Uma notícia estarrecedora sobre um atentado letal em escolas do Espírito Santo recoloca a questão do armamentismo civil e sua ligação a estratégias milicianas assimilada a objetivos e formas de governar.
Recupero a notícia a partir de despacho da Agência oficial de comunicações: a Agência Brasil: “ES: adolescente usa arma do pai e símbolo nazista em ataque a escolas. Filho de policial militar, jovem diz que planejava ação há dois anos (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-11/es-adolescente-usa-arma-do-pai-e-simbolo-nazista-em-ataque-escolas)”.
Conforme a matéria, “após ser apreendido como principal suspeito de autoria do ataque a duas escolas em Aracruz, no Espírito Santo, um adolescente de 16 anos confessou o crime, informou a Polícia Civil do estado. O jovem contou que vinha planejando a ação há pelo menos dois anos. O adolescente é filho de um policial militar.O ataque às duas escolas teve início por volta das 9h30 de hoje (25) e resultou na morte de pelo menos dois professores e uma aluna. Ficaram feridas 11 pessoas que foram levadas para hospitais da região. Alguns dos feridos já foram liberados. Segundo as últimas informações, quatro pessoas apresentam quadro de saúde mais delicado: três professores, cujo estado é grave, e um aluno, em situação gravíssima. Já se sabe que o adolescente usou duas armas de responsabilidade do pai: um revólver de calibre .38, de propriedade privada e uma pistola .40 pertencente à Polícia Militar. Ele também levava três carregadores. O governador Renato Casagrande confirmou que, no momento do crime, o adolescente usava uma braçadeira com um símbolo nazista”.
Com efeito, ainda de acordo com matéria da Agência Brasil, a Polícia Civil, que apreendeu o adolescente autor confesso do atentado, ele não explicou por que fez os ataques, mas a “Polícia Civil trabalha com a hipótese de que o adolescente não tinha um alvo definido e que ele pode ter agido sob estímulo de grupos extremistas, que se organizam de forma virtual dentro e fora do Brasil”.
A minha convicção é que o ato pode ser um efeito errático, mas é consequência de política armamentista uma estratégia miliciana assumida como método de governo e projeto de poder.
Em artigo publicado na página do IHU (Unisinos) – https://www.ihu.unisinos.br/categorias/599309-armar-o-pais-a-guerra-santa-bolsonarista, Robson Sávio Reis Souza, sustenta que “Bolsonaro (e sua família) é um presidente visceralmente ligado às milícias; tem como principais bases de apoio o militarismo autoritário (mobilizado em segmentos das Forças Armadas e nas polícias estaduais) e um grupo considerável de fascistas (estimado em cerca de 15% da população) que já está armado (nas redes sociais e nas ruas). Sua eleição selou a aliança mais perversa da história republicana: dos setores ultraconservadores da sociedade brasileira (os radicais da extrema-direita) com o que há de pior no submundo da política (as redes de corrupção sistêmica que operam nos esgotos das negociatas público-privadas e que movimenta as relações mais espúrias desse país)”.
Numa leitura macro, sob enquadramento econômico globalizado que localiza o Brasil em sua lógica, José Luís Fiori (https://www.ihu.unisinos.br/categorias/589872-a-danacao-da-historia-e-a-disputa-pelo-futuro), afirma que a agenda liberal aplicada no país hoje, é “sustentada por uma aliança e um governo formado por grupos de extrema-direita, de militares aposentados, seitas religiosas fundamentalistas, milícias privadas, clubes de tiro e senhoras rezadeiras, financiados pelas elites tradicionais, tutelados pela grande imprensa conservadora e sustentados, em última instância, pelo governo norte-americano”.
Voltando a Robson Sávio Reis Souza, têm-se, com ele que “a tradicional falta de controle de armas, responsável por uma guerra que produz cerca de 60 mil homicídios por ano tende, com o projeto armamentista ditatorial de Bolsonaro, a se desaguar numa carnificina de proporções incalculáveis. Como lembra Janio de Freitas ‘Bolsonaro sabe que o povão maltratado, humilhado, explorado e roubado em todos os seus direitos, no dia em que também tivesse ou tiver armas, não teria dúvida sobre o alvo do fogo de sua dor secular. Adeus ricos, adeus classe média alta’. Portanto, abram os olhos os privilegiados que pensam que a guerra bolsonarista é somente contra os pobres”.
Claro que nesse mosaico de motivações na linha de uma modelagem própria do extremismo de direita, a violência letal e armada se materializará espasmodicamente, numa escola como em Aracruz, num bloqueio de rodovia, numa ação de rua, muitas vezes contidas em ações de segmentos específicos dessa militância agressiva. É o que sugere a matéria da mídia ninja (https://midianinja.org/news/relatorio-denuncia-que-ataques-neonazistas-cresceram-mais-de-400-no-governo-bolsonaro/): “Entre 2019 e 2021 o aumento de casos foi de 408%. Desde o primeiro ano do governo Bolsonaro, Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil contabilizou 114 denúncias”.
O que é preciso ter em mais cuidadosa atenção é a atuação ao que se passa nas entranhas do chamado deepstate, não só na arregimentação pontual como acompanhamos durante as eleições com o aparelhamento policial (PRF, PMs), militar (leniência com o desorganizado mas politicamente articulado lamento em portas de quartéis); mas o bem desenhado movimento tático de armamentismo das áreas e setores com alto potencial de conflito com alcance desestabilizador da institucionalidade e do direito.
Não me refiro ao “apito de cachorro” dos movimentos de uma Zambelli ou de um Jefferson, com a retórica “a mão-armada” do “direito de auto-defesa”; mas o que já está sendo identificado, por exemplo, na Amazônia, com o “agromilicianismo”, ancorado na situação flexibilizadora do armamentismo sob o disfarce “legal” de clubes de tiro.
Tratei desse tema aqui no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/agrobanditismo-que-mata-e-fere/). Acrescento, a propósito, ao que mostra a bem desenvolvida e documentada matéria de Carol Castro (https://theintercept.com/2022/11/16/clubes-de-tiro-cercam-indigenas-e-municiam-agromilicias-na-amazonia/) Clubes de Tiro Cercam Indígenas e Facilitam Agromilícias na Amazônia, com mapas que revelam todos os pontos de localização caracterizando esse cerco.
Ela mostra, além disso, como a “flexibilização torna mais fácil a atuação de empresas de vigilância armada em regiões já marcadas pela violência rural”. Agora, “as agromilícias se formam no mesmo modus operandi, mas com dois facilitadores: os CACs e os clubes de tiro. ‘Você não precisa mais abrir uma empresa, basta ir lá e tirar um registro de caçador’.A lei mudou mesmo o cenário no campo. Em 2019, Bolsonaro aprovou uma lei de posse de arma estendida no campo. Ou seja, desde então, os fazendeiros podem andar armados por toda sua propriedade – e não apenas na sede, como era antes. “Essas propriedades na Amazônia são do tamanho da região metropolitana de São Paulo. Então essa pessoa pode andar por milhares de quilômetros armada. Ela agora pode botar um fuzil legal dentro da sua propriedade”.
Em 2005, quando se discutia na perspectiva de um referendo o tema do armamentismo, o que estava em causa era o dilema ético que contrapunha comércio de armas e cultura de paz (cf. o meu texto Comércio de armas e cultura de paz: dilemas de um referendo (Jornal do Sindjus Agosto de 2005 • Nº 26).
Em meu texto cheguei a alinhar as posições dos defensores do comércio de armas de fogo com sua posição no direito de escolha do cidadão de autodefender-se, especialmente numa sociedade mal estruturada em que a segurança públicaé precária. Em tal contexto, enquanto o cidadão se desarma, os criminosos têm acesso a armas de fogo no comércio ilegal, principalmente, no contrabando.Contudo, no que diz respeito ao ceticismo relativo amedidas que impliquem restrição de fabricação e de comércio, a desconfiança não procede do mesmo fundamento que inspirou críticas a proibições a exemplo da “lei seca” ou de outros tipos de tóxicos, cuja demanda sempre estimula, como dizia o velho professor Roberto Lyra Filho, “o engenho criminoso a forjar meios e modos para contornar a ação repressora”. A letalidade conseqüente ao comércio de armas, diferentemente do que sucede no comércio de drogas, conduz a uma atividade que pode considerar-se “com vítima”, porque não se trata apenas de autodestruição física ou moral, que não afronta a tutela penal. Por isso mesmo, nos Estados Unidos, hoje, juízes têm condenado como co-autor de homicídio o fabricante que põe à disposição do mercado armas cuja letalidade exceda a auto-defesa razoável.
Essa é uma questão, eu dizia, que se coloca na perspectiva ética que busca desenvolver e aperfeiçoar sistemas alternativos de produção, fundados em concepções de comércio justo, que reclamam regimes jurídicos especiais para atribuir condições justas às suas práticas, inspiradas em movimentos que se põem contra toda forma de mercadorização da vida social.
Agora não, o que se debate é que sociedade queremos instituir, uma sociedade democrática ou autoritária; a politização ou a criminalização dos conflitos; a barbárie ou a civilização; e sim, nos relacionarmos conforme uma cultura de morte ou uma cultura de justiça e paz; uma educação que conforma e disciplina ou que emancipa? Eis um tema central e urgentea ser levado a sério pelo novo governo, no sentido de projetar “um Brasil pedagogo”, desarmado, conforme sugeriu Gilberto Carvalho (https://www.youtube.com/watch?v=m31SPc6Plcs), em conversa na qual refletimos sobre umBrasil [que] se Reencontra com o Brasil. Diálogo para a Justiça e a Paz.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).