Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
XXVII JORNADA JURÍDICA – TEXTOS DA XXVII JORNADA JURÍDICA: Direito: caminho ou obstáculo para a transformação social? eBook Kindle, por Vários Autores (Autor), Antonio Escrivão Filho (Autor), Mariah Brochado (Autor), & 7 mais Formato: eBook Kindle –https://www.amazon.com.br/dp/B0CTKJQXY6. Uberlândia: Editora: LAECC/DA 21 DE ABRIL; 1ª edição (29 janeiro 2024), 570 páginas.
Em outubro de 2022 o Diretório Acadêmico XXI de Abril finalmente conseguiu realizar a XXVII Jornada Jurídica após impossibilidades motivadas pela pandemia de Covid-19 nos dois anos anteriores. Juntamente às Jornadas, ocorreu também o IV Simpósio de Pesquisa em Direito da Universidade Federal de Uberlândia, uma derivação do programa político-epistemológico conduzido pelo Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC – http://laecc.org.br/conselho-editorial. O LAECC procura aprofundar as discussões temáticas comparativas entre os vários sistemas constitucionais americanos. O grupo desenvolve abordagens comparativas em 4 diferentes linhas, procurando cobrir todas as dimensões materiais do constitucionalismo e fomentar a produção científica nos diversos ramos do direito e das ciências sociais, sempre primando pela abordagem de abrangência interdisciplinar. O Sumário da Obra é extenso e casuístico. Compreende o conjunto das exposições dos convidados palestrantes e dos organizadores e o conjunto de textos dos participantes dos Grupos de Trabalho. Do Sumário, reproduzo os títulos gerais dos artigos dos palestrantes, sem seus desdobramentos nos itens analíticos: APRESENTAÇÃO SOBRE OS PALESTRANTES E ORGANIZADORES TEXTOS DOS PALESTRANTES 1.1 DIREITO ̶ UM CAMINHO E UM OBSTÁCULO PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL, Debora Regina Pastana 1.2 DO HOMO FABER AO HOMO TRANSHUMANUS: A SAGA HUMANA RUMO À CIVILIZAÇÃO DA TÉCNICA, Mariah Brochado 1.3 MATRIZES HISTÓRICAS DOS DIREITOS HUMANOS E A TRADUÇÃO JURÍDICA DAS LUTAS SOCIAS, Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Júnior, Rodrigo Camargo Barbosa 1.4 UTOPIA S/A: NEOLIBERALISMO E COMODITIZAÇÃO DO FUTURO, Philippe de Almeida (UFRJ) O Sumário ainda expõe os Textos dos 4 Grupos de Trabalho. Em seu desenho completo a obra reflete, assim se pode constatar do Prefácio (um recorte de seu próprio texto exposto na abertura da Jornada), um enunciado conteudístico, metodológico, descritivo e em boa medida emotivo, de todo o processo que culminou no livro, na elaboração que lhe imprimiu a professora Debora Regina Pastana (Doutora e Mestra em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Graduada em Direito pela UNESP. Professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (2009) e coordenadora do grupo de estudos sobre violência e controle social (GEVICO). Professora permanente do Programa de Pós Graduação em Direito Público da UFU), da Comissão Científica da Jornada e autora do Prefácio da obra. Do Prefácio retiro:
Certamente, toda a comunidade UFU estava ansiosa pela realização da Jornada Jurídica que não apenas já é tradicional na instituição, como muito profícua no que se refere às discussões no âmbito do Direito e, mesmo, interdisciplinares. O título, “Direito: caminho ou obstáculo para a transformação social”, já adiantava a qualidade dos debates que aconteceriam. Contudo, o que presenciamos nesse evento tão pungente foi um turbilhão de emoções permeado por produção e divulgação de conhecimento científico de altíssimo comprometimento político. Na abertura do evento uma comovente recepção visual por meio de um lindo mural trazendo trechos de músicas de Chico Buarque que reproduzo no início deste texto. Aquelas eram músicas de protesto produzidas no auge da ditadura civil-militar da qual saímos formalmente em 1988. Os trechos ali posicionados novamente nos convidavam a refletir sobre o momento político que estávamos vivenciando. Também eram convites para produzirmos coletivamente uma ação questionadora e transformadora da nossa realidade político-social. Como sinalizava outro trecho de música do mural, agora de Belchior (Como nossos pais), era possível “ver vindo no vento um cheiro de novas estação”. De fato, 2022 não foi apenas um ano eleitoral marcado pela possibilidade de mudança no governo federal. Esse ano foi o marco limite para nossa tolerância a todo tipo de perversidade associada à governança do país. Estávamos fartos (as/es) e exaustos (as/es) diante de tanta atrocidade institucional. Aquele mural era também um desabafo, um grito de basta, uma certeza de que uma nova atmosfera estava por se concretizar. Ali, impactada pelos trechos, chorei e percebi logo que não seria um evento qualquer. Para completar minha emoção, fui também convidada a proferir a palestra de encerramento desta Jornada; responsabilidade que comprimiu meu coração a quase não suportar tanto contentamento. Nos demais dias o que se viu foi entusiasmo e força. Auditórios lotados, ouvintes ávidos (as/es), palestrantes emocionados (as/es). Marcelo Semer abriu o evento discutindo os paradoxos da Justiça. Falou do Judiciário e sua relação com a política brasileira, sinalizando que esse poder contribuiu para a construção da grave situação política atual, marcada pelo enfraquecimento da democracia. Antonio Escrivão nos alertou para a importância do Direito achado na rua. O Direito contra hegemônico oriundo das classes populares que muitas vezes substitui o Estado em sua completa ausência, traduzindo juridicamente verdadeiras lutas sociais. Mariah Brochado trouxe para o debate o Cyberdireito, fruto do advento da revolução tecnológica que passou ser recorrente também no cotidiano jurídico, além dos novos desafios ético-jurídicos do século XXI decorrentes desse processo. Rafael Mafei trouxe a questão: Como punir um expresidente? Dizia ele, naquele momento, que punir Jair Bolsonaro pelos seus crimes seria nossa última chance de poder dizer, sem cinismo, que as instituições ainda funcionam no país. Philippe Oliveira de Almeida trouxe a importância das teorias críticas para nos devolver a consciência de que somos sujeitos históricos capazes de intervir nos rumos da nossa história política. Isso não é uma utopia! Eu, por fim, muito emocionada por finalizar o evento, me atrevi a dizer que o título do evento era uma falsa contradição. O Direito pode sim ser ambas as coisas, vale dizer, caminho e obstáculo para a transformação social. Estava ali defendendo um outro ativismo jurídico, diferente daquele que já conhecemos, que costuma interferir na política para derrubar governos legítimos e manter interesses escusos. Na contracorrente defendi um ativismo voltado para a defesa dos vulneráveis e para a emancipação social. Sabemos que o campo jurídico não é neutro, então vamos lutar pelo Direito contra hegemônico! Eu estava feliz em perceber que pelo menos naquele auditório o Direito que prevalecia era o transformador. Senti isso como uma vitória pessoal. Sim, sou uma subversiva que quer continuamente derrubar o Direito que oprime e subjuga. Esse é o meu compromisso científico. Em suma, trata-se de obra da melhor qualidade destinada a quem se interessa pela Ciência do Direito que não se deixa resumir pelo positivismo raso traduzido em descompromisso político e reificação da norma jurídica. Prefaciar esta maravilhosa contribuição à Ciência do Direito, que serve de caminho para a justa transformação social, é um privilégio que me deixa profundamente agradecida e extremamente honrada e que me foi dado, creio, pelo afeto generoso do querido corpo discente da FADIR.
Me fiz presente na obra com meus colegas co-autores Antonio Escrivão Filho e Rodrigo Camargo Barbosa. Sendo que Escrivão nos representou presencialmente no evento, compondo a mesa inaugural. Desdobrado do enunciado do artigo, tal como aparece no Sumário, o nosso texto se desenvolve conforme os seguintes marcadores: PROLEGÔMENOS 1.3.1 A RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA E O DIREITO 1.3.2 COTIDIANO DA HISTÓRIA E A HISTÓRIA DO COTIDIANO 1.3.3 UMA MATRIZ LIBERAL 1.3.4 UMA MATRIZ INTERSECCIONAL 1.3.5 UMA MATRIZ DECOLONIAL REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Aqui e agora, do texto, dois recortes ao seu final. Um, que antecipa uma questão que ganhou ressonância nos dias correntes, depois de uma manifestação do Presidente Lula, pondo em causa de precedência o sentido mobilizador das lutas políticas para a emancipação. Em nosso texto, as linhas que desdobramos, seguiam uma proposta de diálogo acerca da perspectiva crítica dos direitos humanos na contemporaneidade e o modo através da qual tal abordagem parece ser elaborada e explicitada sob as lentes analíticas de O Direito Achado na Rua. Reproduzo aqui a parte do texto, e nessa parte, a tessitura que lhe atribuiu Antonio Escrivão Filho, tal como a seguir. Para isso, dizemos, ou antes, diz Escrivão, seria interessante organizar uma estrutura, fixar um objetivo e saber por onde vamos caminhar. Ao que tudo indica, o debate sobre direitos humanos na perspectiva crítica tem se colocado, pelo menos nos últimas 15 anos e em meio a diversas correntes e tendências, em uma busca para enxergar os direitos humanos através de uma lente do reposicionamento da relação entre política e direito. Essa parece então ser uma boa plataforma para pensar este debate, utilizando-a como uma lente que vai conferir mais nitidez ao fenômeno dos direitos humanos na história, no cotidiano e na realidade social. Mas afinal de contas, o que são os direitos humanos? Ao ressoar a questão, a sensação é quase inevitável: “eu sei o que são, mas quando me perguntam não consigo responder”. Por isso vamos cogitar aqui de algumas lentes que nos ajudem a conferir nitidez, algum delineamento, projeção da profundidade e coloração deste fenômeno a fim de que, quem sabe, um dia consigamos chegar até a resposta. Vamos partir então desta plataforma analítica do reposicionamento da relação entre política e direito, que parece um bom caminho, para chegar até uma identificação sobre a relação entre o lócus – o tempo-espaço – e os sujeitos dessa relação. Em um terceiro momento, vamos cogitar sobre a história que nos trouxe até aqui, ao menos na trilha ontológica desse fenômeno, mais interessados nos processos sociais que nas ideias que lhes conferiram iluminação histórica, um pouco na linha das perguntas brechtianas de um trabalhador que lê, e à melhor maneira da teoria kosikiana, quando alerta: “a filosofia não se realiza, é o real que filosofa” (KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Cália Neves e Alderico Tobírio. 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002). De fato, é sempre a partir desta perspectiva, ou seja, a partir do modo como a realidade se desenvolve e revela as ideias que estão percorrendo os meandros e nosso cotidiano, que nos orientamos neste debate. Por essa razão, o ´tem necessário sobre a relação entre política e o direito. O desafio de encarar os direitos humanos desde uma perspectiva crítica tem reivindicado esse paradigma da necessidade do reposicionamento sobre a relação entre política e direito, a fim de repensar a tradicional e clássica abordagem que sugere um abismo entre a política e o direito, buscando separar, depurar e purificar o direito, sua teoria, e não raro – mais para os desavisados que para os seus formuladores – a sua prática. Isso porque Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000), e alguns autores alinhados à sua concepção não cogitaram de uma teoria pura da prática do direito, ou seja, da Justiça. Sua proposta se orientava por uma teoria pura da ciência do direito. No entanto, ao ser mal-entendida e aplicada, não raro decisões judiciais acabam reivindicando uma pretensa depuração do direito para proferi-las sob um argumento de neutralidade que, por seu turno, se presta apenas a conferir verniz técnicojurídico às suas convicções, valores e não raro interesses em meio aos conflitos de elevada intensidade política, econômica e social que, se de um lado vem a cada dia gritando socorro no ambiente das estreitas raias judicias, de outro nos interpelam a todas/os e a cada um nas nossas expectativas sobre o modelo e o projeto de sociedade. Nada indica que embaixo de uma toga o sangue corra em sentido diferente. Não parece ser desnecessário cogitar da inserção social e política dos agentes da justiça, porque estamos tratando, justamente, da função judicial que é uma das funções políticas do Estado moderno. Temos a função legislativa, a função executiva e a função judicial. A organização dos Poderes do Estado e da autoridade, nesse modelo adotado, insere a função judicial neste lugar de organização da sociedade e é uma função política e bastante poderosa, porque ela tem o poder de decidir quem tem direito na nossa sociedade em determinadas situações e vamos observando nas últimas décadas que esse poder vem se expandindo. Então é preciso encontrar e trazer essa plataforma analítica da relação entre política e direito para entender melhor o fenômeno que vem ganhando espaço, presença dilemática na sociedade brasileira – a expansão judicial – que significa, em si, uma expansão política da Justiça (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Para um debate teóricoconceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: D‟Plácido, 2016). Vale notar que o poder de dizer o direito e prestar a justiça consiste em uma função estatal delegada pela sociedade, equação política esquecida mas lapidada nos exatos termos da inscrição da soberania popular no art. 1º, parágrafo único, da Constituição Cidadã, já que a princípio somos nós quem dizemos para a autoridade, através da lei, o que ela pode e deve fazer no exercício da jurisdição. Essa, então, poderia ser reconhecida como uma terceira matriz dos direitos humanos, a matriz interseccional. Os sujeitos no século XX conformaram novos modelos de relação de poder na sociedade e na relação com o Estado. Na sua compreensão sobre as contradições da vida, da identificação com outros sujeitos que experimentam a mesma experiência e do desenvolvimento da solidariedade. Estamos tratando, com isso, de paradigmas advindos da teoria dos movimentos sociais, e da ideia do repertório desenvolvido pelo movimento social antes sindical, e agora feminista e negro, qual seja, a ideia de participação política que não é mais no Parlamento, é na rua, desafiando o poder em outras instâncias e esferas da sociedade. Como a esta já se constitui algo notório, a noção de interseccionalidade nos termos formulados por Kimberlé Crenshaw (CRENSHAW, Kimberle. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum: Vol. 1989: Iss. 1, Article 8. Disponível em: http://chicagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8 . Acesso em: 25-07-2017) se projeta como uma interessante e potente plataforma analítica que enxerga as relações sociais – em especial desde o ponto de vistas das relações de poder desafiadas no cotidiano dos direitos humanos – a partir da conjunção de diferentes vetores de dominação e exploração que, pese apontarem em sentidos distintos (no que se refere à especificidade das relações sociais onde incidem), se encontram em um ponto de intersecção que é cotidianamente experimentado por grande parcela da população. Nesta intersecção, portanto, diríamos que se encontram de modo estrutural os vetores de classe, raça e gênero, projetando experiências cotidianas que somente encontrarão a emancipação de seus sujeitos e portanto da própria sociedade na medida em que todas as três dimensões forem enfrentadas. Daí que a chave de abóboda do texto tenha sido a designação de o configurar seguindo uma matriz decolonial. De fato, estes são elementos importantes para se ter em mente e, dando um salto avançado, essas reivindicações foram também se espraiando e contagiando outros campos da sociedade. Podemos encontrar, como exemplo, o movimento camponês no Brasil, que a partir de uma expertise organizativa do movimento sindical e partidos políticos junto com a Igreja, organiza o campesinato na década de 50, voltando a se recompor ao final da década de 70 até a criação, em 1984, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST no objetivo reivindicatório político original de democratização do acesso à terra e a reforma agrária. Experiências organizativas que chegam também através da Igreja Católica, sobretudo pela vertente da Teologia da Libertação, a organizações da sociedade civil e ao movimento indígena na década de 80, posteriormente no século XXI ao movimento quilombola, hoje protagonizando, ambos, a experiência de duas das maiores potentias transformadoras da sociedade brasileira, no sentido da filosofia da libertação de Enrique Dussel (DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. Trad. Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão Popular, 2007), como a conquista no ano de 2023 da inscrição do Ministério dos Povos Indígenas na esplanada do ministérios do terceiro governo Lula parece evidenciar. Eis os novos sujeitos de direito, que não são novos no processo histórico, mas apenas recentemente conquistaram a condição de sujeitos do direito e da política no Brasil. Com a novidade de sua presença nos seus meios de organização, mobilização, reivindicação e repertório de luta social, acabaram produzindo novidades inexistentes (mas não inimagináveis) no campo do direito. Os novos sujeitos, quando finalmente têm condições históricas de ocupar o locus da regulação política, vão produzir quase que necessariamente novos direitos, já que a “igualdade” positivada de forma abstrata acaba se constituindo como um apelo a um novo movimento social venha apresentar uma nova perspectiva de dignidade e reivindicar a sua concretização. Esses sujeitos que agora chegam nesse campo com condições históricas de luta e disputa das relações de poder – agora também incorporando o movimento LGBTQUIA+ – encontram no século XXI um momento de acúmulo de forças do campesinato, organizações indígenas e movimento quilombola, podendo arriscar, então, para fins analíticos deste debate, uma terceira matriz conceitual de jaez decolonial na teoria dos direitos humanos, que no entanto não teremos condições de desenvolver neste espaço, esboçando apenas algumas linhas em brevíssima consideração. Como visto, essa metodologia do ponto de vista da historicidade serve para colocar e organizar as ideias, conferir nitidez às experiências, e entender que as noções de direitos humanos estão na conformação do cotidiano, no intenso movimento da realidade. Se a matriz liberal advinha do Norte eurocentrado, carregada de contradições, observa-se que a matriz interseccional ainda é desenvolvida em sua gênese na experiência da classe trabalhadora no Norte, na experiência da classe trabalhadora da Europa e, posteriormente, também nos EUA, por meio do movimento de mulheres e movimento negro, porém na periferia dessas sociedades do Norte Global, se espraiando posteriormente para a América Latina, por exemplo. Agora, finalmente, a matriz decolonial que vem se delineando e desenvolvendo, é advinda do Sul Global, em que pese ela seja compartilhada em termos conceituais por autoras e autores do Norte, que por seu turno se encontraram com intelectuais do Sul que para ali migraram ou se exilaram para realizar seus estudos ou fugir de regimes autoritários. Eis então uma matriz que está fundada na experiência do sujeito latino-americano, do sujeito africano, do sujeito asiático. De homens e mulheres do Sul Global que estão a construir o seu cotidiano de liberdade e dignidade, em mais um capítulo – metodologicamente diríamos uma matriz – dos direitos humanos na atualidade. Uma matriz que em boa medida, a partir das sugestões analíticas trazidas neste texto, é aqui deixada para que as leitoras e leitores se desafiem na tarefa histórica de experimentar, e teorizar. Infelizmente não pude retornar a UFU, em mais uma interlocução valiosa, para além daquelas de caráter político, quando discuti com servidores questões de gestão acadêmica e de pessoal, a partir de minha experiência como ex-Reitor da UnB; em trocas culturais, participando de mesa no bem instalado estúdio radiofônico, sendo a rádio universitária da UFU, uma das mais bem estruturadas do sistema de rádios universitárias; e em mesas de fundamento epistemológico no campo das teorias políticas e do direito. Ainda bem que a participação de meu colega Antonio Sergio Escrivão Filho assegurou a continuidade de uma troca de entendimentos e ajuste de posicionamentos. Nesse último aspecto, aliás, até para continuar a tecer o fio de continuidade dessas trocas, guardo um registro impresso, a partir de dois repositórios muito bem editados pelo professor Roberto Bueno (que andou algum tempo na Faculdade de Direito da UnB em programa de visita). Menciono, a propósito, meu artigo Estado Democrático da Direita, publicado em DEMOCRACIA: DA CRISE À RUPTURA. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p. (https://estadodedireito.com.br/democracia-da-crise-a-ruptura/) e também um capítulo – 16 – com o título Latinoamericanidade, lugares políticos, reencontro de humanidades, no livro Democracia, Autoritarismo e Resistência: América Latina e Caribe. Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2021 (https://estadodedireito.com.br/democracia-autoritarismo-e-resistencia-america-latina-e-caribe/). Fico muito satisfeito ao me dar conta das pegadas deixadas nesse percurso de forte interlocução, reativadas ao ensejo dessa XXVII Jornada Jurídica. E o faço a partir do reconhecimento que a sua Organização demonstra em buscar ter presente nos debates, a perspectiva estabelecida por O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática. Certamente, a participação de Antonio Sérgio Escrivão Filho na abertura da Jornada e a inclusão de nosso texto (MATRIZES HISTÓRICAS DOS DIREITOS HUMANOS E A TRADUÇÃO JURÍDICA DAS LUTAS SOCIAS, Antonio Escrivão Filho, José Geraldo de Sousa Júnior, Rodrigo Camargo Barbosa), no livro, bastaria para selar os compromissos político-epistemológicos dessa interlocução. Entretanto, mais que isso, e no atual, vale por em relevo a compreensão do alcance dessa cooperação acadêmica, ao identificar, no texto condutor de todo o debate, porque preparado por uma das organizadoras do evento, autora do prefácio da obra – Direito – um Caminho e um obstáculo para a transformação social, de Debora Regina Pastana, em definir qual o Direito que é adotado como o sul de nossas intenções e compromissos: o direito que humaniza e emancipa, o Direito que “quem me ensinou isso foi um grande jurista brasileiro chamado Roberto Lyra Filho”. Ela expõe:
Lá nos idos de 1982, ele publicou um livrinho pequenino e afetuoso intitulado “O que é Direito”. Esse livrinho fazia parte da coleção primeiros passos, publicada pela já extinta editora brasiliense. Roberto Lyra Filho foi um jurista marxista, um dos fundadores da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), da Faculdade de Direito da UnB, cujo boletim era a Revista Direito & Avesso. Roberto Lyra dizia à época que o Direito não se reduzia à norma, nem a norma à sanção. Ao contrário, ele dizia, citando Gramsci, que a visão dialética precisava alargar o foco do Direito, abrangendo as pressões coletivas que emergiam na sociedade civil e adotavam posições de vanguarda, “como determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissionais e culturais e outros veículos de engajamento progressista” (FILHO, 1985, p. 04). Ainda em suas palavras o Direito não poderia “ser isolado em campos de concentração legislativa”, pois indicaria “os princípios e normas libertadores”, considerando a lei “um simples acidente no processo jurídico”, que poderia, ou não, “transportar as melhores conquistas” (FILHO, 1985, p. 04). Seu pensamento teve grande influência no movimento jurídico intitulado “Direito Achado na Rua”, um movimento teórico/prático de extrema relevância para o Direito brasileiro e que possui mais de três décadas de existência. Aqui mesmo na Jornada foi falado sobre esse movimento. O professor Antônio Escrivão, veio justamente explanar sobre o “O Direito Achado na Rua e a tradução jurídica das lutas sociais”. Eu não sabia, mas descobri durante o evento, que, em tempos distintos, cursamos a mesma faculdade e tivemos o mesmo encantamento pelo professor Luis Alberto Machado, responsável pelo Núcleo de Direito Alternativo (NEDA) da Unesp de Franca. Talvez por isso tenhamos escolhido caminhos jurídicos e acadêmicos parecidos. Segundo Escrivão, “o Direito não é; ele se faz, em um processo histórico de luta e libertação” para então se afirmar enquanto Direito que “nasce da rua, no clamor dos espoliados (VIEIRA, FILHO, 2022, p. 70). “Sua filtragem pode ser percebida nas normas costumeiras e mesmo nas legais que assumem diferentes significados de mediação das relações sociais”, podendo ora ser um Direito autêntico, ora um produto falsificado. Citando Lyra Filho, Antonio Escrivão e Renata Vieira (2022, p. 71) também dizem que “ao exprimir o Direito, as normas só podem servi-lo, na medida em que se tornem canais, e não diques”. Nesse sentido são também as palavras de Roberto Lyra Filho, para quem “uma norma será tanto mais legítima, quanto mais elástica e porosa se torne, para absorver os avanços libertadores, que surgem da dialética social e provocam transformação da ordem instituída” (LYRA, 1986, p.310). Por um tempo esse movimento teve grande expressão e rivalizou com o Direito Positivo e a dogmática jurídica que aprisionavam o jurista à letra da lei positivada. Em maior destaque no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em Brasília; mas praticamente em todo o Brasil, foi possível perceber essa efervescência transformadora tão bonita no interior do campo jurídico. Entre as décadas de oitenta do século XX e a primeira década do século XXI, esse movimento produziu verdadeiras revoluções jurídicas que promoveram ondas de justiça social pelo país. Euzamara Carvalho (2022) enaltece toda potência desse movimento que de certa forma também redefiniu a própria normatividade internacional. Nesse sentido destaca-se a legitimidade da luta social a luz dos princípios constitucionais e institucionais de direitos humanos, conforme Resolução 53/144 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 9 de dezembro de 1998. Esta resolução ratifica a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos). Em seu Artigo 1.º, expressa: “Todas as pessoas têm o direito, individualmente e em associação com outras, de promover e lutar pela proteção e realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a nível nacional e internacional” (CARVALHO, 2022, p. 134/135) (sic). Assim, o Direito deixou de ser pura norma, para ser ação constante daqueles (as) subjugados (as) no processo histórico da vida social. De forma ambivalente, a própria norma internacional passa a reconhecer essa realidade. Como bem destaca Joaquín Flores (2009, p. 71): Não podemos entender os direitos sem vê-los como parte da luta de grupos sociais empenhados em promover a emancipação humana, apesar das correntes que amarram a humanidade na maior parte de nosso planeta. Os direitos humanos não são conquistados apenas por meio das normas jurídicas que propiciam seu reconhecimento, mas também, e de modo muito especial, por meio das práticas sociais de ONGs, de Associações, de Movimentos Sociais, de Sindicatos, de Partidos Políticos, de Iniciativas Cidadãs e de reivindicações de grupos, minoritários (indígenas) ou não (mulheres), que de um modo ou de outro restaram tradicionalmente marginalizados do processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas. (sic). Nesse contexto, durante mais de trinta anos assistimos o Direito se fortalecer justamente por meio de sua vertente considerada “o avesso”, aliada ao universo oprimido e compromissada com o fortalecimento da cidadania participativa.
Sinto-me assim ainda mais organicamente engajado nos compromissos de conduzir nossas ações teóricas e práticas de O Direito Achado na Rua, ao impulso desse objetivo de contribuir para o campo teórico crítico do direito e dos direitos humanos (https://estadodedireito.com.br/a-teoria-e-praxis-do-coletivo-o-direito-achado-na-rua/; https://estadodedireito.com.br/30425-2/: v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503). Conforme Debora Pastana: “Esse ‘Direito Achado na Rua’ se realizaria, portanto, de forma dialética, por meio da inter-relação entre teoria e práxis. Imediatamente percebi que era esse o meu Direito; aquele capaz de nos levar à transformação social que emancipa e empodera. Logo percebi também que à minha volta havia um coletivo jurídico pronto para me inserir nesse Direito transformador”. E comigo, ela conclui: “O ‘Direito Achado na Rua’, enquanto movimento político, buscava capacitar assessorias jurídicas de movimentos sociais; buscava também “ser a expressão de criação do Direito a partir da atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas” (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.). Era assim um projeto político de transformação social como dizia Roberto Lyra Filho”. Era e continua sendo. Sinto-me ainda mais organicamente engajado nos compromissos de conduzir nossas ações teóricas e práticas de O Direito Achado na Rua, ao impulso desse objetivo de contribuir para o campo teórico crítico do direito e dos direitos humanos (https://estadodedireito.com.br/a-teoria-e-praxis-do-coletivo-o-direito-achado-na-rua/; https://estadodedireito.com.br/30425-2/: v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503).
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |