por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Com esse núcleo de denúncia e de repúdio, O Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) e a Coalizão Brasileira em Defesa da Democracia (CBDD), acabam de divulgar nota em defesa das Deputadas levadas ao Conselho de Ética da Câmara Federal, por pretensa quebra de decoro, ao se posicionarem contra o Marco Tempora. A Nota, com efeito, busca expressar “inteira solidariedade às Deputadas Federais Célia Xacriabá (MG), Fernanda Melchionna (RS), Sâmia Bomfim (SP) e Talíria Petrone (RJ), do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e às Deputadas Federais Érika Kokay (DF) e Juliana Cardoso (SP), do Partido dos Trabalhadores (PT), que respondem a processo disciplinar no Conselho de Ética da Câmara Federal por falas proferidas quando da aprovação do projeto de lei que impõe marco temporal para a demarcação das terras indígenas”.
Mais do que isso, as duas articulações que assinam a Nota, afirmam incisivamente que conquanto “manifestações enfáticas e debates acalorados façam parte da prática política”, elas não podem ser pretexto válidopara “calar dissidências”. Conforme entendem as subscritoras, essas condições, põem a descoberto “a existência de processo sem justa causa [que]materializa – no interior do Parlamento – o uso incontestável das normas para perseguir e aniquilar oponentes políticos (o chamado lawfare), uma prova inequívoca de misoginia e uma atitude muito pouco afeita à democracia, para dizer o mínimo”.
Contra essa violência, aliás, e em defesa de um protagonismo feminino parlamentar que tem denunciado tratamento desigual que a redução patriarcal só acentua, é que o Forum Social Mundial Justiça e Democracia, reunido em Porto Agre ao final de 2022, pontuou em sua declaração de encerramento, a urgência de arregimentar “as forças sociais para permanente de avaliação, de denúncia e de transformação dos sistemas de justiça para a garantia da democracia – identifica(r) a ação dos sistemas de justiça fragilizados na sua independência, que se prestam a aprofundar o fosso entre a institucionalidade e a cidadania. Denuncia(r), então, tais sistemas instruídos pelo neoliberalismo, conformados à burocracia e pouco entusiastas da democracia, que se mostram antes propensos a abrir do que fechar as portas para o fascismo”.
E por isso, em face de tal propensão, acentuou, “além de gerar críticas, impõe a autocrítica como necessidade inescapável de quem atua no interior desses sistemas… demanda um agir concentrado para extrair o racismo, o poder patriarcal cis-heteronormativo e o elitismo que contaminam os sistemas de justiça instituídos nos territórios dos países colonizados e que contribuem para sequestrar a democracia. […] uma autocrítica disposta a mirar essas marcas históricas e a comprometer-se com a superação delas”.
Por isso que faz muito sentido, voltando a Nota, chamo a atenção para o relevo posto no tema da guerra híbrida, como tem sido designada a questão do lawfare. Em relação às deputadas, a Nota é contundente:
“Derrotado nas eleições presidenciais, mas com maioria na Câmara Federal, o ultraconservador Partido Liberal (PL) apresentou à Mesa Diretora da Casa, no dia 30/05/23, uma representação coletiva contra seis das mais combativas deputadas da esquerda.
Mirou, de uma só vez, 1/5 do total das parlamentares de esquerda, mulheres que defendem de forma aguerrida as teses programáticas do atual governo, a exemplo do direito dos povos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, consagrado na Constituição de 1988 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Em desprezo à vedação regimental de representação coletiva, o presidente da Câmara acolheu e despachou, no dia 31/05, a iniciativa do PL, enviando-a ao Conselho de Ética, o qual deu pronto andamento à demanda. O PL, porém, desistiu dela em 12/06, quando também ofereceu à Mesa seis outras peças acusatórias individuais contra as parlamentares. As peças foram protocoladas, acolhidas e redistribuídas ao Conselho de Ética em menos de quatro horas desde sua apresentação. Enquanto isso, as representações mirando os parlamentares partícipes dos atos golpistas de 8 de janeiro, esperam há quase 150 dias o despacho do presidente da Casa, pelo visto ainda pouco sensível aos atentados contra a Democracia e à presença das mulheres na política. Aliás, a misoginia parece ser regra no Parlamento brasileiro, evidenciada por estratégias que vão desde a anistia aos partidos políticos inadimplentes com a obrigação legal de destinar recursos às candidaturas de mulheres até a tentativa de cassação de mandato das eleitas. Embora ocupem menos de 18% do total de cadeiras da Câmara, as mulheres são alvo de 71% dos processos em tramitação no Conselho de Ética da Casa, quase todos contra deputadas de esquerda. Diante de intervenções potencialmente danosas ao decoro parlamentar, a misoginia leva à complacência com os homens e à intransigência com as mulheres, realidade também verificada nas assembleias legislativas estaduais e nas câmaras municipais”.
Confesso ter intuído essa já não sutil sobredeterminação misógina que o esforço decolonial configura como postura patriarcal, tão hierarquizante e alienante quanto o racismo e o patrimonialismo classista. Presente em audiência na CPI do MST, aliás, por meio de convite de parlamentares progressistas entre elas essas mulheres que honram o parlamento, o que me fez homenageá-las em minha exposição durante a sessão (cf. https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/; também https://www.youtube.com/watch?v=Q1n5TEJpzpw.
Daí que a Nota seja dura: “Essa obstinada campanha de silenciamento das vozes femininas no PoderLegislativo configura inegável violência política de gênero e, no caso da perseguição das seis deputadas federais, é igualmente explícita a violência política étnico-racial”. O Parlamento é o espelho da sociedade. Resultado de pesquisa divulgada hoje: “A fome esteve presente em 20,6% das famílias chefiadas por pessoas que se autodeclaram pretas, em 17% daquelas comandadas por pardas e em 10,6%, por brancas entre o fim de 2021 e o início de 2022. E em 35,5% das residências chefiadas por mulheres ocorria uma ou nenhuma refeição por dia porque não havia dinheiro frente a 22,1% de domicílios comandados por homens. Os dados, divulgados nesta segunda (26), fazem parte de um desdobramento do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e executado pelo Vox Populi.Em junho do ano passado, a primeira leva de dados do Vigisan revelou que 15,5% da população, ou 33,1 milhões de pessoas, passavam fome entre o final de 2021 e o início de 2022. Agora, os novos dados apontam que a fome tem cor de pele e gênero: quanto mais escura a pele, maior a incidência da fome” (https://ifz.org.br/fome-atinge-22-das-familias-de-mulheres-negras-e-8-de-homens-brancos/).
Ao investir contra duas deputadas indígenas e uma negra, diz a Nota, “o partido ultraconservador e majoritário no Parlamento atinge a pluralidade das mulheres brasileiras, em busca de aumentar – ao invés de reduzir – o déficit de representatividade da população nacional, feminina e negra em sua maioria. Essa estratégia visivelmente antidemocrática não pode prosperar na Casa do Povo. Aocontrário disso, compete à Câmara Federal assumir o compromisso com a garantia dos direitos políticos das mulheres brasileiras, conforme determina a Lei Maior do País, e avançar no sentido de construir a paridade de gênero e raça necessária à existência da verdadeira democracia”.
Mobilizados em defesa da dignidade parlamentar das Deputadas Célia Xacriabá, Érika Kokay, Fernanda Melchionna, Juliana Cardoso, Sâmia Bomfim e Talíria Petrone, o Fórum e a Coalizão “convocam alianças para demonstrar a absoluta ausência de justa causa de que se revestem as imputações contra essas bravas guerreiras e esperam que as relatorias dos seus processos concluam pela inadmissibilidade das representações, pois acreditam que outro mundo é possível: livre da violência política, mais justo, fraterno, pluralista e efetivamente democrático”.
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Para essa disposição que representa mobilizar, convocar alianças, sair em defesa da dignidade parlamentar dessas bravas mulheres, cabe instar com a futura Relatoria para que se posicione em parecer pela inadmissibilidade das representações e esperar que o mais amplo diálogo na esfera pública do social e da política, logre demonstrar ao próprio Parlamento, a absoluta ausência de justa causa de que se revestem cada uma das representações.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).