por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Notícia difundida por Mídia Ninja (WhatsAppTelegramTwitterFacebook), a partir da Agência Câmara de Notícias, dá conta de que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou agora no dia 2 de agosto, proposta que proíbe a instalação de obstáculos, como pedras, estacas e espinhos, em espaços de uso público com o objetivo de afastar pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população. O texto ainda será analisado pelo Plenário.
O Projeto de Lei 488/21, do senador Fabiano Contarato (Rede-ES), recebeu do relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), parecer pela constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa. O texto altera o Estatuto da Cidade e já foi aprovado no Senado. Para o relator “É um projeto muito importante, porque proíbe que a arquitetura das cidades seja hostil à população em situação de rua. Imagine colocar formações pontiagudas embaixo de um viaduto para impedir que pessoas possam se deitar ali. É de uma crueldade brutal”, ele diz e completa: “Ninguém está em situação de rua por querer, sobretudo com a atual crise econômica e social.”
Conforme ainda a notícia, o relator também recomendou a aprovação das duas emendas aprovadas anteriormente na Comissão de Desenvolvimento Urbano, uma delas substituindo o termo “arquitetura hostil” por “técnicas construtivas hostis”. Entre essas técnicas estão bancos com divisórias, paralelepípedos em calçadas, prédios sem marquises e até a instalação de chuveiros para molhar o solo e impedir que pessoas se abriguem nesses locais.
O termo “arquitetura hostil” foi cunhado pelo jornalista britânico Ben Quinn, em 2014, ao fazer referência ao emprêgo de pontas de ferro em locais públicos para evitar a presença de pessoas em situação de rua.O texto aprovado insere entre as diretrizes da política urbana, presentes no Estatuto da Cidade, a promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na utilização dos espaços livres de uso público.
Segundo Fabiano Contarato, autor da proposta, a ideia para o projeto surgiu após o padre Júlio Lancellotti, conhecido pelas ações de acolhimento social na cidade de São Paulo, usar uma marreta para remover pedras pontiagudas instaladas pela prefeitura sob um viaduto para impedir a presença de pessoas em situação de rua. Como reconhecimento, o senador sugere que a futura lei tenha o nome do padre, ideia também defendida por Orlando Silva: “Nada melhor do que homenagear o padre Júlio Lancellotti, que é um símbolo da luta por dignidade para o povo pobre e para o povo que vive em situação de rua”, acrescentou o relator.
Aqui neste espaço do Jornal Brasil Popular, pelo menos em duas ocasiões, procurei incidir na crueza necropolítica que a conjuntura neoliberal agudiza, também inspirado no agir pastoral do Padre Júlio. De tal modo que cheguei a afirmar que a sua marreta é a expressão material dos direitos humanos nesses tempos de desprezo ao humano. Daí que o padre Júlio, seguindo o Papa Francisco, ponha em causa, para além da mobilização das consciências, “o desfio que os governos e as instituições mundiais precisam de perfilhar, com um modelo social clarividente, capaz de enfrentar as novas formas de pobreza que invadem o mundo” pois “se os pobres são colocados à margem, como se fossem culpados da sua condição, então o próprio conceito de democracia é posto em crise e fracassa toda e qualquer política social”. Um carão nos indiferentes, artífices do descarte das periferias sobrantes, advertindo a que manter-se sempre junto dos pobres é humanizar-se com eles (https://www.brasilpopular.com/humanizar-se-estando-ao-lado-dos-pobres/).
A proposta de lei, com tal inspiração, se inscreve na concepção hoje difundida no mundo sobre gerir cidades que sejam educadoras. Fiz uma reflexão sobre esse tema em artigo que publiquei na Revista do Sindjus • Jun-Jul/2009, ano XVII, nº 59, nesse e noutros aspectos seguindo os pressupostos mais revcentemente lançados em obra que co-organizei: Série O Direito Achado na Rua, volume 9 – Introdução Crítica ao Direito Urbanístico. Brasília: Editora UnB, 2019 (edição impressa e também digital: http://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17).
Lembrei nesse texto, que em 1990, em Barcelona, na Espanha, por iniciativa da Associação Internacional de Cidades Educadoras, realizou-se o 1º Congresso Internacional de Cidades Educadoras. Ao final desse Congresso foi elaborada uma Carta das Cidades Educadoras, chamada Declaração de Barcelona, contendo definições e princípios pelos quais se definem compromissos que levam a orientar os impulsos educativos da cidade.
Uma cidade pode ser considerada educadora quando nela, além dos vários modos de ocupação de espaços, nos quais se realizam múltiplas interações e experiências do conviver, são disponibilizadas incontáveis possibilidades educacionais, contendo em si elementos importantes para a formação integral de seus habitantes.
A cidade contém, de fato, como assinala a Carta de Barcelona, um amplo leque de iniciativas educadoras, de origem, intenções e responsabilidades diversas. Engloba instituições formais, intervenções não formais com objetivos pedagógicos preestabelecidos, assim como propostas ou vivências que surgem de forma contingente mas que favorecem a disposição para o aprendizado permanente de novas linguagens e que oferecem oportunidades para o conhecimento do mundo, o enriquecimento individual e o seu compartilhamento de forma solidária.
No Brasil, já vários municípiosassinaram o termo de compromisso da Carta de Barcelona, entre eles São Paulo, Belo Horizonte ePorto Alegre. São cidades que podem, assim, trocar experiências bem-sucedidas segundo esses valores e que passam a desenvolver uma identidade constituída por investimentos culturais para a formação das pessoas que nela convivem. Elas procuram, enquanto cidades educadoras que pretendem ser, converter seu espaço urbano em “escola” e, na intencionalidade de suas atribuições, se oferecer como mediação para o desenvolvimento pleno de seus habitantes, contribuindo para que eles se façam sujeitos e cidadãos.
Com efeito, ainda conforme a Carta de Barcelona, a cidade só será educadora quando reconhecer, exercitar e desenvolver, além de suas funções tradicionais (econômica, social, política e de prestação de serviço), uma função educadora cujo objetivo é a formação, promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes.
Normalmente são identificados atributos para designar uma cidade educadora, a partir da constatação de que ela tem um governo eleito democraticamente e seus dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Mas a análise histórica e social de qualquer cidade facilmente leva a identificar ações organizadas de movimentos sociais ou de comunidades de vizinhança que representam inúmeras iniciativas e experiências carregadas de sentido educador, por se caracterizarem como processos qualitativos de novas sociabilidades.
O notável nesses processos é a construção de uma consciência social mais elevada. Aí reside o fator educador por excelência, na medida em que as pessoas que dele participam acabam conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua cidade e vivenciam de forma efetiva a experiência democrática.
É possível pesquisar uma cartografia dessas práticas a partir de experiências apresentadas em congressos (www.edcities.bcn.es) ou em coletâneas que as registram, como a Coleção Cidades Educadoras (Editora Cortez/Instituto Paulo Freire/Cidades Educadoras América Latina, disponível nos sites www.paulofreire.orge www.cortezeditora.com.br.
Elas são muitas e vão desde as práticas de orçamento participativo às de educação para a democracia, direitos humanos e cultura da paz. O que revelam de comum é o efeito irradiador, intercultural e mobilizador das redes e das instituições que se articulam nessa lógica de inclusão e de solidariedade, revelando o caráter aberto e irradiante da proposta de cidade educadora.
Todo apoio, pois, à proposta da nova lei (Lei Padre Julio Lancellotti). “Que a marreta do padre Lancellotti esmague as serpentes e os sistemas antipovo enquanto alimenta pobres e abriga em sua igreja povo de rua”. Não é simples, nem fácil, comprometer-se com esses direitos. Lembra Eduardo Galeano: a justiça (e muitos governos), como as serpentes, só morde os descalços (https://www.brasilpopular.com/ossos-de-boi-arroz-e-feijao-quebrados-e-pe-de-galinha-fome-no-brasil/).
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).