Por que devemos rechaçar a Tese do Marco Temporal

por Ana Paula DaltoéInglêz Barbalho (*) – Jornal Brasil Popular/DF 

Ou “quem seremos nós na página da História do Brasil?”

O título deste artigo traz centralidade ao tema que vem sendo discutido há alguns anos no Congresso Nacional a título de regulamentação do direito de demarcação das terras dos povos originários frente ao pacto social estabelecido pela Constituição de 1988 e também no âmbito do Poder judiciário.

A Constituição de 1988, em seu artigo 231, dispõe o seguinte:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

O grifo “tradicionalmente ocupam” é o ponto sensível da questão.

A conquista do reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição de 1988, elencados nos artigos 231 e 232, foi a oportunidade para as comunidades indígenas reivindicarem junto ao Estado o reconhecimento e a demarcação de suas terras de onde haviam sido, há não muito tempo, expulsos e desapropriados. Como consequência, a partir dos anos 1990 o Brasil passa a realizar um amplo processo de demarcação de terras. Segundo dados da FUNAI, existem 435 terras indígenas regularizadas no país, sendo a quase totalidade – 98% da área – demarcada está na Amazônia.

A Tese do Marco Temporal, defendida pelo agronegócio – que de pop não tem nada – sustenta que os povos indígenas só possuem direito às terras que estavam por eles ocupadas na promulgação da Constituição, em 05 de outubro de 1988. Isso significa que, independentemente de conflitos, expulsões e extermínios enfrentados pelas populações originárias há 523 anos em nosso território, quando Pindorama passa a ser conhecida pelos subsequentes nomes europeus – sete no total, a saber: Ilha de Vera Cruz, em 1500; Terra Nova, em 1501; Terra dos Papagaios, também em 1501; Terra de Vera Cruz, em 1503; Terra de Santa Cruz, ainda em 1503; Terra Santa Cruz do Brasil, em 1505; Terra do Brasil, em 1505; e finalmente Brasil, somente serão passíveis de reconhecimento e demarcação as terras que os povos originários ocupavam no democrático ponto espaço-tempo da cronologia cristã, quando da assinatura de Ulisses Guimarães.

A famigerada Tese do Marco Temporal não se esconde nos submundos dos ataques quotidianos e violentos às populações indígenas: tramita sob epíteto Projeto de Lei 490/2007, de autoria de Homero Pereira, que, nos termos do regimento da Câmara Federal, está pronto para pauta no Plenário.

Confira aqui o inteiro teor do descalabro

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345311

O PL 490/2007 é um grande empecilho para o direito dos indígenas às suas terras, mas não é o único.

Pesquisa realizada em 2020 pelo Supremo em Pauta, da FGV Direito SP, em parceria com a WWF Brasil, catalogou 365 ações judiciais que aguardavam julgamento definitivo ou liminar no Supremo Tribunal Federal, relacionadas aos direitos socioambientais, até junho de 2020.  Destas, 210 foram consideradas de grande relevância. Aproximadamente 35,7% destas ações consideradas relevantes tem como tema principal o acesso ao reconhecimento do usufruto da terra por populações indígenas (72 ações de reconhecimento de terras indígenas) e  quilombolas (3 ações de reconhecimento de terras quilombolas). As ações refletem a realidade de ferrenho litígio envolvendo todas as etapas do processo de demarcação de terras: ações contra a identificação pela Funai, contra a expedição de portarias declaratórias pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e contestando os decretos de homologação da demarcação pela Presidência da República são abundantes e mobilizam argumentos de toda ordem.

As ações são, em sua maioria, disputas de caráter federativo, ou seja, de Estados contra a União, e de particulares contra povos indígenas. Reiteradamente os litígios avançam para uma fase posterior à demarcação: o esbulho das terras indígenas é levado ao Supremo Tribunal Federal, pedindo a retirada de particulares.

Nesse campo minado, em 2017, a Advocacia-Geral da União emitiu o Parecer Normativo 001/2017/GAB/CGU/AGU, que estabelece o dever da Administração Pública Federal, direta e indireta, de observar, respeitar e dar efetivo cumprimento, de forma obrigatória, às condições fixadas na decisão do Supremo Tribunal Federal na PET 3.388/RR em todos os processos de demarcação de terras indígenas. O parecer contém a inconstitucional interpretação do texto do Artigo 231 da Constituição de 1988 e inaugura formalmente a Tese do Marco Temporal como balizador das decisões do Estado brasileiro diante das demarcações de Terras Indígenas. Foi aprovado no governo de Michel Temer.

A Advocacia-Geral da União, por suas prerrogativas e competências legais, é a instituição responsável pela defesa judicial do Estado Federal, isto é, pela representação em juízo dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como também é responsável pela orientação jurídica do Poder Executivo.

Isso significa que o Parecer Normativo 001/2017/GAB/CGU/AGU indica, portanto, que no âmbito da competência da AGU adotar a Tese do Marco Temporal nas questões relacionadas a demarcação das Terras Indígenas.

Assim, na égide da inconstitucional Tese do Marco Temporal, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem comprovadamente sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Na condição de cidadãs e cidadãos, coletivamente e em reconhecimento dos direitos dos povos originários, devemos manifestar nosso apoio irrestrito aos povos indígenas. O texto da Constituição de 1988 reconhece os direitos dos indígenas e é uma resposta aos sistemáticos atentados violentos sofridos em sede de direitos e de garantias individuais destes coletivos de originalidade ancestral do território brasileiro.

A cosmovisão dos povos originários depende da ocupação segura e permanente de seus territórios. Sabemos que os territórios são espaços de disputa historicamente usurpados, mediante intensa violência contra os povos originários, e consequência de perdas irreparáveis.

No caso concreto

O Supremo Tribunal Federal analisa a ação de reintegração de posse movida pelo Governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à terra indígena Ibirama-Laklanõ, em sede de repercussão geral. Ruralistas e setores interessados na exploração destes territórios de ocupação tradicional defendem, amparados pela Tese do Marco Temporal. A Corte está diante do principal caso indígena de sua história: o RE No 1.017.365/SC, ao qual reconheceu repercussão geral. O processo trata da espoliação de terras de comunidades indígenas que, em 1988, não estavam na posse diante do esbulho de não-índios e da impossibilidade de resistir.

Os Xokleng são vítimas de brutal tentativa de colonização que quase resultou na extinção do seu povo. Originalmente ocupavam toda a região Sul do Brasil, desde onde hoje está situada Porto Alegre à atual Curitiba. Após inúmeras invasões e violências sofridas durante séculos, muitas delas sob auspício do Estado brasileiro e das federações, foram expulsos dos seus territórios, e atualmente estão concentrados somente em uma pequena área em Santa Catarina.

Parte desse território está em disputa por meio de ação possessória ajuizada pela Modo Battistella Reflorestamento S/A, ao juízo da 1ª Vara Federal de Rio do Sul (SC) que deferiu a reintegração e a desocupação do imóvel. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), por sua vez, manteve a determinação, ao negar recurso dos advogados dos indígenas.

Segundo o povo Xokleng, apesar de ação ter sido protocolada em 2013, a reintegração de posse não havia sido efetivada até então, e o processo teve diversas movimentações entre 2020 e 2021.

A juíza de primeira instância determinou o imediato cumprimento da ordem de reintegração de posse, e a comunidade foi intimada da medida em 29/09/2021. O TRF-4 negou recurso e manteve a ordem. Tanto a juíza como o Tribunal acolherem o argumento de que a área a ser reintegrada está apenas parcialmente dentro da terra indígena Ibirama La-Klãnõ.

Os povos indígenas se mobilizaram, coletivos da sociedade civil lançaram marchas e manifestos em favor dos indígenas. Uma carta aberta aos Ministros do Supremo Tribunal Federal teve adesão de mais de 180

O ministro Edson Fachin deferiu liminar na Reclamação (RCL) 49773 para suspender ação de reintegração de posse do imóvel localizado em terra reivindicada pelo povo Xokleng, em Santa Catarina.

O processo se enquadrava na hipótese do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral, que suspendeu reintegrações de posse de terras indígenas durante a pandemia de covid19. Em análise preliminar do caso, o relator observou que não havia decisão definitiva sobre a área em disputa estar fora da terra reivindicada pelos indígenas. Diante da existência de um conflito possessório entre particulares e indígenas e do perigo de dano irreparável decorrente do cumprimento da decisão de desocupação, o ministro deferiu a liminar para suspender os efeitos das decisões do juízo da 1ª Vara Federal de Rio do Sul, em especial a determinação para reintegração de posse da área em debate, e o trâmite processual ordinário.

Ainda em 2021, o processo foi retomado e o voto do relator Ministro Edson Fachin foi favorável aos indígenas, reconhecendo o direito à reparação histórica, a resistência e a luta pela existência dos Xokleng. O Ministro Nunes Marques votou favoravelmente pelo Marco Temporal e o Ministro Alexandre de Moraes pediu vistas. Com a notícia de que o caso voltaria ao plenário e diante da possibilidade concreta de vitória dos indígenas, os ruralistas do Congresso Nacional se mobilizaram para acelerar a tramitação do PL 490/2007, indicando regime de urgência para inclusão na pauta.

Os indígenas e a sociedade civil se organizaram e realizaram nos últimos anos intensas atividades que culminaram com uma petição que recebeu adesão de mais de 160 mil pessoas.

A cosmovisão indígena é dependente da ocupação do território. Infelizmente a Tese do Marco Temporal vem sendo utilizada para impedir demarcações de terras indígenas e foi incluída nestas proposições legislativas anti-indígenas.

É necessário um posicionamento claro e firme da sociedade brasileira, reconhecendo e reafirmando, baseados nas comprovações arqueológicas e antropológicas históricas, que os povos originários são os habitantes que já ocupavam o Brasil muito antes do processo de colonização da coroa portuguesa em 1.500.

É necessário definir quem seremos nós na página da História do Brasil, a que interesses servimos e a quem serve o não-reconhecimento do direito legítimo dos indígenas de terem garantida a posse dos territórios por eles indicados, especialmente diante de áreas que tenham sido anteriormente ocupadas e tenham sido reconhecidas como parte do território de populações indígenas.

O Direito não pode ser instrumento da injustiça e da perpetuação de sistemas injustos que apenas favorecem a opressão imposta pelo status quo.

Devemos reforçar as fileiras em defesa dos indígenas, em sua luta pelo reconhecimento de seus direitos! O Brasil ainda falha na proteção de seus povos originários. O devido processo de reparação histórica não está confinado ao passado. Dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em seu Relatório Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, coletados em 2021, mostram aumento nos índices de violência contra povos originários das mais diversas etnias.

O ano de 2021 aprofundou e intensificou as violências e as violações contra os povos indígenas no Brasil. Houve aumento de invasões e ataques contra comunidades e lideranças indígenas, acirramento de conflitos em casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio. Em 2021, o Cimi registrou a ocorrência de 305 casos do tipo, que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas em 22 estados do país.

No ano anterior, 263 casos de invasão haviam afetado 201 terras em 19 estados. A quantidade de casos registrada em 2021 é quase três vezes maior do que a registrada em 2018, quando foram contabilizados 109 casos do tipo.

O componente político também se evidencia na tentativa de instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito pela Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul contra o Cimi, recentemente arquivada.

Houve aumento quantitativo de casos e terras afetadas pela ação ilegal de garimpeiros, madeireiros, caçadores, pescadores e grileiros, entre outros, os invasores intensificaram sua presença e a truculência de suas ações nos territórios indígenas.

Estes casos são muito graves e reforçam a percepção de que ainda temos, como sociedade brasileira, um longo caminho a ser percorrido. Por enquanto está aparente e necessária a manutenção da luta.

Cabe a nós, sociedade brasileira, decidirmos se vamos permanecer olhando pelo retrovisor da História, repetindo os mesmos comportamentos genocidas do passado em relação aos indígenas. Ou se vamos em direção ao futuro sustentabilista, de uma ecologia integral, horizontal e participativa, conscientes de que nosso futuro depende de reconhecermos os diretos dos indígenas agora.

Demarcação já! Não ao Marco Temporal!

(*) Por Ana Paula DaltoéInglêz Barbalho, vice-presidente da Comissão Justiça e Paz do Distrito Federal

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