Terra, teto e trabalho

por Ana Paula DaltoéInglêz Barbalho (*) – Jornal Brasil Popular/DF

O tripé proposto pelo Papa Francisco e seu impacto na percepção da legitimidade dos movimentos sociais

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Federal que investiga o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é palco de propostas inusitadas.

Na última quarta-feira, 14 de junho de 2023, durante audiência pública com o convidado especial Professor Doutor José Geraldo de Sousa Júnior, que trouxe parte da historicidade da concentração de riquezas pela terra no Brasil e a permanente necessidade de reforma agrária, o relator da CPI, Deputado Ricardo Salles (PL/SP) trouxe cálculos sobre a “rentabilidade” da estrutura da reforma agrária.

A proposta do relator, baseada na oitiva da visita de Francisco Graziano Neto, ex-presidente do Instituto de Reforma Agrária (Incra), em audiência pública anterior na mesma CPI, indica que o investimento do Estado brasileiro na aquisição de um lote para assentamento da reforma agrária custa R$ 217 mil. Um assentado retira uma renda em torno de R$ 300 mensais de sua produção nesse lote, o que não corresponderia ao valor pagar como rentabilidade na poupança, caso o dinheiro tivesse sido investido. Assim, seria mais economicamente eficiente investir o recurso e repassar o valor dos rendimentos ao (des)assentado.

O relator, no entanto, não percebe, ou deliberadamente tenta convencer a sociedade de que esta é a forma de medir a eficiência de uma política pública, manifestando justamente a inversão da dialógica de se pensar a reforma agrária. Se transforma o camponês em rentista – vocação para a qual não se confirma sua essência, sua humanidade e sua dignidade. Que paz social pode advir desse tipo de proposta? A paz neoliberal, segundo a qual o humano é reduzido à coisa e o valor intrínseco da dignidade é dado pelo volume da conta bancária, serve a propósito da riqueza, do capital. Considera descartáveis e inadequados socialmente aqueles que não se inserem no sistema capitalista excludente e predatório.

Dei-lhe a chance da dialética e esperei a argumentação.

Estando presente na audiência e ouvindo a proposta “ao vivo e em cores”, de início pensei que pudesse ser uma provocação para inauguração do debate. Infelizmente não foi o caso: o relator tentava trazer um argumento que supostamente deveria reforçar a ideia de que a redistribuição de terras no Brasil não é necessária, vez que economicamente não seria interessante pelo baixo rendimento do “investimento”.

“Não existe pior pobreza material do que aquela que não permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho”, disse o Papa Francisco. O relator da CPI do MST esqueceu-se de contabilizar toda a dignidade que existe em viver do próprio trabalho, em produzir o que comemos e em viver a terra para condução a um bem comum maior. Diante de todos os desafios que a contemporaneidade nos propõe, o Papa Francisco nos traz uma importante reflexão: “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que provém do trabalho” deveria ser a meta maior de nossas sociedades.

Em outubro de 2014, na Cidade do Vaticano, ocorreu o primeiro encontro mundial de Movimentos Populares, com a participação especial papal. No encontro, o Papa Francisco referiu que a presença dos Movimentos Populares como um “grande sinal”, porque se colocam para “pôr na presença de Deus, da Igreja, uma realidade muitas vezes silenciada”. E indicou que “Os pobres não só sofrem a injustiça mas também lutam contra ela”. Assim, “Terra, teto e trabalho, aquilo por que lutam, são direitos sagrados. Reclamar isso não é nada de estranho, é a Doutrina Social da Igreja”.

À audiência, o Papa Francisco apelou à defesa dos direitos dos trabalhadores e das suas famílias: “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.

No Brasil, quase 10 anos depois, a discussão na CPI do MST é claramente tentativa de criminalização dos movimentos sociais. Em 2010, Antonio Sergio Escrivão Filho e Darci Frigo, em “A luta por direitos e a criminalização dos movimentos sociais: a qual Estado de Direito serve o sistema de justiça?”, trouxeram a informação de que já havia naquele momento “um processo persistente de criminalização em curso no Brasil contra movimentos sociais – incluindo nesta categoria os defensores e defensoras de direitos humanos – ainda que com variações de intensidade, de atores, de instituições envolvidas e mecanismos utilizados.”

No artigo, os autores evidenciam que o processo de criminalização dos movimentos sociais atua combinando-se com outras diversas estratégias adotadas pelas classes dominantes como a cooptação e a violência, com vistas a bloquear as lutas sociais por direitos.

No que tange à violência no campo, os dados coletados pela Comissão Pastoral da Terra, ano a ano reforçam que a violência continua sendo um mecanismo de imposição do poder e de terror. Em 2009, 25 assassinatos, 205 agressões e 71 casos de tortura foram registrados contra trabalhadores rurais. Em 2022, no Caderno Conflitos no Campo Brasil 2022, os dados apontam um ambiente ainda mais hostil contra os povos indígenas, comunidades quilombolas, sem-terra e posseiros. Foram registradas 2.018 ocorrências, envolvendo 909.450 pessoas e 80.165.951 hectares de terra em disputa em todo o território nacional. Foram 47 assassinatos no campo, 123 tentativas de assassinato e 553 ocorrências de violência contra pessoa.

Além disso, pode-se destacar que esta violência caminha com a impunidade seletiva, especialmente dos crimes de mando, um dos seus mecanismos de retro-alimentação que raramente condena os poderosos e incita medo nas comunidades. Mesmo quando pensamos em casos emblemáticos como Dorothy Stang ou Chico Mendes, a efetiva punição dos mandantes é a exceção, demonstrando o viés da prestação jurisdicional.

As forças conservadoras dominam espaços do aparelho de estatal e permitem que mecanismos variados sejam usados seletiva e simultaneamente contra os movimentos sociais, como prisões, inquéritos policiais, ações criminais, ameaças, Comissões Parlamentares de Inquérito, tomadas de contas, fiscalização “dirigidas” por órgãos de fiscalização e controle como o Tribunal de Contas da União-TCU e a Controladoria Geral da União-CGU.

Em articulação com iniciativas do “agro-pop”, o direcionamento midiático conduz a um processo de desmoralização e satanização dos movimentos sociais. A atual CPI do MST na Câmara dos Deputados faz parte desse processo. Na mesma audiência pública, foi reproduzido um vídeo do Incra, proposto pelo relator, vez que os demais integrantes da CPI não podem trazer ao conhecimento dos demais vídeos e outras mídias, que mostrava cenas de violência no campo. O vídeo não explicitava os responsáveis pela violência. Deixava no ar a suposta participação de movimentos sociais – não os pistoleiros e posseiros que, a mando de grileiros e latifundiários, atacam os assentados, conforme a imensa maioria dos registros demonstra.

Como uma estratégia usual da direita no Brasil, a CPI do MST reproduz a desinformação: a forma de organização da indicação dos futuros assentados é tida pelo relator como uma forma de burla ao sistema de concessão de terras. Em verdade, a organização social que estrutura a listagem é um grande triunfo da organização coletiva e comunitária.  Segundo o site do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é um movimento social, de massas, autônomo, que procura articular e organizar os trabalhadores rurais e a sociedade para conquistar a Reforma Agrária e um Projeto Popular para o Brasil.

Segundo dados do MST, o Movimento está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país. No total, em 35 anos de luta, cerca de 450 mil famílias conquistaram a terra por meio da luta e organização dos trabalhadores rurais. Mesmo depois de assentadas, as famílias permanecem organizadas no MST, pois a conquista da terra é apenas o primeiro passo para a realização da Reforma Agrária.

Os latifúndios desapropriados para assentamentos usualmente possuem poucas benfeitorias e infraestrutura, como saneamento, energia elétrica, acesso à cultura e lazer. Para conquistarem esses direitos básicos, as famílias assentadas seguem organizadas e realizam novas lutas.

As estruturas decisórias das unidades do MST são participativas e democráticas. Nos assentamentos e acampamentos, as famílias organizam-se em núcleos que discutem as necessidades de cada área e as decidem coletivamente. Nesses núcleos, são escolhidos os coordenadores e as coordenadoras do assentamento ou do acampamento. A mesma estrutura se repete em nível regional, estadual e nacional. Um aspecto importante é que as instâncias de decisão são orientadas para garantir a participação das mulheres, sempre com dois coordenadores/as, um homem e uma mulher. E nas assembleias de acampamentos e assentamentos, todos têm direito ao voto: adultos, jovens, homens e mulheres.

Da mesma forma, isso acontece nas instâncias nacionais. O maior espaço de decisões do MST são os Congressos Nacionais que ocorrem, em média, a cada cinco anos. Além dos Congressos, a cada dois anos o MST realiza seu encontro nacional, onde são avaliadas e atualizadas as definições deliberadas no Congresso.

Para encaminhar as tarefas específicas, as famílias também se organizam por setores, que são organizados desde o âmbito local até nacionalmente, de acordo com a necessidade e a demanda de cada assentamento, acampamento ou estado.

Não podemos esquecer o objetivo da reforma agrária: dar terra a quem produz. A produção de alimentos para consumo interno é o foco dos assentamentos da reforma agrária. Estudo da Embrapa em parceria com o Incra e a UFRGS, especificamente avaliando assentamentos do MST no Rio Grande do Sul, publicado em 2007, constatou que “quase todos os assentamentos apresentavam produção de milho, feijão, leite, ovos, aves e suínos; e boa parte deles, também, de arroz e soja. Comparando às microrregiões onde estes se localizam, demonstramos que os assentados, em média, produzem alimentos como qualquer agricultor familiar, superando as dificuldades inerentes a um processo de reforma agrária historicamente mal implementada”.

Os alimentos produzidos no âmbito da agricultura familiar abastecem o mercado interno e auxiliam no controle da inflação dos alimentos do Brasil, produzindo cerca de 70% do feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca, 60% da produção de leite e 59% do rebanho suíno, 50% das aves e 30% dos bovinos. A organização do MST originou as cooperativas, as associações e as agroindústrias nos assentamentos e, atualmente, o MST organiza sete principais cadeias produtivas no Brasil: feijão, arroz, leite, café, sucos, sementes e mel. O MST tornou-se referência em algumas culturas orgânicas, como o arroz, sendo o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Em 2017 foram produzidas 27 mil toneladas de arroz orgânico.

O dados de produção de alimentos são apenas uma das formas de medir o “sucesso” de um assentamento, muito além do índice de desenvolvimento humano. A baixa remuneração nominal não representa a riqueza e a diversidade de culturas e formas de vida fundadas na dignidade humana.

É necessário sensibilizar a sociedade, mobilizar e articular forças sociais, fortalecer e multiplicar as lutas por direitos, desencadear novos processos de luta e organização populares em torno do lema “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que provém do trabalho”.

A consciência de que a pobreza, opressão e marginalização não são um fato isolado e casual, mas um fenômeno massivo e um produto social, resultado da organização da sociedade, tem profundas consequências sociopolíticas.

É preciso enfrentar o problema e reconhecer que estes mecanismos protegem os interesses dos setores dominantes e produzem a pobreza e a marginalização social.

Nesse sentido, é necessário criar mecanismos que limitem a acumulação de bens e poder, que distribuam riqueza, e garantam as condições materiais, sociais, políticas, culturais e religiosas de reprodução da vida. É preciso transformar a sociedade.

Na encíclica Laudato si’ de Francisco (2015) o PapaFrancisco insiste na necessidade de mudança estrutural. A consciência de que a opção pelos pobres tem uma dimensão socioestrutural é apenas o início: é preciso empenho real e efetivo pela transformação das estruturas da sociedade. E isso se dá tanto pela conscientização quanto pelo fortalecimento de processos e organizações populares de luta por direitos.

No Brasil, é necessário realizar as promessas inscritas na Constituição e superar a desigualdade social no campo e na sociedade brasileira. A reforma agrária visa superar o processo histórico da concentração da terra e da renda: 46% das terras brasileiras estão nas mãos de 1% dos proprietários de terras.

É este o embate na CPI do MST:de um lado, os que tentam a promoção social da justiça e da diminuição das desigualdades – com todas as possíveis falhas que este processo possa acarretar; do outro, atores se organizam em torno de um modelo de desenvolvimento de cunho neoliberal, socialmente excludente, concentrador de renda e ambientalmente predatório, e que tem bloqueado as mudanças gestadas nas lutas contra as desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais, amparadas pela Constituição de 1988 e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos.

É este o momento em que o parlamento brasileiro e, em última instância, nossa sociedade como um todo, irão definir o equilíbrio e a justiça no caso dos movimentos sociais de luta pela terra no Brasil.

(*) Por Ana Paula DaltoéInglêz Barbalho, vice-presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília

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