por Eduardo Xavier Lemos e José Geraldo de Sousa Junior – JBP/DF
Estimadas e estimados leitoras e leitores, estamos a uma semana da posse do novo governo. Ainda assistimos às gestões finais para compor a governança, a definição dos ministérios e do alto escalão que a vai caracterizar.
Há uma atmosfera de expectativas, a rigor, de esperanças, considerando a realidade trágica vivenciada no país nos últimos seis anos, de uma administração cuja legitimidade foi todo tempo questionada e definitivamente avaliada nas eleições.
Acabamos de conhecer o Relatório Final do Gabinete Governamental de Transição e é dele que vem a afirmação de que “é hora de resgatar a esperança. O desejo popular expresso pelo resultado das urnaselegeu um projeto de reconstrução e transformação nacional. Nosso horizonte é a criação de um país justo, inclusivo, sustentável, criativo, democrático e soberano para todos os brasileiros e brasileiras. Trata-se de um grande desafio e uma obra de muitos, a esperança da nossa gente será o motor das mudanças que iremos realizar nos próximos anos”.
O Relatório, segundo seus subscritores, parece ter sido um trabalho de fôlego, para o qual contribuíram agentes públicos do aparato de Estado e contra o qual não se apresentou nenhuma objeção ou correção. Ao contrário, a PEC da Transição recentemente aprovada pelo Congresso indica que o quadro de desmantelamento das políticas públicas, principalmente as sociais, tem a prova dos nove na trágica realidade orçamentária.
Por isso, do Relatório sobressai a observação de que “o resultado é uma fotografia contundente da situação dos órgãos e entidades que compõem a Administração Pública Federal. Ela mostra a herança socialmente perversa e politicamente antidemocrática deixada pelo governo Bolsonaro, principalmente para os mais pobres. A desconstrução institucional, o desmonte do Estado e a desorganização das políticas públicas são fenômenos profundos e generalizados, com impactos em áreas essenciais para a vida das pessoas e os rumos do País. Isso tem tido consequências graves para a saúde, a educação, a preservação ambiental, a geração de emprego e renda, e o combate à pobreza e à fome, entre outras”.
Para os fins desse artigo destacamos a parte do Relatório que trata da Defesa da Democracia, Reconstrução do Estado e da Soberania Centro de Governo. Com efeito, aí onde se marca o Centro, mais que nunca cabe a indagação: o que precisa ser novo num governo novo? Do estertor da barbárie e do autoritarismo que agonizam, como interditar os monstros que se esgueiram no lusco-fusco para migrar do velho governo para o novo governo?
O Relatório, revelando o ânimo da governança que se instala, define também a orientação que a guia: “O Centro de Governo (CdG) reúne o conjunto das unidades da Presidência que atuam na coordenação dos órgãos e entidades do Poder Executivo, direcionando as áreas setoriais para o alcance dos objetivos definidos pelo Presidente. Embora haja muita variação na organização do Centro de Governo entre os países e também ao longo da própria história da Nova República, em geral, algumas funções estão presentes nos diferentes arranjos institucionais e são fundamentais para a coerência da ação governamental. Por um lado, o Centro de Governo busca garantir a sustentação política e social para a consecução do programa governamental, realizando a coordenação política, a articulação social e a comunicação com a sociedade, além de oferecer mecanismos de transparência e responsividade. Por outro lado, o Centro de Governo precisa garantir os resultados e as entregas de bens e serviços públicos. Nesse sentido, o CdG deve ser capaz de definir prioridades, coordenar o processo de produção de políticas públicas (especialmente as prioritárias e as transversais), mediar e equacionar eventuais conflitos, acompanhar e monitorar as ações e programas de governo e oferecer suporte jurídico e político para as decisões do Presidente”.
Nesse Centro está a Justiça e a Segurança da Cidadania. Ponto nevrálgico que ativa o sensível dos objetivos, dos fundamentos e do método da governança. Já agora vimos o sensor ético dessa disposição ser fortemente acionado, no duplo episódio de indicação de nomes para a polícia rodoviária federal e para o sistema penitenciário. E, imediatamente, a atuação corretiva para não contaminar o projeto nos seus objetivos, fundamentos e método, com a infiltração de biografias que os afetem.
Tarefa delicada e que requer firmeza. Num mundo que ambiguidades não se prestem de álibi para disfarçar antagonismos radicais, vale ainda o critério proposto por Merleau-Ponty quando se trate de discernir entre discursos que só na aparência são unívocos. De fato, lembra o filósofo, “todos lutam em nome dos mesmos valores: a liberdade, a justiça. O que divide é a espécie de homens para quem se pede justiça ou liberdade, a espécie de homens com quem se entende fazer sociedade: os escravos ou os senhores”.
Ainda bem que há perfis forjados nessa fibra de dupla lealdade, ao projeto e à cidadania. Perfil como o do Ministro Flávio Dino que conhece bem a mais hegeliana afirmação de Gramsci de que“o velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e neste lusco-fusco surgem os monstros”.
É isso que precisa ser novo num governo novo. As eleições contribuíram para separar o joio do trigo. Agora, é separar o joio do joio e o trigo de trigo. Ainda bem que os critérios existem e são assumidos pelo novo governo, atento a sua condição de governo popular, afeito à democracia participativa e à interlocução necessária com as articulações legítimas da sociedade civil.
Graças ao esforço de milhões de cidadãos e cidadãs hoje rumamos a passos largos para reatar o fio de democratização momentaneamente esgarçado, por essa razão entendemos que já é hora do nosso debate transpassar as acusações ao modelo de governo autocrático, apontando agora para novos desafios e ares, portanto, pensarmos coletivamente a categoria de país em que queremos viver e, claro, qual o papel da sociedade civil nesse momento histórico. Cremos importante trabalhar esse tema por três fatores: a) situar o nosso lugar de fala frente a um governo democrático; b) demonstrar a importância da sociedade civil na afirmação do projeto democratizador; c) estabelecer o estrito e necessário vínculo entre governo popular e sociedade civil para a conquista de uma democracia participativa.
O primeiro ponto importa explicitar que entendemos como sociedade civil organizada:o conjunto de coletivos, movimentos e grupos, que, conscientizados, representam as históricas reinvindicações por direitos das maiorias oprimidas (ou minorias políticas), são os também chamados sujeitos coletivos de direitos, incidindo nesse conceito, as diversas organizações da sociedade civil que lutam pela defesa dos direitos humanos (é onde nossa Comissão se situa). Pois bem, entendemos que o papel da sociedade civil nesse momento histórico é o de fiel conselheiro que, à medida que tenha sua voz escutada flui na sua cotidianidade, porém, ao passo que seja calada deve gerar turbulência na maré.
Como representantes da voz de muitas e muitos, a sociedade civil organizada deve ter por ciência que a democratização do país passou pela luta cotidiana de cada um e cada uma cidadã que resistiu à autocracia, às tiranias, às violações aos direitos humanos, a fome e a pobreza, inclusive com muitas e muitos mártires, por violações imprescritíveis e não anistiáveis.
Dessa forma, que comecemos a romper com a democracia de baixa intensidade que vivemos hoje, e assim se estabeleça um verdadeiro governo popular (inclusive para que possamos chamá-lo de popular). Se faz necessário que se estabeleça um forte canal de troca de saberes entre a sociedade civil e o governo eleito, um canal de troca horizontal onde seja permitido que o fiel conselheiro de um governo popular possa trocar saberes, recomendar e desaconselhar, projetar e advertir, evitando constrangimentos e exposições desnecessárias (pois o vento há de turbilhoar).
Na verdade, é a efetiva troca da sociedade civil com o governo que o torna popular, de maneira a estar sempre atualizado com as novas demandas civilizatórias, e assim perceber (e receber) o clamor dos movimentos populares, permitindo que novos ares reciclem os ambientes, e, assim, antigos acertos permaneçam, eventuais equívocos sejam sanados e, principalmente, uma nova gama de possibilidades se expanda, o que só acontece com a abertura ao outro.
Por fim e, tão importante quanto, é fundamental que instrumentos de participação direta na tomada de decisão sejam progressivamente acrescentados à um projeto de governo que aspira a democracia de alta intensidade, de maneira a ampliar a participação dos cidadãos e cidadãs na tomada de decisão sobre as suas vidas, assim aumentando a consciência cívica da nação, consolidando a importância da democracia e a educação emancipadora. Por essa razão, as consultas públicas e referendos e, principalmente, um modelo de orçamento participativo que além de tudo estimule a conscientização cívica, tomando responsabilidade sobre o orçamento público é de especial relevância para atingir um governo popular e uma democracia participativa e de alta intensidade.
Esperamos que o centro de governo, mediado pela atuação de uma justiça acessível e de uma segurança cidadã – muito diferente da instrumentalidade funcional de uma justiça formal e autoreferida – se abra à rua (metafórica), reconhecendo seus espaços instituintes e a titularidade coletiva das subjetividades inscritas nos movimentos sociais que transformam a democracia de forma de governo em forma de sociedade.
Uma Justiça (e uma governança) que não se isole numa bolha arrogante e prepotente de dramática memória, principalmente se pensarmos em seu papel para interditar, aprisionando, um presidente (Lula) praticamente eleito. Afinal, como ilustrou Saramago (O Conto da Ilha Desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2016), é necessário sair de mim e me encontrar numa outra órbita; sair de si mesmo para ver a si mesmo. Sair da ilha para ver a ilha.
Sair, pois, da bolha, principalmente a jurídica, das velhas hierarquias e das comendas heráldicas, que se autoconhecem (quihurlent de se trouver ensemble), para desburocratizar e despapelizaro sistema, abrindo-se à interlocução com os verdadeiros protagonistas, nos espaços sociais que reinventam, os sujeitos coletivos de direito, que pedem não só a ampliação de acesso ao sistema de justiça, mas diálogo para discutir a qual Justiça reivindicam acesso.
(*) Eduardo Xavier Lemos, presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília, e José Geraldo de Sousa Junior, membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília.