SEIS POEMAS DE MIGUEL BOUÉRES

[Curadoria de Vital Alves]

1.

 vozes comparadas   

neste grito, o silêncio marca o seu marca-passo.

dois pra lá, dois pra calar,

mas doido pra falar:

como o barulho da flor

que se abre todinha para o colibri colori-la.

igual ao som das gaitas

que melancolicamente soam saudades.

tal qual a voz do monociclo

que roda, roda atrás de outra roda.

que nem os falares dos pássaros

que se arrebentam pelas nuvens acima.

ou o marulho do mar

que encanta seixos e sereias.

escritinho ao sicsic das bundas da passante

que roçam entre si insinuantes.

idêntico ao retinir das moedas

que enfeitiçam pelo peso e luminiscência.

parecido aos assobios dos ventos

que solam os movimentos e as cores do parque.

exatamente a luz do sol

que esgana a farda do vigilante.

conforme o ronco da amante

que depois do êxtase desmorona.

consoante a locução do idoso

que não levanta o tom nem a pau.

igualzinho a língua áspera da moça

que corre, corre silente pelo corpo suado.

de acordo com a expressão acabrunhada do vendedor de coco

que crê em um mundo mais cristalino.

também o coaxar das rãs

que se querem assanhadas, serelepes pererecas.

tal-qualmente a arrojada caneta do poeta

que escreve o seu mundo em absoluta solidão

num escracho de soturna criação.

2.

sustância

era a força de levantar saca de babaçu

eram a roça e camponês em Di Cavalcanti

era a mosca de lambregar-se no açúcar

era a onça travestida de jaguatiricas

era a coisa ligeira pulando capoeiras

era a moça de levantar a saia na hora h

era a orca de engolir mil cardumes

era a porca de criar tantos filhotes

era a osga que bulia a papada de dar engulho

era a troça por inverter o sentido das coisas

era a porta que não se abria de encrenqueira

era o pé pisando o rabo do cachorro no momento da solenidade

era a morta que fingia permanecer no mundo a mil

era a tosca que caminhava pelos vales da dúvida

era a dor de pintar palavras com rabiscos de cadernos derretidos

era a touca que escondia os cabelos da amante

era a toca por onde o tatu se arremessa para escapar da morte

era o oh de espanto por coisas tão evidentes

era o horror da língua que se enrola no ponto g

era o toque-toque do estranho na casa cerrada

era a porrada que desviava a memória das brincadeiras de infância

era a forma de a vez e a voz se insinuarem pela arte de brincar

era a cor das anáforas desaforadas em cachoeiras

era era era uma vez a sustância de um poema que se sustentava.

3.

a fiação dos nós

ficar em nó

ou em ponto cego

numa mudez explícita

dançar em pó

ou em conto ego

em fOnTe mal resolvida

cantar sem dó

ou em dor de nó na madeira

como se pronuncia o caos

relembrar a vó

e pensar no voo

a cuidar do gosto da memória

amassar o pão de ló

ou esperar como jó

num enjoo só

apertar o cós

ou aprisionar o nó na garganta

em preço e tropeço vis

qual dos nós inventas desata:

o que se quer preso

ou o que se liberta no próprio desato?

a sina dos nós

nos confronta e nos ensina

 a tensionar o fio

o nó que em si traz

o seu nó, seus nós,

e seu quebra-nozes.

4.

a trançadeira

as tranças dos cabelos dela

                                                 eram trejeitos

de onça menina.

a habilidade e o entrosamento de suas mãos

                                                                     trançavam sonhos

de moça tigresa.

seixos de Sulamita de seios sexos sestrosos.

posava em sentida teia

em divina ceia

                                                                     no cântico dos cânticos.

espalhavam-se continhas coloridas

                                                 enredadas em fileiras,

criando a sua imagem

                              à própria imagem.

a trançadeira – Sulamita – debulhava continhos de Ogum

                              semente a semente

em cântaros de destrancadas histórias.

de(s)rramada em sensualidades

                                       de graciosidades sem desfecho

desata os nós de sua sacralidade.

essa Sulamita, suntuosa, fogosa.

5.

obá

tuturubá

                              que fruta!

doce

                              doçura

                                                           docinha

                                                                               até o caroço.

na fonética

                              então

sumo discurso divino.

ao entoar

                              tuturubá

dava gosto na língua.

não havia

                              limite

                                                 para alcançá-

                                                                                                  la

no mais alto e

                                                     isolado

                                                                                                             galho.

quando caí

a

                                       – ploft! –

mantinha-se

                                       intacta

                                                           em seu amarelo

                                       ubá.

seu som

                              seu sentido

                                                                     ensinava a lição

                                       do sabor

do gosto

do gasto

                                                                     dos gostos.

tuturubá

                              obá!

6.

língua pra fora                 

um cachorro de boca aberta

mas não é o que se quer

uma vaca morta

mas não é o que deve ser

um exame médico de amígdala

mas não é isso, que ainda é pouco

um maratonista cansado

mas não é o que se intenciona

a língua embrulhada dos orixás

mas não é o que se encarna

a língua do linguarudo – linguado, solha –

mas não é a que o verbo aspira

a língua do dragão cuspindo fogo

mas não é o que está debaixo dos pés

a língua de einstein

mas não é o que se relativiza

a língua retalhada em pedaços

mas não é o horror que se quer

a língua maligna, histriônica, perversa

mas não é o que se pleiteia

a língua de deus: vai e vive!

mas não é o que se dá no caminho

a língua sedutora da serpente no paraíso

mas não é o que se delineia

a língua de trapo

mas não é o que se solicita

a língua de sapo linguando inseto

mas não é o que se anseia

a língua enrolada de cardíaco

mas não é o que se consulta

a língua pendurada no espeto de pau

mas não é a que se expõe

a língua de babel

mas não é a que se traduz

a língua solta na boca gargarejante

mas não é a que se higieniza

a língua do beijo de língua

mas não é a que se oferece

a língua de sherazade de fios de contos

mas não é com a que se conta e reconta aqui

a língua da banda de rock – kiss se beija –

mas não é a que se insinua

a língua impiedosa do boca do inferno

mas não é a que se barroquiza

a língua que julga com seu veredicto final

mas não é o que se impõe

a língua do fusca que fala

mas não é a que se move em máquina

a língua virtual da internet

mas não é a que se quer sombra e caverna

a língua dos pássaros que encantam

mas não é a que se naturaliza

a língua de quem tem sede e fome

mas não é a que se levanta em levante

a língua do silêncio e da paz

mas não é a que se acomoda

a língua do 171

mas não é a que ludibria e frauda

uma língua, sim, de metros e metros,

ou desmetrificada – tresvairada –?

língua pra fora, livre, aberta pelas palavras.

a língua mexida pelo avesso,

de temores e tremores, língua solta

que salta no precipício da imaginação.

Miguel Luís Fortes Bouéres, nascido em Bequimão – MA, filho de Alcides de Castro Bouéres e Hilda Fortes Bouéres, dos quais recebi profundo afeto, apoio e orientação, a fim de que ainda adolescente mudasse para Brasília onde pudesse ter melhores condições de estudo. Nas décadas de 80 e 90, respectivamente, concluí licenciatura em Letras e bacharelado em Direito, a alcançar, em seguida, a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil. Esses ramos de conhecimentos me capacitaram para as profissões de professor e advogado. Ao mesmo tempo, a literatura fora o meu norte, um aroma que me encantava e embalava as minhas fantasias, que dava sentido à minha vida, sobretudo a poesia, cuja potência projetou-me em um mundo de inevitáveis dicotomias: a realidade e a utopia. 

3 Replies to “SEIS POEMAS DE MIGUEL BOUÉRES”

  1. Belos poemas, um riquíssimo vocabulário desde a minha infância, ainda persiste por aqueles que amam literatura.
    Bravo. Avante não deixe esquecido seus sonhos e livros!!

  2. Parabéns Miguel pelos lindos poemas!!
    Sábias palavras e como sempre,viajo junto com elas.
    Que Deus continue te inspirando cada vez mais.
    Um abraço
    Nane

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