El Derecho Que Nace Del Pueblo Como Derecho Insurgente

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Este já é um terceiro livro em que se argumenta que a lei nasce do povo. O Autor, Jesús Antonio de la Torre Rangel, acrescenta que essa produção jurídica do povo é direito insurgente. Neste volume, seu autor toma como base a exposição do pluralismo jurídico e uma melhor compreensão das propostas e recolhe várias das experiências analisadas em El derecho que se naciendo del pueblo, numa atualização fruto de suas pesquisas continuadas e da forte interlocução com outros pesquisadores, latino-americanos, entre esses pesquisadores brasileiros. O que é novo é que o pluralismo jurídico o reforça teoricamente; analisa outras novas experiências sócio-jurídicas e propõe outros pressupostos teóricos, onde se destaca a categoria de direito insurgente (derecho insurgente) desenvolvida por militantes juristas brasileiros na assessoria jurídica popular, para analisar as experiências do direito nascido do povo que expõe.

A convite do Autor preparei um prólogo que abre a edição, na bem cuidada tradução que sua equipe cuidou de fazer e que se reveste de um enunciado que o título que proprus sugere: Ser Sujeito de Sua Própria Experiência de Humanização e de Emancipação.

Vou ao prólogo porque, de certo modo, ele traduz a minha apreensão da obra desde quando li o seu original. Aqui ele tem o sabor de uma degustação do livro. Conservo a estrutura de artigo, com as referências bibliográficas. Um arranjo útilo para quem se interesse pelo tema ou, como foi o meu caso, o retome para orientar outra ordem de reflexão. O material que elaborei, nesse sentido, foi apropriado na preparação de obra que co-organizei e que já está no prelo para publicação prevista no dia 31 de maio: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, da Coleção Direito Vivo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023.

Para a vertente crítica que pensa o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, a hipótese do pluralismo jurídico e a condição da insurgência, são critérios constitutivos do campo, das referências possíveis de teorias de sociedade e de justiça, e de qualquer consideração que se elabore sobre o tema.

Assim, por exemplo, em minhas leituras, articulando questões sociais e possibilidades teóricas, com esse objetivo, quando tratei de esboçar a minha crítica sobre o processo de formação, conforme por exemplo, meus primeiros estudos (SOUSA JUNIOR, 1984), se mostrou inafastável abrir um capítulo sobre a pluralidade de ordenamentos e, simultaneamente, na sequência, situar a questão nas articulação entre as condições sociais e as possibilidades teóricas que abrem ensejo para a materialização do jurídico, na tensão dialética entre o instituinte e o instituído (SOUSA JUNIOR, 2002).

Algo, anota Marilena Chauí, que abre a perspectiva para a “apreensão do Direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes [que] permite melhor perceber as contradições entre as leis e ajustiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições [o que] significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora” (CHAUÍ, 1982).

Na consideração dessas interpelações, tanto políticas quanto epistemológicas, nenhum estudo terá sido desenvolvido sob a perspectiva da crítica jurídica e dos direitos humanos, sem que se estabeleça um vínculo de interlocução com a precedência de pesquisas e de análises de Jesús Antonio de la Torre Rangel, na sua sofisticada e engajada concepção de Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente.

De fato, no plano teórico, considerando as principais abordagens, todos os autores e autoras (pelo menos aqueles com os quais mais proximamente mantenho diálogo) – Boaventura de Sousa Santos, Carlos Maria Cárcoca, Oscar Correas, Raquel Yrigoyen Fajardo, David Sanches Rubio, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Luiz Edson Fachin, Amilton Bueno de Carvalho, Edmundo Lima de Arruda Junior, Lédio Rosa de Andrade, Antonio Carlos Wolkmer, Salo de Carvalho, José Carlos Moreira Silva Filho conformaram suas aproximações, em diálogo constante e intenso com o professor de la Torre Rangel.

Na articulação dos fundamentos do pluralismo e da insurgência enquanto filosofia e teoria do Direito que nasce do povo, assertivamente, “uma nova teoria do Direito”, desde 1986, com El Derecho que nasce del pueblo, depois, em 2012, com El Derecho que sigue nascendo del pueblo. Movimientos sociales y pluralismo jurídico; e agora. 2022, com El Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente, de la Torre Rangel percorre um caminho disciplinado, imaginativo e criativo que consolida uma referência para o campo.

Nas suas próprias palavras, sempre atualizando “la exposición del pluralismo jurídico como base y mejor entendimento de la propuesta y recogemos varias de las experiências analizadas” nesse formidável percurso, com a novidade que se estriba “em que el pluralismo jurídico lo reforzamos teoricamente; analizamos otras nuevas experiências sociojurídicas” e, com mais pressupostos teóricos, “destacando la categoria de derecho insurgente – direito insurgente – desarrolhada por juristas brasileños militantes em la asesoría jurídica popular, para analizar las experiências de Derecho que nace del pueblo”.

Folgo em me encontrar junto com colegas brasileiros, nesse diálogo interpretativo. Esse diálogo estabelecido desde antes, nas reflexões sobre o tema do pluralismo jurídico, já me inscrevera entre as referências do professor De la Torre Rangel, sob a perspectiva de minha abordagem enquanto direito achado na rua (SOUSA JUNIOR, 2007). Agora, nesta nova obra, o professor De la Torre Rangel me inscreve em suas referências com um ítem de seu livro O Direito Achado na Rua, como fundamento teórico y su relación com otras miradas críticas al Derecho. E o faz, fico satisfeito,  porque ele percebe a utilização de uma racionalidade analógica (categoria hermenêutica fundamental na concepção do Autor), que expressa “no una visión unívoca, que pretenda uniformar las posiciones críticas del Derecho desde los empobrecidos em sus derechos, podemos decir que El Derecho Hallado em la Calle es estrictamente derecho alternativo, es outro derecho respecto del derecho positivo, expressión éste muchas veces de injusticia; parte, además, de aceptar um pluralismo jurídico comunitário participativo, que constituye su base, al aceptar el Derecho como uma producción social em processo; tabién pude identicarse com el derecho insurgente, ya que em ciertos momentos los sujetos sociales oponen al Estado y a las clases sociales hegemónicas um derecho em resistência y lucha política”.

Uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno (De la TORRE RANGEL, 2021).

As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.

Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (YRIGOYEN, 2011), aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.

Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo (YRIGOYEN, 2021), sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.

Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, (WOLKMER; WOLKMER, 2020), se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:

“Outro claro ejemplo de racionalidade jurídica diferente, resulta em palavras de Raquel Yrigoyen, la de las Rondas Campesinas, que si bien nacen em uma primera etapa, como respuesta a uma demanda de seguridade, frente al robô y el abigeato se traduce finalmente, em prácticas sociales de auto administración de justicia” (SONZA, Bettina. 1993).

Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.

Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.

A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.

É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.

Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad

Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la  liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.

Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).

Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.

O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF.  O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.

Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.

Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone  and  GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966.  https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.

Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.

Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).

Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.

É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.

É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:

“A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica”.

Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.

É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021).

É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.

Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo  e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real.  Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, 2008a).

Ao final uma nota para novas aproximações a partir do diálogo que a instigante reflexão do professor Jesús Antonio de la Torre Rangel provoca, considerando que a sua obra atual, em ser uma continuidade adensadora de pressupostos epistemológicos para a crítica jurídica, é um completo catálogo de experiências confirmadoras do direito alternativo, do uso alternativo do Direito, do pluralismo jurídico e, ao fim e ao cabo, do direito insurgente, que surge do povo, pela emergência de sujeitos coletivos de direitos (SOUSA JUNIOR, 1990), que se inscrevem nos movimentos sociais, protagonistas de sua própria experiência de humanização e de emancipação, já que o humano é projeto, experiência na história (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019a): “El derecho insurgente, del que trata este libro, forma parte de um processo de liberación de la alienación u opresión; se opone a la legalidade de la injusticia. Em el texto hemos destacado, sobre todo, las luchas indígenas y campesinas, por la autonomia y la defensa del território, como uma práctica jurídico-política de pueblos índios y campesinos; práctica en que [se materializa] el derecho que nace del pueblo como derecho insurgente”.

Referências

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Entrevista. Observatório da Constituição e da Democracia, nº 24. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2008.

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CAPARELI, Felipe V.; CARVALHO NETTO, Menelick.  O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito”. Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras.

CHAUÍ, Marilena. Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito. In Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira. Ano I, nº 2. Brasília: Edições Nair, 1982

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ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019ª.

SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle. La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia.

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Eduardo Xavier Lemos, em  Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua, tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023 (cf. minha recensão na Coluna Lido para Você que publico semanalmente no Jornal Estado de Direito (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-desde-e-para-a-america-latina/), anota a passagem em que Marilena Chauí (Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito, Revista Direito & Avesso, Ano I, nº 2. Brasília: Edições Nair, 1982) chama à compreensão da gênese da própria justiça e do direito em sua apreensão dialética, vale dizer, ou como ela própria diz, a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora.

Na tese Eduardo assimila a dialeticidade inscrita nesse processo propriamente histórico, em diálogo com uma de suas referências teóricas presente na Banca:

Pero, además, se trata de un proceso no acabado, sino abierto en su evolución hacia la aparición de nuevos derechos y hacia la reinterpretación y transformación de los existentes. Ahora bien, tras dicho proceso evolutivo o de formación de los derechos humanos, encontramos también una dimensión -parafraseando a Ferrari- «exquisitamente sociojurídica»*, en cuanto se trata de un proceso prelegislativo y de un proceso espontáneo de reivindicación de «derechos» -no reconocidos todavía por el derecho oficial- frente a conflictos sociales o a necesidades humanas. (FARIÑAS DULCE, Maria Jose. 2003, p. 358 [p. 224].

Eduardo, com efeito, traz como singularidade em seu texto associa a percepção sociológico-filosófica de Fariñas-Dulce, com o enunciado de Ellacuría, uma indicação forte de Sanchez Rubio, autor que conserva profunda afinidade e parceria com de la Torre Rangel::

Se trata, por tanto, de un proceso negativo, crítico, y dialéctico, que busca no quedarse en la negación, sino que avanza hacia una afirmación nunca definitiva, porque mantiene en sí misma, como dinamismo real total más que como dinamismo lógico, el principio de superación. Siempre sigue el elemento de desajuste, injusticia y falsedad, aunque en forma cada vez menos negativa, al menos en los casos de avance real en lo ético personal y en lo político social. Y esta continuidad negativa, acompañada por el deseo general de cambiar y mejorar, mantiene activo el proceso. (ELLACURÍA in SENENT , 2012,. 366)[p. 204].

Tudo isso conduzindo, segundo Eduardo a uma visão complexa, dialética e plural dos direitos humanos – designados no sentido instituinte desde Lyra Filho, Joaquín Herrera Flores, David Sanchez Rubio, assim como em Antonio Escrivão Filho no debate que comigo propõe sobre o tema – que se colocam como síntese da possibilidade humanizadora, não só como expressão conceitual-filosófica, do humanismo dialético que Lyra Filho formula, em sua leitura hegeliano-marxista-sartreana, mas também no processo de luta por reconhecimento de subjetividades coletivas emancipadas tituláveis de direitos, da própria constitutividade material dos sujeitos inscritos nos movimentos que conduzem essas lutas e que realizam politicamente o humano (cf. Hegel, o humano não é um decorrência de sua origem biológica, mas uma experiência na história; não se nasce humano, torna-se humano).

Mas nem é necessário ir radicalmente a uma perspectiva de libertação para encontrar a insurgência. Basta ter a cognição disponível, aberta às emergências que a realidade gesta, ainda que a partir de leituras mais funcionais e  atentas à dinâmica da vida privada, como se pode constatar em autores desse campo, dotados de lúcida apreensão do real.

Veja-se, em destaque, Stefano Rodotà, grande civilista mas que teve na política o vislumbre progressista para inferir o acicate das transformações que marcam o social. Falecido em 2017, pouco antes, em 2013,  ganhou a quinta edição do  Prêmio De Sanctis de ensaios com O direito a ter direitos (Laterza).

Em registros sobre o sentido desses ensaios é dele a anotação que demarca a insurgência do jurídico na rua (no social), no que caracteriza a conquista do direito a ter direitos (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/).

Este é o novo mundo dos direitos. Um mundo não pacificado, mas atravessado ininterruptamente por conflitos e contradições, por negações muitas vezes muito mais fortes que reconhecimentos. Um mundo muitas vezes e muitas vezes doloroso, marcado pela opressão e pelo abandono. E assim “os direitos falam”, são o espelho e a medida da injustiça, e uma ferramenta para combatê-la. O registro minucioso das infrações não autoriza conclusões de liquidação. Só porque sabemos que existe um direito violado é que podemos denunciar a violação, revelar a hipocrisia de quem o proclama no papel e o nega na prática, fazer coincidir a negação com a opressão, agir para que as palavras correspondam aos factos.

Para ele, uma realidade que deriva do protagonismo de múltiplos sujeitos, que acabam por afirmar “uma inegável necessidade de direitos, e de direitos, manifesta-se por toda a parte, desafia todas as formas de repressão, enerva a própria política”.

É o movimento que ele caracteriza como condição para afirmar direito a ter direitos:

com sua ação cotidiana, diferentes sujeitos encenam uma ininterrupta declaração de direitos, que tira sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de homens e mulheres que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pela sua dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos diante de uma conexão inédita entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe em funcionamento sujeitos reais. Certamente não os “sujeitos históricos” da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora conectados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada

Mas que ainda que “todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, teve o seu início em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não sucumbem a alguma “tirania de valores”, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e direitos ao longo do tempo que vivemos”. Trata-se de “algo mais profundo, que tem suas raízes na condição humana”.

Em última análise, completa Rodotà: “Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos malditos da terra os reconhecem, os invocam, os desafiam? Por que eles são os protagonistas, os rabdomantes de um “direito achado na rua” “«diritto trovato per strada»?”.

É o que vem demonstrando Jesús Antonio de la Torre Rangel em sua trilogia do Direito Insurgente, que a presente edição representa um capítulo de interpelante atualização.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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