Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Na sala da justiça. Contos. Gabriela Jardon. Belo Horizonte: Caravana, 2023, 52 p.
Conforme a descrição da obra, na página da editora, Na sala da justiça, de Gabriela Jardon, traz os meandros da literatura e o dia a dia dos tribunais, a condição humana posta ao seu limite. É uma vibrante série de contos, escritos por uma juíza de direito cuja inteligência e sensibilidade não cabem no enquadramento asséptico dos processos e das audiências judiciais.
Mas mesmo nesse espaço contido que é o procedimento judicial, Gabriela já se revelara por inteiro, trazendo sutileza e elegância ao seu ofício e, nesse ofício, na expressão de uma justiça poética para aludir à caracterização proposta por Martha Nussbaun, para designar o juiz sensível, aquele que sabe se colocar no lugar do outro. Deixei essa condição mais detidamente assinalada em recensão sobre a obra da filósofa do direito da Universidade de Chicago – Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica. Martha Nussbaun. Barcelona, Buenos Aires, Mexico DF, Santiago: Editorial Andrés Bello, 1997 – publicada aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/).
Essa perspectiva em Gabriela pode ser localizada em sua dissertação de mestrado que tive a satisfação de orientar – O Direito de Escuta das Partes Processuais, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, do CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares. Brasília: Universidade de Brasília, 2021. Confira-se minha resenha em http://estadodedireito.com.br/o-direito-de-escuta-das-partes-processuais/. Numa atitude judicante que embala com sutileza, elegância e ritmo a sua escrita já se mostra marcantemente literária além de metafórica para tornar disponíveis à cognição mediações raras nesse ofício.
Tudo para vencer o obstáculo de um sistema e de um agente (o juiz), inaptos para o escutar: “provas de fatos, seguidas da subsunção silogística fato-norma-jurisprudência, são, pois, o centro insistente das práticas de trabalho da magistratura – e não deixa de ser curioso como, assim, vão se derretendo os sentidos originários da audiência e da sentença, etimologicamente, “atenção dada a quem fala” e “ato de sentir”, respectivamente. O juiz e a juíza brasileiros/as do século XXI, realizam centenas de audiências e exaram milhares de sentenças ao ano, mas, na maioria das vezes, fazem audiências sem ouvir e, por isso, acabam emitindo sentenças sem sentir” (p. 178, da Dissertação).
Na resenha, sob essa perspectiva, chego a supor que a Autora ensaia um manual de uso atenta a não permanecer no plano abstrato do desejo, mas a formular desenhos operativos que institucionalizem a escuta. Ela projeta procedimentos e diretrizes de formação. Tem educação esmerada para conhecer os entraves funcionais, burocráticos, regulamentares e até subjetivos. Leu Anatole France, leu Tolstoi, lei Proust, leu Balzac. Transcreveu páginas dramáticas dos três primeiros. Pensa como Balzac:
“Quando um homem cai nas mãos da Justiça, deixa de ser um ser moral, mas apenas uma questão de direito ou de fato, como aos olhos dos estatísticos se transforma um número” (BALZAC, Honoré de. O Coronel Chabert, Otto Pierre, Anatole France, pensou no juiz. Poderia também fazê-lo quando o grande escritor olha com os olhos do jurisdicionado (Da Submissão de Crainquebille às Leis da República. Crainquebille in FRANCE, Anatole. A Justiça dos Homens, Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 1978): “Crainquebille sentou-se na sua banqueta acorrentada, cheio de espanto e admiração. Ele mesmo não estava bem certo de que os juízes se houvessem enganado. O tribunal escondera-lhe as suas íntimas fraquezas sob a majestade das formas. Ele não podia acreditar que pudesse ter razão contra magistrados cujas razões não compreendera: era-lhe impossível conceber que alguma coisa claudicasse numa tão bela cerimônia”.
É instigante surpreender esse trânsito epistemológico enredado na interseção de linguagens, da arte, da ciência, da filosofia, do direito tão natural em Gabriela. Confirmando o que propõe o professor Eduardo Lourenço de Coimbra (A Mitologia da Saudade), que real pode ser apreendido por muitas linguagens. Aliás, tomando uma das referências de Gabriela – Anatole France – que vai lhe emprestar o tema de uma de suas crônicas – A lei é morta, o juiz é vivo – pode-se imediatamente configurar o Carrefour de suas múltiplas manifestações de sua potência de expressão.
Penso em Retratofalado. Ensaios em Estado de Imagem. Textos Danielle Martins, Gabriela Jardon, Mariana Carvalho. Fotografias Wanessa Montoril. Brasília: Edição das Autoras/Athalai Gráfica e Editora, 2019, obra que reúne contos de mulheres que atuam no mundo do Direito. Ali vai aparecer Gabriela Jardon e suas crônicas, dando vida a leis inanimadas: “Pela primeira vez na vida, fiz uma inspeção judicial. Inspeção judicial é um meio de prova previsto no Código de Processo Civil e praticamente morto. Este nosso novo mundo de números, estatísticas, massificação de processos, pressas e agonias não deixou mais espaço para que um juiz, na dúvida sobre alguma coisa, pegue seu bocadinho de tempo, desloque-se, vá até o local do problema, veja com seus próprios olhos, roce sua pele e sinta o cheiro das controvérsias, não se contentando só com as suas tão desconfiáveis narrativas. Pois outro dia fui. Dois prédios geminados de quitinetes nas setecentos da Asa Norte. Os moradores, com os anos, foram invadindo aqui, deixando o vizinho entrar ali, mudando as paredes internas, de modo que existe lá hoje o estranhíssimo fenômeno arquitetônico de haver quitinetes localizadas metade em um prédio e metade em outro. Um dos edifícios foi a leilão e arrematado. O arrematante quer que os moradores saiam do imóvel adquirido por ele. Devemos precisar então, exatamente, onde cada quitinete se localiza. Nomeei um perito engenheiro civil e ele orçou alto a perícia. As quitinetes são simplórias, as pessoas envolvidas não têm o dinheiro e estávamos nesse impasse. Sabe de uma coisa? Vou lá com minha trena – eu sempre gostei de uma reforma. Em 15 minutos, tive todas as respostas que precisava e voltei para a vara com uma noção do que estava em jogo poucas vezes alcançada por mim em outro processo”.
É esta juíza sensível que chega à pós-graduação em direitos humanos na UnB, depois de já ter completado um máster sobre o tema em Essex (Reino Unido) para abrir os debates sobre a escuta profunda tão necessária nos espaços de mediação institucional: “Não há dúvida de que o Judiciário tradicional, calcado quase que apenas na operação pretensamente matemática da subsunção do fato à norma estatal, dá conta, se é mesmo que dá, de uma parcela ínfima do que pode se entender por direito e distribuição de justiça. É urgente que se alarguem as possibilidades, que se trabalhe com outras racionalidades e caminhos de formação de decisão. Não se está falando, necessariamente, de direito alternativo ou de ativismo judicial. Sem descartá-los, a apologia a estas inclinações também seria encerrar o fenômeno do direito e da justiça em quadrantes menores do que sua real natureza. O Judiciário precisa se fazer permeável aos fenômenos sociais de uma maneira ampla, aguçando sua escuta e levando em consideração em seus processos decisórios argumentos que não sejam estritamente os do direito positivado”. (Gabriela Jardon, Um “tribunal achado na rua”: seria possível? Seria útil? Ou não passa de uma quimera?. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal, v. 1 n. 2 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras).
Aqui vemos os contos selecionados como expressão literária. Não é um acontecimento inédito como mostrei acima. Gabriela já debutara em coluna de um jornal de Brasília – https://www.metropoles.com/author/gabriela-jardon. Mas os que a conhecemos sabemos que ela é cronista em tempo integral, literalizando o seu alredor. Toda a sua estada recente em Portugal onde finaliza doutoramento é comunicada nessa forma literária. É um verdadeiro diário de viagem (ainda espero uma carta de viagem para a seção Cartas de Viagem do Blog Diários Lyrianos, cartas do Douro ou do Mondego). Mas seu próprio cotidiano é assim vivenciado. Quem passear em seu perfil no facebook poderá encontrar perolas de seu modo de perceber o mundo e o outro. Como essa que colhi deslumbrado:
Ela me pediu pra passar batom. “Mas vai melecar a chupeta”, disse eu. Olhou pra mim, olhou pra chupeta, resolveu: “não vou mais usar chupeta”.
Varada pelo tiro do tempo (como ocorre de sentir tanto), fiquei ali, de mão boba no ar, abanando chupetas, fraldas, mamadeiras e infinitos objetos e desobjetos passados.
E aí corri, corri depressa, tentando não olhar muito pra trás, a colocar os meus bebês no berço úmido das memórias sagradas da vida da gente. Nesse baú, o mais antigo, doce e doído de todos. E ali passar a niná-los ao me ninar também (como ocorre de precisar tanto).
Esse poderia ser um conto de um livro futuro: No meu berçário. Assim como agora ela nos brinda com esse Na Sala de Espera. Além de A lei é morta, o juiz é vivo, vamos encontrar: Quer voe, quer julgue; Dona Carlota; Kátia; Bola de Cristal; Seu Daniel; Getúlio; Lindo é pouco; Mais pai, impossível; Revéillon; Seu Jarbas; Rotina, só que não.
Com este último conto, fecho a resenha, e pareço compreender tudo. Talvez como o juiz de Tostói (A morte de Iván Ilitch): “Não sabia como eu o sei agora”. Com Gabriela, simplesmente Gabriela, também se possa dizer, “É trabalho. É rotina. Mas às vezes não é nada disso”.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).