de Mãe Bernadete: Movimento! Mãe de muitas e muitos, Ialorixá e liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), mulher negra, “sambadeira”, defensora da cultura popular quilombola, passou a vida lutando pelos direitos do povo negro. Os 12 tiros que ceifaram a sua vida no dia 17 de agosto de 2023, dão um indicativo do quanto ela incomodou na movimentação pela defesa dos territórios quilombolas, por justiça e igualdade social. Mãe Bernadete, presente! Que a sua ancestralidade nos fortaleça na luta pelo direito à terra/território.
Finalizo com o texto de meu caro amigo e editor jornalista João Negrão, do Expresso61, em cujo espaço meus textos são também publicados (https://expresso61.com.br/2024/04/24/comissao-pastoral-da-terra-realiza-lancamento-nacional-do-relatorio-conflitos-no-campo-2023/): Comissão Pastoral da Terra realiza lançamento nacional do relatório Conflitos no Campo 2023. Documento apresenta os maiores índices de ocorrências em toda a história da publicação:
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou a 38ª edição da publicação Conflitos no Campo Brasil, apontando o balanço dos dados da violência ligada a questões agrárias no país ao longo de 2023. No primeiro ano de governo do terceiro mandato do presidente Lula, foram registrados os maiores números desde o início dos levantamentos, em 1985: ao total, foram 2.203 conflitos, contra 2.050 do ano anterior e 2.130 do ano de 2020, até então o ano com o primeiro lugar em conflitos.
A maioria dos conflitos registrados é pela terra (1.724, sendo também o maior número registrado pela CPT), seguidos de ocorrências de trabalho escravo rural (251) e conflitos pela água (225). Dentre os estados, o maior número foi registrado na Bahia, com 249, seguido do Pará (227), Maranhão (206), Rondônia (186) e Goiás (167). Dentre as regiões, a região Norte foi a que mais registrou conflitos (810), seguida da região Nordeste (665), Centro-Oeste (353), Sudeste (207), e por fim, a região Sul, com 168 ocorrências.
Os conflitos envolveram 950.847 pessoas, disputando 59.442.784 hectares em todo o Brasil. O número de pessoas envolvidas é 2,8% maior em relação às 923.556 pessoas envolvidas em conflitos no campo em 2022, mas a área em disputa é 26,8% menor, tendo sido 81.243.217 hectares disputados no mesmo período de comparação.
Conflitos pela Terra – Das 1.724 ocorrências registradas neste tipo de conflito, 1.588 são referentes às violências contra a ocupação e a posse e/ou contra a pessoa. No primeiro tipo de violência, se destacam as ocorrências crescentes de invasão, em que foram registradas 359 ocorrências em 2023, afetando 74.858 famílias, contra 349 casos em 2022. Também cresceram os registros de expulsão (37 ocorrências e 2.163 famílias em 2023, contra as 23 ocorrências e 596 famílias, em 2022), transformando este no segundo ano em que mais se registrou famílias expulsas dos territórios, ficando atrás apenas do ano de 2016. Também aumentaram consideravelmente as ameaças de despejo judicial (de 138 para 183) e o despejo judicial concretizado (de 17 para 50).
A pistolagem foi o segundo tipo de violência contra a ocupação e a posse que mais teve registros de ocorrência em 2023 (264), um crescimento de 45% em relação ao ano de 2022, sendo o maior número registrado pela CPT nas ocorrências deste tipo de violência contra a coletividade das famílias — um total de 36.200 famílias atingidas. Os sem-terra foram os principais alvos destas ações, com o registro de 130 ocorrências, seguidos por posseiros (49), indígenas (47) e quilombolas (19). Destruição de pertences (101), casas (73) e roçados (66) também foram ações violentas contra a permanência dos povos em seus territórios.
Trabalho Escravo Rural – Em 2023, foram registrados 251 casos de trabalhadores e trabalhadoras em situação de escravidão no meio rural, com 2.663 pessoas resgatadas desta condição, sendo estes os maiores números dos últimos 10 anos. Os destaques de resgates foram para os estados de Goiás (699), Minas Gerais (472), Rio Grande do Sul (323), além de São Paulo, com 243 pessoas resgatadas. Os tipos de atividades que mais tiveram trabalhadores libertos em 2023 foram a cana de açúcar, com 618 trabalhadores; as lavouras permanentes, com 598; as lavouras temporárias, com 477; e, outros tipos de atividades rurais, com 273. Os números poderiam ser ainda maiores, se houvesse uma política mais estruturada de fiscalização e combate ao trabalho escravo especialmente nas regiões Norte e Nordeste.
Conflitos pela Água – Houve estabilidade nos registros (225, contra 228 no ano anterior), mas os dados ainda são altos em relação ao início dos 10 últimos anos, tendo a frente o não cumprimento de procedimentos legais por parte do poder público e empresas privadas (78), seguido da destruição e/ou poluição (56), diminuição e impedimento no acesso à água (48) e contaminação por agrotóxico (26). Fazendeiros, governos estaduais, empresários, hidrelétricas e mineradoras continuam sendo os agentes causadores destes conflitos, que vitimam principalmente indígenas (24,4%), pescadores (21,8%), ribeirinhos (13,3%), quilombolas (12,4%) e assentados (8,4%).
Violência contra a Pessoa – Foram 554 ocorrências que atingiram 1.467 pessoas, incluindo 31 assassinatos, uma diminuição de quase 34% em relação ao ano anterior, quando foram mortas 47 pessoas no campo. A maior proporção de vítimas foi do estado de Rondônia (com 5 mortes), seguido do Amazonas, Bahia, Maranhão e Roraima, com 4 vítimas cada. Foram tiradas as vidas de 14 indígenas e 9 sem-terra, sendo estas as populações que mais sofrem deste tipo de violência extrema, seguidos de posseiros (4) e quilombolas (3). Ao longo dos últimos dez anos, trabalhadores sem-terra continuam sendo as maiores vítimas (151), seguidos de indígenas (90), de um total de 420 pessoas assassinadas na luta pela terra. Das vítimas fatais da violência, 7 eram mulheres. O tipo de violência com mais vítimas foi a contaminação por agrotóxico, com 336 pessoas vitimadas, seguida das ameaças de morte (218), intimidação (194), criminalização (160), detenção (135), agressão (115), prisão (90) e cárcere privado (72), todos crescentes em relação a 2022.
Principais Causadores da Violência – Os principais agentes causadores das violências no Eixo Terra foram os fazendeiros, responsáveis por 31,2% do total de violências causadas neste eixo, seguidos de empresários (19,7%), Governo Federal (11,2%), grileiros (9%) e os governos estaduais, com 8,3%. No caso do Governo Federal, mesmo com a pequena diminuição no total das violências causadas e com a maior abertura de diálogo do governo com os movimentos sociais, por meio da reestruturação de ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos e Justiça, além da criação do Ministério dos Povos Indígenas, isto não se refletiu em avanços na conquista de direitos pelas populações camponesas e tradicionais, como a reforma agrária e a demarcação das terras indígenas.
Já os governos estaduais têm agido com repressão policial intensa contra acampamentos e assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas, com destaque para Goiás, Bahia, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia. O mesmo se pode dizer em relação ao poder legislativo federal e estaduais, com o avanço da bancada ruralista, promovendo mudanças em legislações como o Marco Temporal, o Pacote do Veneno, e as leis de terras e liberações para pulverização aérea de agrotóxicos nos estados.
Amazônia Legal – Na região que compreende quase 60% do território brasileiro, houve diminuição no desmatamento, com destaque para as ações de fiscalização da Polícia Federal no combate aos garimpos ilegais. Mas a violência tem crescido em regiões como a da tríplice divisa dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia (chamada de Amacro ou Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira). Dos 31 assassinatos no país, 8 foram nesta região, sendo 5 causados por grileiros. A região prometida como “modelo” de desenvolvimento com foco na sociobiodiversidade, tornou-se epicentro de grilagem para exploração madeireira e criação de gado, com altas taxas de desmatamento, queimadas e conflitos.
Ações de Resistência – Registradas também no relatório Conflitos no Campo, as ações de resistência também tiveram aumento expressivo em 2023, pois incluem 119 ocupações e retomadas, sendo 22 ações conduzidas por indígenas, 3 retomadas quilombolas e outras 94 pelas demais identidades sociais. Também foram registrados 17 acampamentos protagonizados por sem-terra e/ou posseiros, superando 2022, apenas com 5. Estes números passaram a ter novamente um crescimento a partir de 2021, mas ainda inferior aos números da série de dez anos.
Relatório – Elaborado anualmente há quase quatro décadas pela CPT, o Conflitos no Campo Brasil é uma fonte de pesquisa para universidades, veículos de mídia, agências governamentais e não-governamentais. A publicação é construída principalmente a partir do trabalho de agentes pastorais da CPT, nas equipes regionais que atuam em comunidades rurais por todo o país, além da apuração de denúncias, documentos e notícias, feita pela equipe de documentalistas do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno (Cedoc) ao longo do ano.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |