Pode-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima?

A expressão mais dramática do que se constituiu a gestão neoliberal necropolítica no Brasil nos últimos quatro anos é a mortandade do povo Yanomami, por meio de muitas formas de ações violentas, entre elas, a subnutrição trazida com a fome causada pela omissão governamental na execução de políticas de proteção e de facilitação da invasão e afetação de seus territórios de existência pela exploração desenfreada, sobretudo de garimpeiros.

Entre matérias e inciativas de enfrentamento a esse quadro, ponho em relevo, por sua autenticidade, a manifestação da liderança Yanomami mundialmente conhecida – Davi Kopenawa – conforme entrevista que concedeu recentemente (https://www.ihu.unisinos.br/625951-parem-de-mentir-lider-yanomami-dario-kopenawa-critica-militares-e-rebate-bolsonaristas).

Tanto Davi quanto seu filho Dário Kopenawa, afirmam que seu povo “hoje enfrenta um garimpo mais destrutivo e protegido por políticos locais e nacionais”, por isso que, para eles, são responsáveis diretos dessa ação de eliminação de toda uma etnia, “o governo Bolsonaro pelo genocídio de pelo menos 570 crianças indígenas”, com um forte recado “a ex-autoridadesbolsonaristas que minimizam a crise humanitária na tentativa de se eximirem da responsabilidade: ‘parem de mentir!’”.

Daí a questão posta neste artigo: pode-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima?

Ora, o Ministro Flávio Dino, da Justiça e da Segurança Pública, determinou a abertura de inquérito para investigar os fatos e estabelecer tipificação nesse sentido. Ou seja, no despacho do Ministro já há uma orientação motivadora no sentido da caracterização desse tipo penal.

Penso que o Ministro tem razão e não foi outra a percepção que tivemos, eu, o presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília Eduardo Lemos, e nosso colega membro da CJP Felício Pontes Junior, também procurador da república, com ofício na Procuradoria Geral Regional em Brasília (portanto, atuando junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que é o Tribunal de recursos das questões amazônicas), na primeira conversa de justiça e paz do ano, exatamente sobre o tema: Conversas de Justiça e Paz: Contribuições para Segurar o Céu Yanomami(para conhecer o inteiro debate que tratou de temas correlatos consulte-se https://www.youtube.com/watch?v=A0MHN-LvtNY).

Concordamos, especialmente com os argumentos oferecidos pelo Procurador Felício, que os fatos notórios revelados em tantos depoimentos e notícias, de que a situação atual guarda correspondência e é ainda mais grave, com o já reconhecido “genocídio dos Yanomamis”, a partir do configurado “massacre de Haximu”, único caso de julgamento de genocídio pelo judiciário brasileiro, decidido no Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, manteve a condenação, pela Justiça Federal de Boa Vista, em Roraima, de quatro dos 22 garimpeiros denunciados por crime de genocídio [extermínio de grupo étnico] contra o povo Yanomami, em Haximu (RR). A decisão se deu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 351487 ajuizado pelos advogados dos garimpeiros contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que também havia mantido a condenação.

Massacre de Haximu, como o crime ficou conhecido, ocorreu em agosto de 1993, quando 12 indígenas Yanomami, entre eles cinco crianças, três moças e uma idosa cega que se refugiaram na floresta, foram assassinados por garimpeiros e pistoleiros. O massacre teve repercussão internacional e foi noticiado como genocídio étnico.

Na Conversa da CJP Felício Pontes recuperou o precedente, em detalhe. Mas ele está bem documentado em vários sítios que podem ser consultados. Para melhor descrevê-lo, valho-me do registro que encontrei em (https://www.correioforense.com.br/poder-publico/plenario-do-stf-decide-que-justica-e-competente-para-julgar-massacre-de-haximu/):

O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio de recurso extraordinário em que a defesa dos garimpeiros contesta a decisão da 5ª Turma do STJ. Alega violação do inciso XXXVIII, alínea “d”, do artigo 5º, da Constituição. Sustenta que “se trata de conflito sobre interpretação e aplicação de norma escrita na Constituição Federal, qual o da soberania do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida e dos que se lhe são conexos”.

O ministro Cezar Peluso, relator do processo no STF, argumentou que, no Brasil, a Lei 2.889/56 define genocídio como “a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso (…) como [entre outros atos] matar membros do grupo”. O ministro acrescentou que “a discussão aqui é a delimitação conceitual do bem jurídico protegido pelo crime de genocídio, como pressuposto metodológico da resposta à questão última de saber se incide, ou não, o disposto no artigo 5º, inciso XXXVIII, letra “d”, da Constituição da República, que estatui a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.

Em seu voto, “antológico” segundo o ministro Sepúlveda Pertence, o ministro-relator Cezar Peluso agregou extensa e pertinente doutrina a respeito da conceituação do crime de genocídio. Entre elas, o entendimento de Carlos Eduardo Adriano Japiassú argumentando que “o entendimento majoritário é aquele que admite que se trata da defesa de um bem jurídico coletivo, aliás, um bem jurídico supra-individual, cujo titular não é a pessoa física, mas o grupo, entendido como uma coletividade”.

O Ministro relator ressaltou também que, mesmo praticado por mais de um indivíduo, o crime contra os Yanomami é caracterizado como unitário, conforme define Alicia Gil Gil, professora espanhola: “a realização de várias mortes de membros do grupo com a intenção de destruir esse grupo constituirá um único delito de genocídio na modalidade de homicídio, e o mesmo sucederá com as demais modalidades”, como aconteceu em Haximu, onde houve homicídio e lesões corporais.

Conforme um outro sítio (https://agnfilho.jusbrasil.com.br/artigos/188942679/massacre-haximu-o-julgamento-do-crime-de-genocidio-no-brasil), o genocídio passou a fazer parte, de uma forma mais incisiva, das preocupações dos Estados. Não apenas devido ao elevado número de ocorrências, mas especialmente pelo fato do reconhecimento deste tipo de conduta como foco de repercussão negativa, por isso que desde os anos 1940 a ONU cuidou de defini-lo.

Mas, principalmente em razão das implicações desta ação que percebe-se a dificuldade em caracterizar ou, até mesmo, de utilizar a denominação “genocídio” para julgar os casos que atentam contra a vida de grupos culturalmente diferenciados espalhados mundo afora, como é o caso dos povos indígenas, que sofrem com abusos e negligências por parte do poder público e econômico.

Voltando à entrevista de Davi Kopenawa, anoto que ele questiona as 570 mortes de crianças de seu povo“por causa de invasores [que receberam] apoio logístico do governo passado, eu não estaria falando com vocês [da imprensa]. Eu não estaria falando na rede, mostrando minha cara. Eu ficaria na minha aldeia, cuidando dos meus parentes, trabalhando. Ia colocar as roças, ajudar meu povo sem problema” avisando que vão“continuar criticando o governo passado, porque eles têm responsabilidade. Eles têm que responder na Justiça pelo que eles não cumpriram, não respeitaram a legislação brasileira. Não pode falar mentiras nas redes sociais e nos jornais. Eles têm que responder na Justiça pelo erro, pela gravidade e pela negligência.Eles mataram 600 [mil brasileiros na pandemia]. Isso significa massacre, que é o genocídio. Não cuidaram da população brasileira. Eu quero que a justiça seja bem dura. A Justiça tem que cumprir, e essas pessoas têm que ser presas”.

Sim, pode-se e deve-se falar de crime de genocídio no quadro de mortandade atual Yanomami em Roraima. Uma ação concebida, projetada e executada para produzir a mais letal forma de aculturação que se caracteriza pela intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso (…) como [entre outros atos] matar membros do grupo”. Uma operação forrada pela narrativa empreendedora e subsidiada por agentes públicos, para produzir também um etnocídio justificado por um outro conceito de desenvolvimento, que produziu em quatro anos uma devastação que um milênio de modo de existência, de bem viver e de projetar, como diz Krenak, um futuro ancestral, para uma humanidade enfim renaturalizada, que cabe preservar.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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