Direito, literatura & sertão: perspectivas decoloniais a partir do romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Raique Lucas de Jesus Correia. Direito, literatura & sertão: perspectivas decoloniais a partir do romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna. João Pessoa, PB: Editora Porta, 2022, 343 p.

            Eu recebi esse livro, por cortesia do Autor, imediatamente após ter participado de banca de qualificação de sua dissertação de mestrado – Cidadania e Territorialidade Periférica: a Luta pelo Direito à Cidade no Bairro do Calabar em Salvador/BA, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU) da Universidade Salvador (UNIFACS). Sobre esse trabalho elaborei aqui neste espaço, um Lido para Você.

            Na Dissertação, pela mediação do urbanismo e do direito à cidade, Raique traz O Direito Achado na Rua, como contribuição crítica à própria teoria do direito, como fundamento teórico crítico para sustentar juridicamente o seu trabalho. E logo apontei caminhos para que, no desenvolvimento de seus estudos, mergulhasse na fortuna crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, de modo a vincular sua abordagem a esse percurso, como contribuição à teoria crítica que nele se representa:

Pena que Raique não tenha participado da chamada de artigos para a Revista de Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito, em sua edição de maio-agosto de 2022, volume 6, número 2, inteiramente dedicada, em estudos de homenagem, a O Direito Achado na Rua, Contribuições para a Teoria Crítica do Direito (cf. em minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito a minha recensão a esse trabalho: http://estadodedireito.com.br/30425-2/). Ali, entre os instigantes trabalhos publicados, o dos professores baianos Sara da Nova Quadro Côrtes e Cloves dos Santos Araújo, traça a mesma linha de interseção entre a aproximação dialética trazida por Roberto Lyra Filho e o tema seminal da espacialidade como categoria de transubjetividade proposto por Milton Santos. Em Sara, sobretudo, é ainda notável o arranque de sua formação atenta às mobilizações estratégicas de uma cidadania ativa (ver sua Dissertação de Mestrado Controle Social do Estado como Estratégia de Emancipação e Qualificação da Democracia, defendida na UnB em 2003 sob minha orientação), nela muito presente a concepção de cidadania de um notável intelectual baiano Elenaldo Celso Teixeira (cf. Sociedade Civil e Participação Cidadã no Poder Local, tese de doutorado defendida na USP em 1998 sob orientação de Lúcio Kowarick) e, por proximidade com a construção de Raique o texto Movimentos Sociais Urbanos em Salvador: um Mapeamento in Ana Amaria de Carvalho Luz (org) Quem Faz Salvador. Salvador: UFBA, 2002. Vale visitar esses trabalhos e, em especial – Dialética Social no Rastro do Pensamento de Roberto Lyra Filho e Milton Santos: Aportes Teóricos no Campo do Direito e Geografia – para a finalização da Dissertação, tal como eu mesmo o fiz para preparar o meu prefácio ao livro de Willy da Cruz Moura, Na Calada da Noite. Processos culturais e o Direito achado na noite de Brasília. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022, também derivado de Dissertação de Mestrado defendida na UnB (http://estadodedireito.com.br/na-calada-da-noite-processos-culturais-e-o-direito-achado-na-noite-de-brasilia/).

            É que eu pensava ser uma novidade, salvo pelo fato de que a professora Marta Gama fosse uma referência em sua formação, sendo essa a razão para que os seus enunciados tivessem sido trazidos à Dissertação. Aliás, de modo muito qualificado conforme concluo em minha arguição.

            Eis que, em seguida à realização da Banca, Raique me envia uma mensagem: “Caro prof. José Geraldo, saiba que honra maior foi a minha em tê-lo nesse momento tal especial e significativo da minha trajetória acadêmica. Agradeço mais uma vez pelas contribuições e irei dedicar todos os esforços para acatá-las e incorporá-las ao meu trabalho. Espero com esta pesquisa poder agregar novos conhecimentos e perspectivas ao Direito Achado na Rua que, como eu disse, é um movimento que me influenciou grandemente durante a graduação, e agora, mais do que nunca, cristaliza todo uma caminhada em direção a esse ideal; o ideal de um direito como modelo avançado de uma legítima organização social da liberdade”.

            E, acostada à mensagem, um enlace para acesso à edição digital de Direito, Literatura & Sertão. Perspectivas Decoloniais a Partir do Romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna, com uma nota ofertória:

A propósito, no início deste ano eu lancei o meu TCC em formato de livro: “Direito, Literatura & Sertão: Perspectivas Decolonais a partir do Romance d’A Pedra do Reino de Ariano Suassuna”, onde também entronco a discussão do Direito Achado na Rua, a partir das categorias “Direito Achado no Sertão” e “Sertanismo Jurídico”. Acredito que esse trabalho possa lhe interessar. Segue o PDF do livro

            Uma visita à página da Editora, responsável pelo lançamento dessa curiosa obra, leva a localizar o seu intuito, em corte literário: “Livro-enigmático sobre Direito e Literatura, no qual aparece a misteriosa Rainha do Meio-Dia. A guerra contra a Besta-Loura-Calibã! Notícia d’A Pedra do Reino e de seu Imperador, Dom Pedro Dinis Quaderna! Primeiras indicações sobre o Direito Castanho e o Sertanismo Jurídico! Como a nossa Nação foi invadida por cruéis e desconhecidos estrangeiros, que massacraram o nosso Povo e dominaram a nossa Pátria! Viagens e expedições à procura da Ilha Desconhecida! Visagens e andanças pelo Sertão! Plágios e recriações poéticas! Profecias, delírios, ilusões e mentiras! Enigma, poesia, desejo, paixão, ironia, desordem e crime!”.

            O enquadramento literário da obra, favorecido pelas ilustrações ao estilo nordestino de xilogravuras (seguindo o fio artístico do estudo voltado para o Movimento Armorial nos termos definidos por Ariano Suassuna) e dos ensaios tipográficos da edição, merecem as confirmações sobre o seu valor em João Suassuna, neto de Ariano e Suelma de Souza Moraes. Anoto o comentário do caro amigo, jurista e professor João Paulo Allain Teixeira, que vê no trabalho de Raique, o

Refletir, contextualizar e de alguma forma apontar alternativas ao projeto racional/colonial no direito é tarefa que cabe à pesquisa interdisciplinar a partir da articulação de múltiplos saberes. O trabalho de Raique Lucas de Jesus Correia contribui decisivamente para o enfrentamento desta tarefa. Sua contribuição, parte da monumental obra de Ariano Suassuna culminando com o esboço de uma proposta de epistemologia castanha para o direito. O trabalho chama a atenção para os processos de subalternização e invisibilização do olhar sertanejo e do seu potencial de contribuição para pensar o direito em chave decolonial. Trata-se aqui de evidenciar os diferentes níveis de colonialidade que ocultam não apenas o sentido de latinidade ou mesmo de brasilidade, mas, sobretudo, a dimensão sertaneja, quase sempre insuficientemente explorada nos debates decolonias. O esforço de Raique aponta assim para novas fronteiras da pesquisa em direito e sociedade no Brasil.

            O trabalho de Raíque ao que me consta, procede de uma monografia de final de curso de direito – um espanto vertido nas 343 páginas que conformam o livro, sem contar o que está posto nas capas – e que seve de enredo para ele tecer as duas vertentes de sua aspiração intelectual: a literatura e o direito. Num processo criativo atento ao rigor dos cânones desses dois pontos, algo que toma como uma advertência, desde logo para si próprio e em derradeira instância para seu leitor: “Principalmente por causa da presença, nela, de Dom Pedro Dinis Quaderna e da Rainha do Meio-Dia, esta Narrativa-Enigmática só deve ser lida, folheada ou vista ‘por adultos de sólida formação jurídica, religiosa, moral, literária, poética e filosófica’”. Certo que o resultado final, publicado, se apresenta mais robusto, pelo adensamento trazido pelo Autor desde a defesa da monografia e o momento de sua divulgação na forma de livro. Tributo a Ariano Suassuna, o livro de Raique o divide do mesmo modo como Suassuna o faz em A Pedra do Reino: em “grupos temáticos (Prelúdio, Chamada, Galope, Tocata e Fuga), cada qual preenchido não por capítulos, mas por folhetos”, na modelagem da literatura de cordel.

            No prefácio, a professora Ezilda Melo, que também participou da banca, comenta esse cuidado autoral:

Trabalho monográfico tão bem escrito e com tanta robustez teórica, que tem ares de tese. Era perfeito desde aquela primeira versão e pronto para publicação, conforme dissemos em unívoco. Quis o jovem autor aprofundar ainda mais a pesquisa, ao passar vários meses seguintes debruçado sobre leituras e reescrita, resultando no trabalho que agora se apresenta aos leitores. Um verdadeiro presente para a comunidade jurídica, para os estudos sobre Ariano Suassuna e sobre o sertão

            Um tremendo desafio, No que diz a seu próprio cabedal, muito bem sucedido. Sem surpresa, ao menos para mim que já tomara conhecimento do estofo autoral de Raique ao ter ensejo de examinar sua dissertação de mestrado: Cidadania e Territorialidade Periférica: a Luta pelo Direito à Cidade no Bairro do Calabar em Salvador/BA. Ver, a propósito, minha resenha sobre esse trabalho em edição da minha coluna Lido para Você.

            Parece que eu adivinhava, tal como acontecera com Graciliano Ramos, lido por Abgar Renault, o poeta, mas na condição de um exame como ministro de contas, do relatório do prefeito de Palmeira dos Índios, intuindo que a peça burocrática aninhava um grande escritor. Sobre o trabalho acadêmico de Raique fiz observação parecida: “A construção narrativa do Autor é sofisticada. Ela é conduzida num processo que articula diferentes linguagens e modos de ler o mundo, não só a ciência mas também a literatura. Em epígrafes, em paráfrases, em metáforas, o discurso explicativo-causal de Raique vem embalado retoricamente, num imaginário nutrido por seu diálogo com literatos. Fui anotando as vozes silentes de seu discurso: Dante Alighiere, Ariano Suassuna, Patativa do Assaré, Castro Alves, Carolina Maria de Jesus, Euclides da Cunha”.

            Ademais, eu devia ter desconfiado desse Janus. Foi minha querida amiga e ex-aluna Marta Gama quem me falou de Raique, dizendo que havia me indicado para participar de sua banca de mestrado.

            Eu fui membro da banca examinadora da tese de doutorado de Marta Gama, convertida em livro: Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019. O trabalho de Marta Gama, Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, editado pela EdUECE, agora em período de lançamentos programados pela Autora num cronograma expandido, parte de uma pergunta visceral: O que pode a arte na formação do jurista? Esta pergunta que ela responde neste livro serviu de guião na sua trajetória de pesquisadora e foi diligentemente trabalhada em sua tese de doutorado “PENSAR É SEGUIR A LINHA DE FUGA DO VOO DA BRUXA” Pesquisa sociopoética com estudantes de Direito sobre a arte na formação do jurista, defendida na Faculdade de Direito da UnB, em 2013, de onde a Autora extrai a matéria da obra.

            Marta se mantem íntegra e fiel neste percurso, na busca de novos caminhos para mapear esse entrelugar entre Direito e Arte. Com Luis Alberto Warat, a voz silente (expressão muito usada por Warat) do discurso de Marta, para ela tudo converge para a possibilidade da instituição do novo. Mais ainda, no campo da pedagogia e do ensino do Direito, seu espaço de movimento, porque é do que se trata, ela afirma, é propor uma revolução da forma de ensino do Direito, através da arte, abrir caminho para uma macro revolução, já que a revolução poética, dos sentidos, de libertação dos desejos, aponta para a própria revolução do homem e do mundo. Da palavra libertada, da imaginação descolonizada, pela magia dos sonhos, pelo ato poético de viver, emerge irresistivelmente uma nova forma de existir, novas maneiras de significar a vida, as relações humanas, uma nova significação imaginária, que rompendo, enfim, com os grilhões de uma racionalidade totalizante (cientificidade moderna, positiva, causal) seja capaz de construir a autonomia individual e coletiva (GAMA, Marta. Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: Novos Caminhos. Brasília: Faculdade de Direito da UnB. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 8, outubro de 2006, p. 06-07).

            Sobre tudo isso conferir minha coluna Lido para Você http://estadodedireito.com.br/entrelugares-de-direito-e-arte-experiencia-artistica-e-criacao-na-formacao-do-jurista/.

            É de Marta e de sua apresentação do livro de Raique, fruto da monografia que ela orientou ao final da graduação, que eu tiro a passagem que melhor e com mais autenticidade expõe o argumento do Autor, diante do desafio que se impôs:

É esse o desafio que se impõe o Autor na presente obra: pensar o decolonial aplicado ao Direito, desde as v(e)ias abertas pelo “Romance d’A Pedra do Reino”, tendo como centralidade os influxos proporcionados pelos modos de ser e de viver, pela cultura, pelas vivências e pela luta do povo sertanejo, marcada pela miséria e pela fome, mas também pela garra e pelo sonho.

Nesse itinerário de inquietações e total ausência de certezas, são delineados diversos deslocamentos, territórios que tão logo emprenhados são desfeitos, dando lugar a outras paisagens, sintetizados nos diversos movimentos presentes no sumário. Assim é que, no primeiro movimento “Prelúdio – Direito & Literatura” o Autor nos convida a refletir sobre as possiblidades guardadas pela aproximação entre o Direito e a Literatura, promovendo um rico diálogo entre os diversos autores e autoras que, contemporaneamente, tem enfrentado o desafio de conjecturar a esse respeito, para, então, afirmar waratianamente que a “a aproximação entre Direito e Literatura, não só é possível, como também é fundamental, uma vez que proporciona a formação de ‘territórios ambíguos’, pelos quais se é possível escapar as deformações regradas da semântica cientificista e fundar ‘um saber sobre o Direito que reconcilie o homem com suas paixões, tenha respostas de acordo com o mundo e transforme a estagnação de suas verdades em desejos vivos’ (WARAT, 2004, p. 83)”.

Em seguida, apresenta as principais referências teóricas para conformação do campo “Direito e Literatura” no âmbito internacional, bem como o papel inaugural de Luis Alberto Warat na constituição desse campo de conhecimento no Brasil.

Outrossim, nos brinda com uma forte e segura reflexão, desde os textos waratianos, nos desafiando a vivenciar a Literatura em sua potência disruptora do instituído e produtora do novo. Raique nos adverte acerca dos perigos de uma crença ilimitada no método, ou de quanto a crença no método, como um caminho necessário e seguro a seguir porque carregada da epistemologia moderna, pode esvaziar o potencial disjuntor dos estudos literários para o Direito. Para ele: “pensar o direito é antes de tudo uma atividade filosófica e, como tal, é necessário fugir dos lugares comuns, do autoritarismo epistemológico, do solipsismo cientificista, para então subverter a ordem dos fatores e instituir o novo”.

No movimento que se segue “Chamada – Encantações Sertanejas”, Raique nos conduz pelo chão pedregoso do Sertão, em seus diversos e inapreensíveis enquadramentos, — porque “o Sertão se afasta tanto mais nos aproximamos dele, é como uma miragem, só se apresenta quando estamos distantes e quando lá chegamos, já não está mais” —, até o encontro com Sertão de Suassuna. Nesse sentido, o Ser-tão dá a vez a biografia de Ariano Suassuna, — personagem e autor das veredas incrustradas do Sertão escabroso, porque nele se constitui para recriá-lo — iluminando com a sua história de dor e genialidade esse universo. A trajetória do Movimento Armorial, manifesto-síntese da vida e obra de Suassuna, criado na década de 1970, cujo o qual pretendia inventar uma arte erudita brasileira calcada nas raízes populares da cultura nordestina, encerra esse movimento intermediário.

“Galope – A Pedra do Reino” é o movimento que resgata o contexto histórico e político onde se inscreve o “Romance d’A Pedra do Reino”, indicando como a trama “inventada” por Suassuna se relaciona com episódios importantes da história do Brasil. O enredo, que parte das histórias do Romanceiro Popular Nordestino, se desenrola em torno do personagem principal, Pedro Dinis Quaderna, e o enigma da morte do seu tio, Pedro Sebastião Garcia-Barreto, encontrado degolado dentro de seus aposentos no alto de uma torre que existia na sua fazenda; do desaparecimento, no mesmo dia, de um dos seus filhos, Sinésio Garcia-Barreto; e da aparição do misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco, dentre tantos outros acontecimentos inauditos.

No penúltimo movimento, “Tocata – A Demanda da Rainha do Meio-Dia”, o Autor aborda a gênese dos estudos decoloniais e apresenta os principais conceitos que serão tomados na realização do seu propósito de pesquisa: refletir sobre as possibilidades de uma epistemologia-jurídica decolonial a partir do Romance d’A Pedra do Reino, desde os aportes do Pluralismo Jurídico, do Direito Achado na Rua e do Surrealismo Jurídico.

Refere o autor que, o pensamento decolonial denuncia o caráter opressor do projeto moderno racional/colonial, baseado, precipuamente, “na imposição de uma classificação racial/étnica da população mundial” que opera “em diferentes planos, esferas e dimensões, materiais e subjetivas, do organismo social como um todo”. É essa hierarquização, esculpida na superioridade do homem branco europeu que orientou “o processo civilizatório desencadeado na Modernidade”.

Considerando-se que a modernidade/colonialidade se articula em três grandes grupos-síntese: “colonialidade do poder” (dimensão política), “colonialidade do saber” (dimensão epistemológica) e “colonialidade do ser” (dimensão ontológica); tem-se que a condição de subalternidade imposta pelo projeto colonial está também presente no Direito, sobretudo, no que diz respeito a dimensão epistemológica que engloba o saber jurídico.

A esse respeito afirma Raique: “enquanto o pensamento jurídico brasileiro e latino-americano continuar centrado nos modelos oferecidos pelo pensamento europeu, nunca alcançará a efetividade e legitimidade necessárias para uma nova prática de alteridade e de uma vida humana com maior identidade, autonomia e dignidade”. Urge, portanto, uma ruptura epistêmica, de modo a articular uma epistemologia jurídica fundada nas nossas experiências e saberes, sobretudo, os saberes e práticas sociais do nosso povo pobre, negro, índio, mestiço, espoliado e oprimido.

O Autor reconhece no “Romance d’A Pedra do Reino” uma contundente crítica ao colonialismo, bem como aspirações decoloniais, artefatos que fundamentam o rompimento epistêmico que reclama. Ao analisar diversos elementos do texto ele afirma que “O Romance d’A Pedra do Reino é […] um verdadeiro memorial de resistência a hegemonia europeia e norte-americana no mundo atual, além de ser uma sátira cômica as ideologias da modernidade”, pelo que complementa: “trata-se, antes de tudo, de negar os arquétipos eurocêntricos e encontrar o nosso próprio caminho, viver a vida do nosso jeito e a partir da nossa de visão-de-mundo”.

Partindo desta observação, perfilha: […] o Romance d’A Pedra do Reino, ao incorporar os preceitos éticos, estéticos e políticos do Movimento Armorial, nos ajuda a formular uma epistemologia-jurídica decolonial, na medida em que convoca os signos característicos da nossa cultura para criar em toda a sua autenticidade uma “visão de mundo sertaneja”, pela qual somos capazes de acessar o código genético da nossa própria “raça”. Em tal caso, uma “reculturalização” do Direito como forma de ressignificação local dos seus conceitos e sentidos, perpassa, forçosamente, por uma redescoberta dessas vivências locais, pela recuperação da nossa identidade cultural.

Em seguida reivindica, […] um contexto de produção emancipatória do Direito, que promova a abertura do campo jurídico para outras sensibilidades, rompendo com a lógica do pensamento único e eurocentrado. Com isso, “propõe que se desloque o olhar para as diversas fontes do Direito, saindo do mundo abstrato para o da sociedade concreta, desigual e contraditória, reconhecendo o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais também como enunciadoras de direitos” (PRATES et al., 2015, p. 108). Nesse sentido, a dimensão “pluralista” invocada pelo “O Direito Achado na Rua” passa a ser campo para uma redefinição paradigmática das estruturas jurídicas vigentes, o que se infere a partir do reconhecimento dos sujeitos e movimentos emergentes na produção de normatividades.

Posteriormente, enuncia sua formulação mais do que original, a emergência de um

“Direito Achado no Sertão”, um “Direito de Canudos”, d’A Pedra do Reino, um Direito que seja expressão legítima das lutas e vivências do nosso povo pobre, negro, índio, mestiço, espoliado e oprimido, silenciado pelos ecos cosmopolitas da modernidade/colonialidade.

É por essa fenda que a imersão na obra de Ariano Suassuna anuncia uma ruptura com a epistemologia jurídica moderna. Em primeiro plano, permite-nos uma conexão com as nossas raízes culturais e, também, com o nosso povo, de onde se é possível readequar através do saber local as categorias jurídicas vigentes. Mais profundamente, inaugura uma nova sensibilidade, que nos possibilita também reimaginar poeticamente a nossa imagem de mundo a partir do Sertão.

Logo, o “direito castanho”, enquanto inscrição decolonial do Direito na cultura nordestina, nasce como um conceito eminentemente subalterno, no sentido de oferecer uma nova interpretação do Direito a partir do imaginário sertanejo. Na acepção incorporada pelo Autor, isto é, “[…] como síntese ‘quadernesca’, o ‘direito castanho’ poderia ser percebido como uma matização entre, de um lado, o espírito mágico professado pelo ‘surrealismo jurídico’ de Luis Alberto Warat e, de outro, a matriz dialética adotada pela práxis de ‘O Direito Achado na Rua’”.

Assim é que o Autor se desincumbe da sua tarefa de pensar uma epistemologia jurídica decolonial a partir do Romance d’A Pedra do Reino e nos brinda, ao tempo que nos interpela, com os intrigantes conceitos de “Direito Achado no Sertão”, “Direito Castanho”, “Sertanismo Jurídico”. Conceitos cujos sentidos intencionalmente foram deixados em aberto, como algo sempre por fazer, sempre por alcançar; convocando à experimentação do chão pedregoso do Sertão, da quentura escaldante do sol, da secura da sua terra, da bravura e beleza da sua gente.

Tal como ocorre na “Ilha Desconhecida” de Saramago, ou mesmo no “Grande Sertão” de Rosa, ao iniciar esta viagem, cumpre a nós leitores nos abandonarmos nessa travessia rumo ao desconhecido e encantado Sertão-Mundo de Raique, Quaderna e Suassuna

            Embora a síntese oferecida por Marta Gama seja completa, e o primeiro capítulo do livro trate com muita adequação a aproximação entre direito e literatura ou direito e arte, volto a essa parte por encontrar entre suas fontes uma autora necessária ao catálogo oferecido por Raique, porque considero seu texto pioneiro e inafastável nesse tema. Além de Eliane, outro encontro benfazejo o de Arnaldo Godoy, para mim uma referência aqui em Brasília de quem, invariavelmente sobretudo nas bancas organizadas por Cristiano Paixão, venho colhendo referências para identificar em juristas e filósofos aqueles que com mais maestria articulam seus temas com aproximações literárias.

            Em seu livro “Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis” (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações: “As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas”.

            Essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a “Crítica da Razão Pura de Kant”, recebeu a resposta imediata, “não, mas assisti o filme”.

            Tratei desse tema em vários escritos sociológico-jurídicos, inclusive em livro organizado por Eliane Junqueira e por Luciano Oliveira (Ou isto ou aquilo. A sociologia jurídica nas faculdades de direito. Rio de Janeiro: IDES/Letra Capital, 2002), na direção do que enunciei acima tal como pode ser conferido, para efeito de divulgação em http://estadodedireito.com.br/coluna-lido-para-voce-direito-no-cinema-brasileiro/ e também em http://estadodedireito.com.br/criminologia-e-cinema-semanticas-castigo2/.

            A mirada do Autor desde a obra de Ariano Suassuna, para além da referência cultural identitária – “Neste trabalho, com os pés fincados no chão, falei do meu lugar, do meu país, da minha gente, da minha terra, do meu Sertão interior, da minha Ilha Desconhecida. O que eu procurei não foi criar nenhuma “verdade universal”, mas uma “verdade localizada” no seio da minha própria cultura. Não busquei criar uma narrativa única, mas uma narrativa que pudesse coexistir com todas as outras possíveis, ela mesma um infinito de possibilidades” – há uma tomada de posição político-epistemológica, tanto referida ao filosófico no que tange à perspectiva decolonial, e por extensão, uma perspectiva crítico-emancipatória do direito – O Direito Achado na Rua – que vão se fundir nos elementos interpretativos do mundo e da sociedade adotados por Raique.

            Sobre a perspectiva decolonial, é importante anotar o que o Autor distingue, até para fixar esses fundamentos:

Assim, “à semelhança da imperial epistemologia dos Estudos Regionais, a teoria [pós-colonial] permaneceu sediada no Norte, enquanto os sujeitos a estudar se encontravam no Sul” (GROSFOGUEL, 2008, p. 116). Esse cenário acabou suscitando a dissidência de alguns membros, dentre eles, Walter Mignolo e o próprio Ramón Grosfoguel que, mais tarde, viriam a integrar o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), juntamente com Arturo Escobar, Edgardo Lander, Enrique Dussel, Aníbal Quijano,  Fernando Coronil, Santiago Castro-Gómez, Immanuel Wallerstein,  Catherine Walsh, Nelson Maldonado-Torres, Boaventura de Sousa Santos, dentre outros (BALLESTRIN, 2013)”

            Curioso é que, à exceção de Dussel, com textos dos 1980, todas as referências de Raique são de autores e autoras que escreveram nos anos 2000 (Boaventura nos anos 1990). Digo curioso porque, em outra chave, portanto com elementos que antecipam o glossário de conceitos dos estudos sobre colonialidade, tanto Suassuna, quanto Roberto Lyra Filho (A Nova Escola Jurídica Brasileira – Nair, de onde procede O Direito Achado na Rua, sua Concepção e Prática), podem perfeitamente compor o rol de autores libertários (decoloniais), desencadeadores do que nesse campo pode ser caracterizado como virada decolonial.

            Nos personagens de A Pedra do Reino essa postura é recorrente. E conforme destaca Raique, sintetizando essas posições:

É que, para Joaquim Nabuco e seus seguidores, o Brasil deveria se esforçar para ser um prolongamento da Península Ibérica.  No fundo, esbraveja Adalberto, “todos esses são traidores da nossa luta, saudosos da Europa, exilados e desenraizados aqui” (SUASSUNA/PDR, 2017, p. 647). Para ele, nosso caminho deve ser outro, temos que aprofundar e ampliar a picada aberta por Silvio Romero, Manoel Bonfim e Euclides da Cunha, de modo que, “na luta que inevitavelmente se vai travar entre os Latinos e os Nórdicos, deveremos ficar, primeiro, fiéis a nossas raízes ibéricas” (SUASSUNA, 2017, p. 647), mas não podemos esquecer que, “todos os Povos submetidos e explorados do mundo são Negros, qualquer que seja a sua cor. Daí a solidariedade que deve haver entre nós, Latino-americanos, os Negros e os Asiáticos” (SUASSUNA/PDR, 2017, p. 647), completa ele.

            Ao estabelecer o escopo de sua apreensão do que denomina Sertanismo Jurídico e o Direito Achado no Sertão, Raique se vale do querido amigo João Paulo Allain Teixeira, para com ele pensar “a articulação de uma epistemologia do direito orientada pela dimensão armorial pressupõe o desdobramento da leitura decolonial em planos de significação que evidenciem a dimensão regional do saber enquanto espelho das diferentes formas de pensamento de um povo”. E nesse passo se dar conta de que “esta tarefa implica em uma percepção dos limites das teorias alienígenas, que demandam, ao menos um esforço de mediação cultural para serem assimiladas em contextos específicos, distintos daqueles nas quais foram forjadas”.

            Talvez por isso tenha se deixado arrebatar pelo que intuiu ser um movimento de virada decolonial, a convocação de Roberto Lyra Filho para fundar manifestar as bases de uma Nova Escola Jurídica Brasileira. A transcrição é uma escolha de Raique e está assim na sua obra:

A Nova Escola Jurídica é brasileira porque brasileiros são os seus membros e brasileiro o seu estandarte antiimperialista, a sua denúncia de todo genocídio material e cultural. Nas próprias “veias abertas da América Latina”, as asas da libertação espantam o bico de morcegos e vampiros, que nelas querem manter a fonte extrativa de matéria-prima e o mercado consumidor do produto estrangeiro, inclusive o ideológico. Rejeitamos as diretivas contrabandeadas pelo poder econômico multinacional e pelos autonomeados senhores das áreas de influência e seus representantes internos. Repelimos as contrafações ideológicas encadernadas e enlatadas, que desfibram as massas, impedem a autodeterminação popular, descaracterizam o nosso idioma, estilo e maneira de ser. Condenamos o “portinglês” dos PhDs, formados na “matriz”, ou aqui “possuídos” mentalmente por seus mestres e doutores da lei, sempre embasbacados diante de qualquer nominho ou flato mental da dominação empavonada. Conclamamos os estudiosos a lembrarem os nossos valores autênticos, os nossos mestres ir conformistas, enterrados sob a pata industrial-colonizadora, que recebe as carícias manhosas do complexo de inferioridade “nativa”.

             Na sua perspectiva político-epistemológica Raique busca praticar um cuidadoso exercício de mediação metodológica, simultaneamente objetivo e subjetivo. Ele conduz o exercício ao limite da refutação contra-metológica (na modelagem de Paul Feyrabend), para preservar o seu percurso:

Em geral, os cientistas exigem critérios objetivos para que uma teoria possa ser validada, do contrário, sem uma aplicação adequada do rigor metodológico, tal postulado jamais poderia ser considerado como uma evidência científica. Não se discorda da veracidade de tal conjectura, sobretudo, porque o ofício do cientista é sempre chegar o mais próximo que puder da verdade (e o método garante isso), contudo, por mais próximo que ele possa chegar, não podemos esquecer que o cientista nunca conseguirá alcançar completamente a verdade.

Justamente por isso, o ideal de uma ciência que substitua a sensibilidade empírica e a intuição, por uma crença dogmática de pureza metodológica e autodescrição objetivante do cotidiano, não só não pode ser considerada “boa ciência”, como também não passa de uma “filosofia ruim”, cousa atestada e juramentada por gente de fora, como “Jorge” Habermas (2010)

            Aqui terá sido útil, desde uma perspectiva metodológica, mas também epistemológica, valer-se das mediações cognitivo-tradutoras, não só de uma antropologia social que desvende uma outra sociabilidade, mas de uma sociologia de ausências e de emergências que possa ir ao profundo da linha abissal (Boaventura de Sousa Santos) para regressar pela mediação da hipótese do pluralismo jurídico, com a projeção de uma outra juridicidade que não seja o sinal trocado de um monismo positivo legal travestido de um monismo alternativo. O Direito Achado na Rua não é um direito alternativo, mas a expansão desde as entranhas do social, lá onde a existência emancipada, comunitária, compartilha os bens da vida produzidos em comum e de forma comum e igualitária sejam compartilhados segundo padrões de uma organicidade legítima.

            Com efeito, também na dissertação de Raique e antes em seu Direito, Literatura & Sertão, até por conta da matriz decolonial com a qual quer articular respostas para a questão dos mecanismos historicamente utilizados para a construção das hierarquias e posições sociais no Brasil, está assentanda em seu pensamento decolonial o por em causa as inter-relações segregadoras que obstruem o reconhecimento titulável de subjetividades emancipadas, e as possiblidades da atuação política de sujeitos históricos, na linha desses estudos que designam o modo sentipensante (Falls Borda, Paulo Freire) de libertação, no diálogo com os autores e autoras desse campo, por ele citados.

            Abre-se, portanto, naquilo que me incumbe dialogar com o Autor, a partir de sua obra, espaço para um Direito formado pelos sujeitos coletivos em meio às lutas sociais. Quando esses novos sujeitos entraram em cena, tornou-se imperativo “investigar a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados por esses movimentos e aquilatar a capacidade constitutiva de direitos decorrentes dos processos sociais novos que eles desenvolvem”. Nesse sentido, o desenvolvimento de estudos críticos sobre o Direito no Brasil decorre, em certa medida, da emergência desses sujeitos coletivos que se organizam enquanto sujeitos da própria história, munidos de habilidades de auto-organização e autodeterminação, transformando-se naquilo num sujeito coletivo de direitos, o que pode ser conferido na minha bibliografia em parte arrolada por Raique.

            Me instiga sugerir, pelo engajamento precoce, o verbete Sujeito Coletivo de Direito que meus alunos (1º semestre do Curso de Direito na UnB, elaboraram para a wikipedia, como atividade de investigação e autoria na disciplina Pesquisa Jurídica (cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).

            Voltando à questão metodológica, como estratégia dos estudos de decolonialidade,  combina bem com a disposição de Raique contribuições de pensadores como Fals Borda, já que intuitivamente essa disposição o aproxima da atitude do corazonar que, de acordo com Patricio Guerrero Arias, refere a uma postura intelectual, acadêmica e política de luta decolonial a partir do corazonamiento do saber, do poder e do ser. Ou seja, a religação da afetividade com a racionalidade intelectual, uma postura de decolonialidade do saber, do sentir e do ser, mas também, uma descolonização da própria academia e sua racionalidade universalizante. Suassuna em estado puro. (cf. http://estadodedireito.com.br/varrendo-para-cima-do-tapete-da-invisibilidade-social-a-regulamentacao-juridica-do-trabalho-na-limpeza-urbana/).

            Raique, ao (re)colocar a questão dos sujeitos sociais na perspectiva do sujeito coletivo de direitos, com “O Direito Achado na Rua”, possibilita, em última instância, a composição de identidades coletivas autônomas, não mais como prática solipsista (filosofia da consciência), mas como uma rede integrada de sujeitos, o que permite a reiteração de seu caráter participativo e democrático. Trata-se de “identidades coletivas conscientes, mais ou menos autônomos, advindos de diversos estratos sociais, com capacidade de auto-organização e auto-determinação, interligadas por formas de vida com interesses e valores comuns” (WOLKMER, 1997, p. 214) que compartilham conflitos e lutas cotidianas, legitimadas como mola propulsora para transformação do poder e instituição de um novo ordenamento social, plural, descentralizado e, acima de tudo, igualitário. Conforme aduz José Geraldo de Sousa Júnior e Lívia Fonseca (2017, p. 2894): “essa ideia é a base de fundamentação teórico prática da proposta de ‘O Direito Achado na Rua’ e tem como objeto o rompimento com a colonialidade do direito no seu cerne”.

            Li Raique numa quadra angustiante que marca a passagem de um mundo carcomido pelo colonialismo na sua pior exacerbação que é a capitalista neoliberal. No Brasil ela se manifesta de um modo corrosivo, moendo gente, para me valer de uma expressão de Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro. Mas, felizmente, numa conjuntura em que um mundo novo começa a nascer, parido do ventre utópico desse povo que não se deixa colonizar.

            Li Direito, Literatura & Sertão a uma semana da posse de um novo governo, de extração democrático-popular que abre uma atmosfera de expectativas, a rigor, de esperanças, considerando a realidade trágica vivenciada no país nos últimos seis anos, de uma administração cuja legitimidade foi todo tempo questionada e definitivamente avaliada nas eleições.

            Em artigo que escrevi com meu colega Eduardo Xavier Lemos, para a Coluna Justiça e Paz do Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/o-que-precisa-ser-novo-num-governo-novo/), acabando de conhecer o Relatório Final do Gabinete Governamental de Transição, pudemos retirar dele, dado o quadro de desmonte de políticas de atenção ao social, a constatação de que o resultado das urnas elegeu um projeto de reconstrução e transformação nacional, lançada a perspectiva de “criação de um país justo, inclusivo, sustentável, criativo, democrático e soberano para todos os brasileiros e brasileiras. Trata-se de um grande desafio e uma obra de muitos, a esperança da nossa gente será o motor das mudanças que iremos realizar nos próximos anos”.

            Mais que nunca cabe a indagação: o que precisa ser novo num governo novo? Do estertor da barbárie e do autoritarismo que agonizam, como interditar os monstros que se esgueiram no lusco-fusco para migrar do velho governo para o novo governo?

            Esperamos, dissemos Eduardo Lemos e eu, que o centro de governo, mediado pela atuação de uma justiça acessível e de uma segurança cidadã – muito diferente da instrumentalidade funcional de uma justiça formal e autoreferida – se abra à rua (metafórica), reconhecendo seus espaços instituintes e a titularidade coletiva das subjetividades inscritas nos movimentos sociais que transformam a democracia de forma de governo em forma de sociedade.

            Uma Justiça (e uma governança) que não se isole numa bolha arrogante e prepotente de dramática memória, principalmente se pensarmos em seu papel para interditar, aprisionando, um presidente (Lula) praticamente eleito. Afinal, em anotação retirada do livro de Raique, aludindo a Saramago (O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2016), “é necessário sair de mim e me encontrar numa outra órbita; sair de si mesmo para ver a si mesmo. Sair da ilha para ver a ilha”.

            Sair, pois, da bolha, principalmente a jurídica, das velhas hierarquias e das comendas heráldicas, que se autoconhecem (qui hurlent de se trouver ensemble), para desburocratizar e despapelizar o sistema, abrindo-se à interlocução com os verdadeiros protagonistas, nos espaços sociais que reinventam, os sujeitos coletivos de direito, que pedem não só a ampliação de acesso ao sistema de justiça, mas diálogo para discutir a qual Justiça reivindicam acesso (https://www.brasilpopular.com/o-que-precisa-ser-novo-num-governo-novo/).

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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