Democracia e Educação: o Novo Ensino Médio

Por Vital Alves

O processo de redemocratização no Brasil alcançou o seu momento mais elevado com a promulgação da Constituição de 1988; promulgada em 5 de outubro do referido ano, a “Constituição Cidadã” tornou-se o símbolo desse processo nacional. Após 21 anos de Ditadura civil-militar, a sociedade brasileira conquistava uma Constituição que assegurava liberdades individuais e coletivas, e, eleições livres, e estabelecia uma série de mecanismos que visavam conter possíveis abusos que poderiam ser cometidos pelo Estado.                                

O capítulo III, do Título VIII – Da Ordem Social, da Constituição de 1988, compreende um tema fundamental tanto para o amplo desenvolvimento da sociedade brasileira quanto para a própria democracia, trata-se da “Educação”. Intitulado de “Da Educação, da Cultura e do Desporto”, o Artigo 205, da Seção I, abre com as seguintes palavras: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Desde a promulgação da Constituição, a educação brasileira passou por diversos momentos nos quais tivemos avanços e retrocessos. Interessa-me, aqui, entretanto, mobilizar alguns aspectos históricos recentes para promover –  ainda que de forma breve –  uma reflexão sobre o momento atual da educação no Brasil. Com esse propósito, avalio que seja importante recordar em primeira instância os anos de 2015 e 2016 e tomar como referência o livro Ocupar e resistir: movimento de ocupação de escolas pelo Brasil (2019), organizado pelos pesquisadores Jonas Medeiros, Adriano Januário e Rúrion Melo. Acredito que um resgate dos acontecimentos sucedidos nos anos mencionados, e a coletânea de textos que compõe o referido livro, nos possibilite não apenas entender aquele contexto como perceber que, desde aquele momento, o modelo do NEM (Novo Ensino Médio) vigente se opunha aos interesses dos estudantes e professores de escolas públicas.                                        

Em 2016, uma mobilização de estudantes secundaristas proporcionou o surgimento de novos vetores na luta pela educação, refiro-me à insurgência dos estudantes em praticamente todo o Brasil contra a MP 746 que visava alterar o Ensino Médio e a PEC 55/2016, proposta de emenda constitucional que estabeleceria um novo regime fiscal no país congelando os investimentos públicos por 20 anos. Devemos lembrar que a gênese desse movimento se situou na ocupação de escolas no Paraná, precisamente na cidade São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba, e ressoou em diversas partes do país: as ocupações se expandiram para algumas unidades de institutos federais e universidades. Registra-se simultaneamente que tal estratégia de mobilização estudantil conquistou publicidade nacional no final de 2015 por meio de várias ocupações sucedidas em escolas estaduais de São Paulo em oposição à “Reforma do Ensino Médio”, fundamentada sem nenhum debate ou negociação com os diretamente envolvidos, a saber: professores, entidades educacionais, estudantes e pais.

Os estudantes secundaristas combatiam “a precarização do ensino público que seria acentuada com a PEC do teto dos gastos públicos e pela MP da reforma do Ensino Médio”. Convém recordar: esses estudantes que saíam em defesa de uma educação de qualidade no âmbito nacional eram compostos por alunos de escolas públicas na faixa etária de 15 e 18 anos, e foram rapidamente rotulados pela grande mídia de “baderneiros”, “depredadores das escolas públicas” e acusados de serem cooptados e utilizados como massa de manobra de partidos políticos. Todavia, em meio a esses rótulos e acusações, os estudantes demonstraram um ânimo invejável e uma capacidade de organização impressionante, confrontando essas investidas com uma tática incomum, a saber, rejeitando a sujeição a qualquer partido político e demarcando um parâmetro horizontal para as suas deliberações. Desprovidos de lideranças, os estudantes assumiram a administração do ambiente escolar de maneira irrepreensível, na medida em que formaram comissões para a manutenção das escolas nos campos da limpeza, cozinha e segurança, além disso, viabilizaram uma agenda cultural nas escolas ocupadas que compreendia, sobretudo, aulas, debates e apresentações musicais.            

Observando de forma detida o movimento “Ocupar e Resistir” vê-se que a mobilização daqueles estudantes secundaristas se tornou um dos movimentos sociais mais fascinantes da atualidade. Um movimento que foi capaz de transformar os estudantes envolvidos naquela conjuntura, ainda que talvez somente interinamente, na autogestão de suas próprias escolas de forma política e pedagógica, em relação à sociedade brasileira – o movimento certamente pode nos inspirar na construção de novos moldes de se fazer política. Em contrapartida aos pontos centrais de contestação que animavam a mobilização dos estudantes, na sequência, vimos aprovadas não só a MP 746 que alterou o Ensino Médio como a PEC 55/2016, duas medidas encabeçadas pelo neoliberalismo corrosivo representado pelo então governo Temer.

Buscando estabelecer uma linearidade de momentos que antecedem à implementação do Novo Ensino Médio, lembremos que em 2014 ocorreu a inclusão de estratégias e novas diretrizes ao PNE – Plano Nacional de Educação, que visava reconfigurar o Ensino Médio produzindo a Base Nacional Curricular Comum, ressaltando a importância de abordagens interdisciplinares, a flexibilidade e diversidade dos currículos e fixação de conteúdos obrigatórios e eletivos. Mas, foi apenas em 2017, com a publicação da LEI 13.415, que foram, de fato, fixadas as transformações que ocorreriam no Ensino Médio. Além de alterar a carga horária do Ensino Médio, a lei delimitou uma nova organização curricular que se tornou mais evidente em 2018, mediante homologação do texto acerca da etapa final da educação básica da BNCC – Base Nacional Curricular Comum. Somados à BNCC, foram acrescentados alguns documentos como as Diretrizes Curriculares Nacionais, os referencias curriculares e o guia de implementação do NEM engendrados para direcionar o estabelecimento de tais mudanças, incluindo o prazo para que as escolas se adequassem ao novo modelo de Ensino Médio, o que deveria ocorrer no ano de 2022.                                                     

Uma das maiores transformações pretendidas pelo Novo Ensino Médio era a de tornar o estudante adolescente do Ensino Médio “o centro da vida escolar”, isto é, transformá-lo no “protagonista de sua história”, depositando nele a confiança de que teria a “capacidade” e “maturidade suficiente” para “desenvolver e colocar em prática seu poder” de tomar decisões e fazer escolhas em conformidade com os seus reais interesses. Pressupostos que, de antemão, exigiriam um amplo compromisso dos alunos na vida escolar. Tais vicissitudes se efetivariam a partir da concretização de algumas mudanças efetivas na etapa do segmento. Entre as principais, destacavam-se: Ampliação gradual da carga horária; Desenvolvimento das competências gerais da educação básica e um novo currículo complementar unindo uma parte comum – Formação Geral Básica – e uma parte flexível – os Itinerários Formativos.                                                                  

Em outras palavras, o Novo Ensino Médio se apresentava como uma promessa que iria estimular a autonomia dos currículos e ambicionava capacitar estudantes para o “mercado de trabalho”. No entanto, desde o início o modelo suscitou diversas críticas opostas. Vejamos as principais:

Primeira crítica: a proposta que criou o NEM foi imposta por meio de uma Medida Provisória durante o governo Temer, e não houve nenhum debate sobre a proposta com os reais interessados, isto é, educadores, alunos, pais, comunidade escolar e sociedade civil em geral. Desse modo, a medida foi empregada de forma autoritária, desconsiderando as vozes daqueles que mais seriam afetados pela medida.                   

Segunda crítica: a reestruturação da grade de aulas, com o NEM, disciplinas tradicionais como História, Artes, Química, Física, Biologia, Filosofia e Sociologia, passaram a chegar nos jovens por meio de quatro áreas do conhecimento: Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Linguagem e suas Tecnologias, Ciência da Natureza e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias.

Ao mesmo tempo, o NEM projetou um aumento de 200 (duzentas) horas na carga horária anual obrigatória das escolas, somadas às 800 (oitocentas) horas já fixadas. Todavia, considerando esse valor de horas, 60% da carga se concentra na “Formação Geral Básica”, pela qual todos os estudantes devem passar, enquanto os outros 40% serão preenchidos pelos “Itinerários Formativos” os ditos “Projeto de Vida”. A partir disso, constata-se que somente as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática são obrigatórias nos três anos e ministradas de formas específicas, enquanto as outras não são ministradas dessa forma, mas sim como “Itinerários Formativos”.                                             

Terceira crítica: se os “Itinerários Formativos” se inseriam como o grande diferencial do NEM, propagandeado como aulas optativas e integradas às diversas áreas do conhecimento dentro de um mesmo planejamento pedagógico, visando fomentar a “formação técnica e profissional específica” e dando liberdade para que as escolas de cada região escolhessem os “Itinerários” mais apropriados às necessidades e interesses da população local, em termos práticos, isso não vem ocorrendo, uma vez que a oferta de disciplinas voltadas, sobretudo, para o empreendedorismo, agronegócio e culinária vem sobrecarregando professores com acúmulo de encargos e representando um verdadeiro desvio de função, pois, esses profissionais, em sua maioria, não possuem formação para ministrar disciplinas com tais conteúdos.                                  

Resumindo, a maioria das escolas não possuem profissionais de educação para a regência dessas disciplinas e tampouco infraestrutura para efetivá-las. Se isso ocorre nos centros urbanos, pode-se imaginar a inexequibilidade do Novo Ensino Médio nas regiões do Brasil profundo, por exemplo, em Escolas que deveriam atender às populações do campo, ribeirinhas, quilombolas e povos indígenas, e frequentemente padecem com a falta de recursos adequados para investimentos em profissionais que atendam às suas demandas e na infraestrutura física.

Pode-se afirmar que os anos de 2015 e 2016 foram decisivos para entendermos o descontentamento dos estudantes com o Ensino Médio vigente naquela época, porém, a resposta política a esse sentimento deflagrou uma nova configuração de Ensino Médio cimentada em uma concepção neoliberal de educação que operou uma ruptura do tecido social, disseminou a mentalidade fantasiosa do estudante de escola pública como o “protagonista de sua própria história” e vem servindo de mecanismo do neoliberalismo que tem como pano de fundo acentuar a desigualdade social entre estudantes de escolas públicas e de escolas particulares, visto que, enquanto os estudantes das primeiras carecem de profissionais com a formação adequada para ministrar os Itinerários e estudam em escolas precárias e destituídas de estrutura física para efetuar determinados Itinerários, os segundos, não só possuem profissionais com a formação adequada como estruturas físicas privilegiadas. Como se não bastasse, as escolas particulares, em sua grande maioria, seguem oferecendo amplamente os conteúdos a serem exigidos pelo ENEM, ao passo que as públicas vêm sendo assoladas por uma enorme defasagem nesses mesmos conteúdos.                                                                              

Se o Novo Ensino Médio se apresentava como uma promessa para melhorar a qualidade do ensino, ela se transformou num verdadeiro engodo e alargou o abismo social entre estudantes de uma parte da classe média e ricos que estudam em escolas particulares e os estudantes pobres das escolas públicas. O pomposo NEM visto nas propagandas divulgadas pelo MEC até 2022 tinha, na realidade, como “objetivo velado” contribuir para a formação de “mão de obra barata para o mercado de trabalho”, proporcionando a precarização da formação dos adolescentes do ensino público e dando primazia a uma educação superficial, acrítica e fragmentada.                          

Em vista desse diagnóstico desalentador, a iniciativa democrática do atual governo em promover uma consulta pública (Portaria nº 399, de 8 de março de 2023) para ouvir como a sociedade e educadores em geral avaliam o NEM, é plausível e esboçou uma recuperação de nossos ânimos em defesa de uma educação de qualidade. Deve-se salientar que, a partir dessa iniciativa foi elaborado um Projeto de Lei para mudar o Novo Ensino Médio – a previsão é de que o Projeto seja encaminhado para o Congresso até esse mês (setembro), segundo o Ministro da Educação, Camilo Santana. Espera-se que seja aprovado até o final desse ano. Em linhas gerais, as mudanças propostas pelo MEC têm como objetivo promover uma redução pela metade da carga horária do NEM referente ao segmento da diversidade do currículo e diminuir de quatro para duas as possibilidades de áreas a serem escolhidas pelos estudantes, além do Ensino Técnico. Quanto ao ENEM, não sofrerá alteração antes de 2025.

O projeto educacional neoliberal deflagrado pelo governo Temer com o modelo do Novo Ensino Médio e a sua consolidação no governo Bolsonaro contribuíram diretamente para alargar ainda mais o evidente abismo social que existe na sociedade brasileira. Obviamente que o modelo de Ensino Médio anterior ao NEM estava em crise, isso é inegável, mas o modelo que o substituiu, ao invés de fornecer respostas consistentes para a crise, na tentativa de solucioná-la, na verdade aprofundou a crise. Se Darcy Ribeiro considerava a crise na educação brasileira um verdadeiro projeto político, a política neoliberal de Temer e Bolsonaro para a educação foi um bom exemplo de comprovação desse “projeto”, denunciado pelo autor d’O povo brasileiro. Resta-nos, não apenas aguardar o encaminhamento do Projeto que altera o NEM e torcer para a sua aprovação no Congresso, mais do que isso, anseia-se que dessa alteração emerja um verdadeiro Novo Ensino Médio e não um modelo educacional envernizado com cores suaves para esconder intenções nefastas. Um Novo Ensino Médio que, longe de acentuar as desigualdades sociais, sirva como ferramenta para a realização de um objetivo estruturante da democracia: a igualdade.

Para alcançar esse objetivo, será necessário implementar um modelo educacional eficiente que não utilize as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa (áreas extremamente importantes, sem dúvida) para ofuscar as demais áreas do vasto conhecimento humano. O novíssimo modelo de Ensino Médio deve possibilitar aos estudantes acesso a tecnologias avançadas e inovadoras, criar opções diversificadas no âmbito profissionalizante, e, concomitantemente, terá que ser inclusivo, plural, humanista e capaz de fornecer recursos teóricos e práticos aos estudantes não apenas para assimilar o que é “cidadania”, mas para que também os encorajem a exercê-la de forma plena, bem como instaure condições para a conquista tanto de uma consciência de classe quanto de uma emancipação como indivíduo.

Possivelmente, o caminho para a realização desse objetivo passa pela valorização da Filosofia (que estimula o desenvolvimento do pensamento crítico e a autonomia), da Sociologia (capaz de fomentar no estudante o alvorecer de uma compreensão crítica em relação a sociedade e suas instituições), da História (ramo do saber que permite ao estudante conhecer o passado para entender o presente), da Geografia (campo do conhecimento que oportuniza ao estudante acesso a um entendimento sobre o espaço físico e humano, isto é, as relações entre a sociedade e o meio no qual ela é constituída) e da Biologia (incumbida de estudar os seres vivos e propiciar assim uma apreensão de como funciona os organismos vivos e suas relações com o meio nos quais estão inseridos e seu processo de evolução). O novíssimo Ensino Médio não deve esquecer naturalmente de garantir o devido espaço para as disciplinas de Artes, Línguas Estrangerias, Física, Química e a Educação Física.                                          

Somado aos obstáculos em torno da realização desse amplo objetivo, o novíssimo modelo de Ensino Médio que está sendo gestado, e se avizinha, terá pela frente o desafio de estreitar as fronteiras entre teoria e prática, diante de uma sociedade marcada por um forte individualismo e caracterizada por uma velocidade estonteante na qual a obtenção de informações diversas, que muitas vezes nos chegam de formas fragmentadas e oblíquas, encontram-se a um toque de nossos celulares.

Vital Alves

Escritor e Filósofo

Doutor em Filosofia – UFG e Pós-doutorando em Filosofia Política – USP

Autor do livro: Corrupção política e republicanismo – a perda da liberdade segundo Jean-Jacques Rousseau (2020).

REFERÊNCIAS

MEC – Ministério da Educação. www.mec.gov.br

MEDEIROS, J., JANUÁRIO, A. e MELO, R. Ocupar e resistir: movimento de ocupação de escolas pelo Brasil. São Paulo, Editora 34, 2019.

REVISTA GALILEU. www.revistagalileu.globo.com

RIBEIRO, D. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

TODOS PELA EDUCAÇÃO. www.todospelaeducacao.org.br

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