Vaticano: Conferência sobre Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo

por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF 

A Pontifícia Academia de Ciências Sociais promoveu, no Vaticano, nos últimos dias 30 e 31 de março, uma Conferência sobre o Neocolonialismo, da qual participaram especialistas provenientes de diversas partes do mundo, sobretudo juízes e juízas. Em uma Mensagem, enviada aos participantes, o Papa Francisco condena a exploração e a marginalização dos povos, por motivos econômicos ou ideológicos, e pede desculpas pelos cristãos que, em todos os tempos, contribuíram para a dominação na América e na África. Coincidindo com a súbita enfermidade do Papa, que chegou a ser hospitalizado, a Cúpula foi dirigida pelo Cardeal Peter K. Turkson, prefeito-emérito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano.

O Papa Francisco vem enfatizando a importância de juízes e juízas, para um mister que contribua para superar desigualdade, conter perdas de direitos e assegurar a dignidade da existência. Em http://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/, anotei como  de modo muito direto, porque dirigindo-se a juízes e juízas em encontro remoto com juristas das Américas e da África –  Primeiro Encontro virtual dos Comitês para os Direitos Sociais da África e da América – ele exortou: “uma sentença justa é uma poesia que repara, redime e nutre” (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-11/papa-francisco-juizes-africa-america-sentencas.html).  “Nenhuma sentença pode ser justa, – ele ainda afirmou – se gera mais desigualdade, mais perda de direitos, indignidade ou violência”.

No encontro de agora, o Papa aponta para a sutileza atual de um neocolonialismo constituído como um crime e um obstáculo à paz (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-04/papa-francisco-neocolonialismo-mensagem-ciencias-sociais.html). Na reflexão do Pontífice, embora no século XXI não se possa mais falar, tecnicamente, de países “colonizados”, do ponto de vista geográfico, nos aspectos econômicos e ideológicos, o colonialismo mudou em suas formas, métodos e justificativas. O que também preocupa o Papa Francisco é o colonialismo ideológico, que tende a uniformizar tudo, sufocando a ligação natural dos povos aos seus valores, desenraizando tradições, história e vínculos religiosos. Esta é uma mentalidade que não tolera diferenças e se concentra apenas no presente e nos direitos individuais, descuidando dos deveres com os mais fracos e frágeis.

Na síntese preparada pelo Dicastério há, na Mensagem de Francisco, a preocupação de que os interesses da ganância promovam a substituição da verdade por justificativas de dominação: “Eis as características do colonialismo contemporâneo. Como se, sublinha o Pontífice, diversos séculos de experiências históricas, sangrentas e desumanas, não tivessem servido para amadurecer uma ideia global de libertação, autodeterminação e solidariedade entre as nações e os seres humanos. Agora, tudo é mais sutil e corre-se o risco de que as verdadeiras causas, que levaram ao colonialismo, sejam substituídas por leituras históricas, que justificam a dominação com presumíveis lacunas “naturais” dos colonizados”.

O evento transcorreu numa atmosfera que traz esclarecimento sobre outros temas próprios do colonialismo. Há poucos dias se noticiou o que se tem chamado de “doutrina da descoberta” (https://www.ihu.unisinos.br/627642-a-doutrina-da-descoberta-repudiada-por-roma), que se prestou por séculos, apoiada pelo papado, “para justificar as empreitadas colonialistas dos soberanos católicos europeus –mas que foi repudiada pelo magistério da Igreja, e há muito tempo não representa mais o seu pensamento. Isso é afirmado em um documento de dois órgãos do Vaticano (os dicastérios de Cultura e do Desenvolvimento Humano Integral)”.

Voltando à Cúpula sobre Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo: Uma perspectiva de justiça social e do bem comum, examinada na perspectiva dos Direitos Sociais e da Doutrina Franciscana, conforme a sua designação completa, o seu foco recaiu nos contextos africano e pan-americano com a participação de suas respectivas Comissões de Juízes e Juízas. Para o presidente do Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, Roberto Gallardo,  em depoimento ao Vatican News (Los nuevos colonialismos: oligarquías nativas o golpes de estado https://www.vaticannews.va/es/vaticano/news/2023-03/cumbre-jueces-juezas-doctrina-franciscana-colonialismo.html?fbclid=IwAR2-2pBT6OVxqcH1T9C6CDHGuJMdjmqppDhvhBtkzhjmZjL4y6a08Qr2Itg), “os novos colonialismos são as estratégias de dominação sob a aparente independência dos Estados, mas através do trabalho de “oligarquias nativas” ou pequenos grupos poderosos dentro dos Estados, que trabalharam em coordenação com as potências estrangeiras, e práticas de abolição das instituições locais , por meio de golpes de Estado. São todas formas de continuar a dominar as estruturas econômicas dos países periféricos”.

Pude acompanhar pela transmissão dos painéis, importantes participações, entre elas, de convidados pelo Papa Francisco, pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano e pelo Comitê Pan-Americano de Juízes para os Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, de minha estimada amiga Raquel Yrigoyen Fajardo, diretora do IIDS – Instituto Internacional Derecho y Sociedad, de Lima (Peru), com o qual e com ela temos importante intercâmbio de cooperação a partir da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB. Raquel apresentou elogiada exposição sobre “Pluralidade jurídica igualitária e descolonização da justiça, desde a perspectiva dos direitos dos povos indígenas“, tema que tem sido a base de nosso intercâmbio. Segundo ela própria, discorrer sobre esse tema permitiu“trazer reflexões que vêm dos povos originários do Peru e de outros lugares, e da equipe do Instituto Internacional de Direito e Sociedade-IIDS”.

Além de Raquel, outras expressões intelectuais latino-americanas e vou incluir por óbvia afinidade, a participação de Boaventura de Sousa Santos, marcaram posição com seu pensamento crítico decolonial: o Professor Enrique Dussel, Ramón Grosfoguel, Karina Ochoa, entre outros, incluindo magistrados das Américas e da África. Para Raquel“resta o desafio de uma agenda de justiça descolonizadora, para efetivar os direitos dos povos. Esse é o grande desafio!”. Aqui o link do evento, onde se pode encontrar as apresentações: https://www.youtube.com/watch?v=DEBucsSCajc.

Entre os magistrados brasileiros constatei a presença protagonista do Ministro Lélio Bentes, presidente do Tribunal Superior do Trabalho. E para a minha surpresa, sentada entre os grandes – Boaventura de Sousa Santos e Eugenio Zaffaroni, – a minha ex-aluna Ananda Tostes Isoni, juíza do TRT 10ª região, integrante do Capítulo Brasileiro do Comitê Pan-Americano de Juízes e Juízas para os direitos sociais e Doutrina Franciscana – Copaju Brasil, ela própria, falando depois deles, com uma belíssima exposição que a coloca, em sua perspectiva franciscana, no chamado então feito pelo Papa Francisco para a atuação judicante: “Vocês juízes, em cada decisão, em cada sentença, estão diante da feliz oportunidade de fazer poesia: uma poesia que cure as feridas dos pobres, que integre o planeta, que proteja a Mãe Terra e todos os seus descendentes. Uma poesia que repara, redime e nutre. Não renunciem a esta oportunidade. Assumam a graça a que têm direito, com determinação e coragem. Estejam ciente de que tudo o que contribuírem com sua retidão e compromisso é muito importante”.

Mandei uma mensagem ao caríssimo Boaventura de Sousa Santos pedindo-lhe que se demore em alguma reflexão que avalie a experiência, e que tenha eventualmente calado, a partir da brilhante exposição que fez, na compreensão de queo período atualmente vivido não é propriamente de descolonização mas de recolonização, tanto mais que a voz dos que a sofrem não é em geral ouvida no debate. Antes de tudo, ele lembrou, que enquanto os que tem lugar no debate são ainda agentes do processo problemático que os mobiliza, como poderão ser promotores, ao mesmo tempo da formulação de soluções para ele? Não, ele diz em outro lugar, enquanto não se abrir a história, sobretudo a história do presente, decolonizando-a, para tamponar a ferida colonial e lutar para a sua cura (Descolonizar: abrindo a história do presente. Boaventura de Sousa Santos. Belo Horizonte: Autêntica Editora; São Paulo: Boitempo, 2022; cf. http://estadodedireito.com.br/descolonizar-abrindo-a-historia-do-presente-boaventura-de-sousa-santos/).

Portanto, trata-se de pensar o Direito e a Justiça concebidos como liberdade, emancipação e não restrição, vivo, instituinte, emergindo do social e aspirando a formas e modos legítimos de institucionalização, para se constituir como normatividade democrática, afluente, ativada por uma cidadania participativa.

Acode-me nesse passo, a correspondência que se pode estabelecer entre tais expectativas sociais interpelantes, para a determinação do jurídico, enquanto direito achado na rua, direito como emancipação,decolonial, tal como transparece do lema da Campanha da Fraternidade Ecumênica, de 2016, inscrito em Amós (5.24): “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”.

E que guarda pertinência com aquela filosofia do agir humano, de que fala o padre Henrique Claúdio de Lima Vaz, SJ, no texto com que nos brindou, a nós que organizamos na CNBB, o Seminário Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário (cf. VAZ, Pe. Henrique C. de Lima. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano. In PINHEIRO, Pe. José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1996). Confira ao final do texto, p. 40: “No momento em que os temas ‘ética e política’ ou o ‘direito de todos e a justiça de todos’ tornam-se temas de sensação nos meios de comunicação de massa, e em que o problema do exercício eficaz da administração da justiça deixa o recinto austero dos tribunais para tornar-se problema social das ruas e dos campos, convém voltar nossa atenção e nossa reflexão para a tarefa primordial da educação ética que é a verdadeira educação para a liberdade. O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização. Como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático do Direito”.

Uma conquista, disse Boaventura na Conferência, que implica em redistribuir, revertendo expectativas, o medo acumulado pelos colonizados subjugados às exclusões do capitalismo, do racismo, do patriarcado, empurrados para a esfera de sub-humanidade; para que possam recuperar dos colonizadores, o quantuum deesperança de uma vida expandida, super-humana, todavia vampirizada pela iniquidade da acumulação egoísta, indiferente, reificada.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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