por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Recebi do Jornalista Miguel Carvalho (revista Visão, uma publicação portuguesa), a seguinte solicitação: “Escrevo-lhe na sequência das recentes denúncias sobre os alegados assédios sexuais do professor Boaventura Sousa Santos. Sei que é bastante próximo dele, mas creio que também conhece, pelo menos, uma das denunciantes, a deputada Bella Gonçalves (https://apublica.org/2023/04/deputada-brasileira-denuncia-assedio-sexual-de-boaventura-durante-doutorado/). Tendo em conta os relatos vindos a público, e as pessoas em questão, gostaria de saber o que pensa de tudo isto e também das questões de fundo suscitadas por estas acusações”.
Atendendo ao jornalista, com alguma relutância, dado o mal-estar que a questão me provoca, eu disse “Sim. Respondo às duas primeiras questões que me propôs”. E prossegui. Conheço o professor Boaventura de Sousa Santos há mais de 30 anos, inicialmente em razão de intercâmbio acadêmico e, logo, numa aproximação convertida em amizade. Como sei que não haverá espaço na revista para o inteiro teor de meu comentário e o que e como dele se fará o recorte para compor a matéria, lanço aqui todo o meu depoimento para expor a sua plena compreensão, até porque o assunto passou a se constituir uma vexata quaestio, com o alcance de um meteoro com potência de extinção.
Minha aproximação com o professor Boaventura de Sousa Santos implicou em trocas científicas, em escritos nos quais tivemos autoria concomitante ou co-autoral; também em encontros presenciais no Brasil, em várias ocasiões e diferentes espaços, notadamente em Brasília; na Europa, principalmente em Portugal e, de modo mais notável em Coimbra, no CES.
Conheço também a deputada Bella Gonçalves. Aliás, a conheci em Coimbra, no CES, em vários ambientes, no sítio acadêmico e também, no “Casarão”, espaço de celebração muito frequentado pelo professor Boaventura, seus colaboradores, professores e visitantes do CES e seus alunos, na vêz que lá estive, depois de um ciclo de conferências, debates e entrevistas agendadas em meu programa acadêmico de visita.
Devo dizer estar abalado, constrangido e triste com a divulgação, em artigo, da matéria que expôs possível conduta reprovável antiética do professor. Assim como li sua manifestação repudiando os fatos narrados não só no artigo, mas na pletora de depoimentos e de notícias logo difundidas por toda parte.
Quero dizer que tenho como credíveis e que devem ser levadas muito a sério, todas as manifestações. Não conheço as autoras do artigo. Mas conheço a deputada Bella. Depois de nossa apresentação em Coimbra, tenho acompanhado a sua atuação política e sigo os seus mandatos, primeiro como vereadora em Belo Horizonte e agora como deputada em Minas Gerais. Ignorava os fatos e quando a conheci em Coimbra ainda era aquela conjuntura de grande entusiasmo por estar no CES um dos mais avançados centros de pensamento crítico contra-hegemônico, que acolhia jovens pesquisadores e pesquisadoras do Sul Global e militantes em luta de libertação neocolonial e liderado pelo mais respeitado pensador desse campo, quadro teórico de todos ou quase todos projetos epistemológicos nesse campo.
No caso da Bella, dou inteiro crédito a tudo que ela diz, assim como acho que a atitude mais compatível com a ética emancipatória é ter como procedentes todos esses depoimentos, trabalhar pela responsabilização de toda e qualquer violação, e construir mecanismos que coíbam sua repetição. Nesse sentido, a Deputada Bella nos fornece um excelente exemplo, ao se dedicar a lutar para tornar obrigatória a construção de canais de denúncia de assédio e de suporte psicológico em instituições de ensino e de pesquisa. Essa resposta propositiva é a mais viva expressão de seu engajamento democrático: transformar a dor em uma ação para a blindagem de toda uma nova geração de mulheres, para que nenhuma violação siga impune, para que nenhuma mulher fique sem o atendimento adequado. Esse deve ser o compromisso de todos nós.
Se há tergiversações sobre os acontecidos, elas deverão ser constatadas em apuração independente, como está sendo noticiado. E isso, em minha análise, depende da construção de uma comissão diligente, que seja integrada por membros externos ao próprio CES e, preferencialmente, por pessoas especialistas em gênero e violência. Situações como esta demandam olhares externos à Instituição e especializados em situações de assédio, como forma de garantir o emergir de um resposta institucional forte e comprometida com os valores democráticos.
Essa apuração deverá, ainda, considerar que até a subjetividade de quem se sente ofendida ou ofendido traduza o que se é, o que parece ser, e o que devemos todos e todas ter como procedentes, condutas que se ressignificam em contextos complexos, políticos, sociais, acadêmicos, intergeracionais, intergêneros e de muitos modos hierárquicos, nos quais se situam comportamentos de assédio, moral e sexual, e modos de compartilhamento, apropriação e circulação de trabalhos acadêmicos.
Não se pode desconsiderar que se socialmente, numa condição patriarcal tenham sido toleradas e relevadas, já não o são e, numa quadra de afirmação dos direitos das mulheres de viverem livre de toda e qualquer forma de violência, não podemos admitir ou naturalizar antigas práticas abomináveis, tais como o olhar ofensivo e lascivo, o toque invasivo no corpo, uma mão insolente no braço, na perna, no cabelo, um abraço constrangedor, comportamentos esses verdadeiramente insuportáveis para todos nós e não exclusivamente para as mulheres. Nossa prática não pode ser diferente de nossa teoria: uma sociedade livre, justa e democrática somente se constrói quando, com nossas ações, reconhecermos as mulheres como sujeitos de direitos.
Outra questão suscitada nesse contexto é a precarização do trabalho acadêmico. Precisamos tratar essa questão com a seriedade que ela merece. Numa estrutura muito hierarquizada, se há precarização, pode ocorrer a apropriação pela titularidade das pesquisas, em detrimento da contribuição coletiva, remunerada ou não, se ela permanece anônima. Estruturas como o CES com grande força arrecadatória podem incidir no risco real de verticalizar os coletivos e os esforços individuais de elaboração de relatórios e de pesquisas e subalternizar os agentes do processo em nome dos protocolos de entrega de “produtos”.
Em suma, são questões difíceis. O que acho de tudo isso? Responsabilidades não podem deixar de ser conferidas. Não é aceitável desqualificar ou criminalizar quem de modo doído, duplamente sofrido se apresentou para revelar essa condição humilhante e redutora da dignidade (o ter sido ofendido e o ter que se questionar sobre silêncios constrangidos, mas que se gritados, pudessem ter estancado práticas nefastas e evitado a prorrogação de ofensas a outros continuadamente).
Acho que temos que caminhar para outras formas de nos posicionarmos diante dessas situações-limite. Penso que é necessário abrir alternativas de conscientização e extrair dessas ocorrências efeito educador para todos nós – a exemplo do que na África do Sul permitiu no pós-apartheid abrir ensejo para o arrependimento, o pedido de desculpas, o perdão pedagógico, e outras formas de reparação. Responsabilizar as ações, reparar as violações e não permitir que elas se repitam.
Penso, além disso, que as instituições avançariam em seus protocolos se criassem estruturas de acolhimento e de monitoramento para prevenir, acolher e corrigir situações com a qual nos deparamos. Na matéria que Visão me encaminhou, consta que Bella Gonçalves apresentou Projeto de Lei para tornar obrigatória a construção de canais de suporte psicológico e denúncias de assédio em universidades e institutos de pesquisa de Minas Gerais. Ela pretende levar a discussão ao Congresso Nacional, via bancada do PSOL. ‘A Capes e o CNPQ precisam ter esses canais. É inadmissível a interrupção de programas de pesquisa por situações de assédio. Não é apenas sobre o caso de Boaventura. É sobre vários professores que mantêm a mesma conduta’”. Claro que não se está falando apenas de assédio sexual mas, também, do moral, muitas vezes transindividual porque entranhado na institucionalidade, ou seja assédio institucional.
Mas penso igualmente que há outro modo de abrir-se para possibilidades restaurativas. Mesmo respondendo o quanto a isso indique desvios apurados e que venha a ser necessário reparar não apenas de forma simbólica, outro caminho, condiz com o que Paulo Freire chama de pedagogia libertadora que aproxima a prática de seu discurso. Penso, por outro lado, na prática do ubuntu. Uma sociedade sustentada pelos pilares do respeito e da solidariedade faz parte da essência de ubuntu, filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras. Com o ubuntu temos consciência de que somos afetados quando nós e nossos semelhantes somos diminuídos, oprimidos. Nesse sentido, cabe pensar uma prática – ainda que se sinta injustiçado, inconsciente de que seu lugar e posição tenham podido levar a tais consequências – para se dispor, com toda a exposição que o atingirá, a uma postura verdadeiramente educadora.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).