Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.
Luiz Henrique Eloy Amado (Eloy Terena). O Campo Social do Direito e a Teoria do Direito Indigenista. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2022, 223 f.
A Tese de que trata este Lido para Você foi apresentada, defendida e aprovada perante a Banca Examinadora, da qual fui membro e que foi integrada pelas professoras e professores Ana Maria Motta Ribeiro, Orientadora – PPGSD/UFF; Gizlene Neder, Examinadora Interna – PPGSD/UFF; Carlos Frederico de Souza Filho, Examinador Externo – PPGD/Puc-PR; Eloísa Machado, Examinadora Externa – FGV-SP; e Antonio Carlos de Souza Lima; Examinador Externo – Museu Nacional/UFRJ.
Para mim foi uma satisfação amplificada em razão de múltiplas razões, carregadas de emotividade.
A primeira, o poder examinar um trabalho de elevado nível político-epistemológico, no ano de celebração do bicentenário da independência do Brasil em relação à metrópole colonizadora, mas que em si representa uma ação concreta de descolonização porque defendido por uma autoria orgulhosa de sua identidade e que se apresenta autônoma no salto tremendo entre a sua condição originária no momento da conquista, entre o que já fora a sua representação como bestializado, desalmado, silvícola, para a afirmação plena do tornar-se humano, tal qual considerava Hegel, um processo inscrito na experiência da História. Um salto que liga a Sublimis deus (1537, Papa Paulo III, reconhecendo ao índio a condição de pessoa humana) à Constituição brasileira de 1988, constituição cidadã, reconhecendo os indígenas sujeitos de sua própria história, instituintes de direitos e de cidadania plena. Assim como o Autor da tese, que em conjunto com seus parentes, afirmou seu lugar acadêmico na descolonização da universidade e seu currículo, nas lutas afirmativas por inclusão e desse lugar, também a descolonização da tribuna do Supremo Tribunal Federal, para afirmar alto e em bom som, que sua história cria um direito autêntico, próprio, um outro direito, anterior ao estado e com jurisdição autônoma.
A segunda, o poder compartilhar com brilhantes colegas, entre eles amigos diletos, que nessa banca se reencontram e renovam valores e conhecimentos que partilham.
A terceira, é estar presente num evento acadêmico, no espaço de um programa de pós-graduação, um dos primeiros propriamente interdisciplinares credenciados na pós-graduação em direito, que me toca fundamente por ter sido o parecerista ad hoc, designado pelo coordenador de área Aurélio Wander Bastos, para estar presente na sessão do Comitê da Capes que o aprovou. Foi uma novidade não só na grande área de ciências sociais aplicadas, certamente a primeira no campo jurídico, estrito senso.
Do que trata a Tese, remeto ao seu resumo:
A tese tem por objeto o direito produzido pelo Estado para os povos indígenas, ou seja, um direito imposto, construído e aplicado sem a participação dos povos originários. Para analisar tal direito, elegeu-se três fatores determinantes que devem ser levados em consideração na elaboração daquilo que estamos denominando de teoria do direito indigenista, quais sejam: a) a política indigenista brasileira analisada em suas várias conjunturas históricas, desde o Brasil colonial aos dias atuais; b) o contexto político-econômico em que as normas jurídicas foram produzidas; e, c) a análise situacional dos povos indígenas consideradas em sua totalidade, ou seja, não como povos estanques na história e isolados do mundo, mas como agentes políticos imersos e diretamente afetados por estruturas do sistema-mundo. O objetivo é apresentar um produto do somatório de experiências e reflexões forjadas na prática da advocacia indígena. Para tanto a teoria que se pretende ofertar terá como base a experiência da atuação judicial de defesa de comunidades indígenas, a partir da experiência do Departamento Jurídico da APIB e COIAB, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e instâncias internacionais de direitos humanos. O método adotado é o materialismo histórico dialético para entender como as estruturas econômicas e políticas impactam os territórios indígenas e a produção de um direito imposto. Ao fim, busca-se oferecer uma leitura crítica de um direito que, mesmo sendo produzido para servir ao interesse do capital, tem sido ocupado pelos povos indígenas e manejados numa fricção jurídica intercultural.
Leal ao enunciados do programa em que o trabalho se desenvolveu, o Autor articula fundamentos retirados de teorias de sociedade e de justiça, para orientar sua própria investigação. De fato, essa é a indicação de J J Gomes Canotilho, que em sua Teoria da Constituição e do Direito Constitucional afirma fazer possível liberar o conhecimento para romper com o formalismo estiolante do jurídico e, orientar-se pelo olhar vigilante sobre as exigências do justo, abrindo-se a outros modos de realização do Direito.
O Autor, com efeito, fixa bem esse ponto de partida:
Este trabalho possui dois campos reflexivos, tendo em vista que foi desenvolvido no âmbito de um programa de pós-graduação em sociologia e direito. A leitura dos clássicos da teoria sociológica e da teoria do direito, aliado à prática da advocacia indígena, nos permite oferecer uma análise do desenvolvimento da política e do direito indigenista brasileiro. Resta consignar de maneira preliminar que partimos do pressuposto fundamental que no Brasil, não existe apenas um direito indígena, mas vários direitos indígenas, que nascem da aldeia e possuem resguardo jurídico, e portanto, devem ser respeitados. Entretanto, neste trabalho não estou analisando o direito indígena, mas sim o direito indigenista, aquele direito produzido e imposto pelo Estado aos povos indígenas.
Por se tratar de um trabalho sócio jurídico realizado por advogado indígena com atuação nas principais organizações indígenas, costuma-se esperar que o mesmo aborda sobre os regimes jurídicos próprios presentes nas comunidades, sobre a teoria da jusdiversidade ou sobre o pluralismo jurídico e os povos indígenas. Mas, frisa-se, aqui está se propondo entender o direito indigenista, e ao analisá-lo, reconhecer que é direito ocidental imposto, em grande medida criado pela ausência da efetiva participação indígena, mas que mesmo assim, os povos indígenas tem se posto a entender, dialogar e utilizar esta estrutura jurídica desenhada pelos não indígenas.
Destaco no trabalho de Luiz Eloy, uma consideração que tem dimensão epistemológica, se assim consideramos, com Boaventura de Sousa Santos, que o conhecimento é simultaneamente, consciência e existência, vale dizer, ação no mundo e biografia. Noto que isso está nítido na atitude de pesquisa do Autor, dizendo de certo modo, o mesmo que disse Ailton Krenak ao receber o título de Doutor Honoris Causa na UnB, que a distinção não o exaltava como pessoa, senão como expressão de uma biografia de povo, um reconhecimento ao coletivo que marca a formação de sua identidade comunitária.
Diz Eloy que “de igual modo, o texto é resultado de trabalho coletivo, pois grande parte das reflexões empossadas tem origem na árdua atuação no âmbito do Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), da Coordenação das Organização Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e do Conselho do Povo Terena, que reúne um time jurídico excepcional e tem atuação dialógica com outros importantes jurista que acompanham e apoiam a luta dos povos indígenas no Brasil”,. E que “é importante que se registre que a pandemia do Covid-19 impactou o andamento dessa pesquisa, o período fora do Brasil, em Paris, que seria dedicado à escrita, foi sobrecarregado pelo sentimento de perda e exaustão. A rotina diária de contabilizar mortes indígenas, aliado à omissão sistemática do Estado, exigiu dedicação total ao trabalho na APIB, COIAB e Conselho Terena. Se não bastasse, a perda de familiares neste contexto, ora paralisou, ora acelerou a escrita. Mudou os rumos da pesquisa e proporcionou o trabalho que se apresenta”.
Assim ele arremata: “Esta tese de doutorado carrega vários sentidos que vão desde a dimensão pessoal, passando pela característica política e alcançando a sua importância acadêmica. Ela foi desenvolvida num período muito conturbado para os direitos dos povos indígenas do Brasil. Isto porque, como se verá no desenrolar da escrita, mesmo a Constituição Federal de 1988 tendo consagrado a proteção constituição a tais povos, assumindo o Estado brasileiro o compromisso com os povos originários, presenciamos os mais severos ataques a estes direitos, de forma declarada e institucionalizada, a violência que sempre abateu povos e comunidades, nas profundezas do nosso Brasil, agora se irradia da conduta institucionalizada dos poderes constituídos em Brasília”.
Chamam a atenção notícias seguidas que indicam uma continuada postura de conflito entre a Funai, o órgão governamental incumbido da proteção dos direitos indígenas, o sujeito da diretriz constitucional de reconhecimento e proteção.
Anoto, em artigo de opinião e de divulgação que escrevi sobre esse assunto (https://www.brasilpopular.com/lealdade-ao-dever-constitucional-de-protecao-a-funai-os-indios-e-o-direito/), alguns destaques que chamam a atenção: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/presidente-da-funai-provoca-investigacao-da-pf-contra-servidor-que-defendeu-indios.shtml; https://oglobo.globo.com/politica/presidente-da-funai-diz-que-vai-processar-indigena-que-integrou-comitiva-de-bolsonaro-na-onu-24191574; https://apiboficial.org/2021/10/05/apib-e-dpu-pedem-afastamento-do-presidente-da-funai-na-justica/ .
Esse último registro dá conta de que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressou, no marco dos 33 anos da promulgação da Constituição Federal (CF), com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal de Brasília (JF-DF) para pedir o afastamento do Presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Não só nesse tema, como igualmente na questão do racismo, à luz do que se passa, também como conflito de interesses entre a Fundação Palmares e as mobilizações antirracistas no Brasil, essa postura antidemocrática e hostil à Constituição fica cada vez mais evidente.
Não é uma postura nova, ela se revela em toda vocação autoritária e anti-povo. Ainda que a Constituição atual, artigos 231 e 232 tenha reconhecido a capacidade ativa dos índios, ela manteve o dever de proteção pelo Estado dos direitos originários desses povos, tanto que atribuiu ao Ministério Público acompanhar todos os atos que digam respeito à salvaguarda desses direitos e manteve como obrigatoriedade governamental, não havendo mais o regime de tutela, de exercitar essa obrigação, atribuindo a Fundação Nacional do Índio (Funai) como órgão indigenista oficial responsável pela promoção e proteção aos direitos dos povos indígenas de todo o território nacional.
Ora, é legítimo o repúdio indígena aos posicionamentos hostis que a partir desse órgão, começam a caracterizar a quebra de lealdade ao dever constitucional de Proteção, violando os direitos indígenas.
É preciso lembrar que mesmo no curso da ditadura do regime imposto em 1964 e ainda sob a égide de uma Constituição de traços colonialistas, que não reconhecia a capacidade plena aos indígenas, mantendo-os subalternos e tutelados, nunca se perdeu o horizonte emancipatório de respeito aos seus direitos, usos e tradições originários.
Num artigo que publiquei no Jornal de Brasília, edição de 29/04/1984 –Os Índios e o Direito –trato desse tema. Nele aludo a decisão proferida em mandado de segurança que estudantes terenas, representados por membros da Comissão de Direitos Humanos, da OAB-DF, impetraram contra a Funai, ocasião para que o íntegro juiz Dario Abranches Viotti, da Justiça Federal em Brasília, reconhecendo a incompatibilidade de interesses entre o tutor e seus assistidos, nomeou curador especial um dos advogados, para o fim específico de representa-los na ação. Essa curatela especial coube a mim, um dos advogados da OAB, investido no processo pelo magistrado.
Essa decisão não trouxe, a rigor, eu disse no artigo, nenhuma inovação técnica. A remoção do tutor, no âmbito da legislação cível, ou a interdição de direitos, como pena acessória, nos casos de incompatibilidade manifesta, na esfera penal, implicam na perda do exercício da tutela, constituindo alternativas adequadas para a verificação da responsabilidade do tutor em face de suas obrigações para com o tutelado.
Tanto é assim que, no caso relatado, o Juiz simplesmente adotou a solução sugerida pela lei processual civil, identificando, na situação litigiosa, uma hipótese de colisão de interesses.
O inusitado da medida não chega a ser, sequer, o seu pioneirismo jurisprudencial, embora mereça relevo a determinação, no particular, que resultou em abandono de postura, evidentemente inibida da magistratura brasileira. O que repercute nessa decisão, sem precedente a nível judiciário, é o seu alcance instrumental para a defesa de interesses e direitos diferenciados no seio da sociedade civil, como garantia de acesso à Justiça de segmentos sociais dela alienados.
Com efeito, relativamente às comunidades indígenas, a decisão rompe, definitivamente, o círculo férreo com o qual o tutor especial procura privatizar as relações entre os índios e o Estado, isolando as suas reivindicações específicas do conjunto das lutas gerais da sociedade pelos direitos de cidadania.
A decisão, em todo o seu alcance, aponta para o caráter público dessas reivindicações e confirma o Poder Judiciário na condição de instância privilegiada para a fundamentação jurídica de suas implicações não vislumbradas. Assim, por exemplo, o sentido da fidelidade como categoria cogente do tipo de tutela especial, suscetível de avaliação plena em sua peculiaridade teleológica.
Há, assim, incindível entre cidadania e Justiça. Esse vínculo, aliás, foi acentuado pelo ex-Presidente da OAB-DF Antonio Carlos Sigmaringa Seixas (pai do advogado Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, patrono do Grupo Prerrogativas que reúne juristas pela justiça e pela democracia) em sua bela tese sobre a democratização da justiça, apresentada no 1º Encontro de Advogados do Distrito Federal. Nela, mostra o autor o quanto a estrutura judiciária reflete a face do Estado que a organiza, esclarecendo que a condição para a concretização de uma justiça democrática é a própria reconstrução democrática da sociedade. Tanto mais, diz ele, quanto seja necessário para elaborar, inclusive, teoricamente, instrumentos jurídicos de intervenção compatíveis com a exigência atual da prática da cidadania.
Nesse contexto é que, demonstra Sigmaringa Seixas, se coloca a necessidade imperiosa de ampliação da tutela jurisdicional para a garantia de acesso à Justiça de pretensões fundadas na defesa de interesses difusos ou coletivos da sociedade.
E este é, precisamente, o campo de exercício da concepção atualizada da cidadania, compreendida como espaço de emergência de novos direitos. Na verdade, um processo de busca de reconhecimento de valores, elaborados a partir das contradições da estrutura econômico-social e que reclamam instrumentalização política e fundamentação jurídica, até como direitos humanos. Aliás, conforme o que fez o Juiz Dario Abranches Viotti, aliás um homem conservador, mas um juiz íntegro, cujo desvelo pela justiça mais expõe os maus juízes que oficiam hoje no país (conferir aqui no Jornal Brasil Popular o meu artigohttps://www.brasilpopular.com/os-integros-e-os-maus-juizes).
A tese ganha relevo e alcança por todos esses motivos os requisitos de ineditismo do estudo e revela o salto doutoral que a articulação teoria e prática requer a trabalhos que servem não só para interpretar o mundo mas a orientar ações políticas que se disponham a nele agir para transformá-lo. Cuida-se, lembra Marilena Chauí, a propósito do pensamento dialético de Roberto Lyra Filho e de sua concepção do direito como emancipação direito achado na rua, de abrir a consciência para saltar da história para a política, pela mediação do direito que desaliena, emancipa e humaniza.
Nessa dimensão aberta de uma consciência que se abre reflexivamente para a práxis transformadora, afirma Eloy que “A importância política do trabalho está ligada à realidade social. O tema central é o direito dos povos indígenas e sua luta está ligada às lutas sociais empreendidas no país. Como se verá, estou defendendo neste trabalho, a existência de um campo específico do direito público interno brasileiro que trata dos interesses e direitos dos povos indígenas – que neste momento estou chamando de direito indigenista. Ora, isto tem implicação direta ao desenvolvimento da política brasileira, pois são interesses que estão conflitando e se relacionando com o campo econômico, social e político. Nos últimos anos assistimos temas relacionados aos direitos dos povos indígenas na puta do Supremo Tribunal Federal , do Congresso Nacional (Câmara e Senado) e dos discursos do chefe do poder executivo, presidente Jair Bolsonaro . De igual forma, no cenário internacional fica evidente a importância do tema, pois ocupou as discussões das Nações Unidas ( ONU) , da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Tribunal Penal Internacional (TPI)”.
E, “no que tange a justificativa de ordem científica, o tema merece profunda reflexão por parte da academia. Ao tempo que se reconhece os outros direitos e sistemas de justiça próprio dos povos indígenas, põe-se como missão inicial analisar e estruturar o direito produzido pelo Estado para os povos indígenas (direito indigenista). Para tanto, não está se propondo a fazer uma análise pura da lei, seguindo a ortodoxia jurídica, mas se propõe a fazer uma análise sociojurídica, olhando não apenas para a letra fria da norma, mas também para as forças sociais ( movimento indígena), para desenvolvimento da política indígena e os interesses econômicos que conflitam com tais direitos”.
Na linha da interdisciplinaridade que caracteriza o Programa da UFF, a bibliografia rica arrolada pelo Autor está apta a sustentar a sua tese. Ela, aliás, se faz viva na Banca para conduzir o debate de conteúdo. Eu só sugiro ao Autor que incorpore a sua reflexão futura, quando retorne ao âmbito teórico do pluralismo jurídico e ao constitucionalismo latinoamercano emancipatório participativo, os estudos imprescindíveis de Rosane Freire Lacerda, professora da UFPE e antiga assessoria jurídica do CIMI, juntamente com Paulo Machado Guimarães, quando era seu coordenador o querido amigo Antonio Brand, tão afetuosamente honrado pelo Autor. Com Paulo Guimarães, formulamos nos anos 1980 a tese da legitimidade ad causam da Comunidade Indígena Pataxó Hã Hã Hãe (não os caciques ou capitães, ou a Funai), para fundamentar a retomada de seus territórios tradicionais. Foi um de meus referências para balizar a tese que apresentei na XIII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados, em 1990 (está nos Anais) “Movimentos Sociais – a Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito”, categoria – sujeito coletivo de direito – que se constitui como um dos fundamentos de investigação de O Direito Achado na Rua, em sua concepção e prática.
Refiro-me à Dissertação e à Tese defendidas por Rosane na UnB, que tive o privilégio de orientar: Diferença não é incapacidade: gênese e trajetória histórica da concepção da incapacidade indígena e sua insustentabilidade nos marcos do protagonismo dos povos indígenas e do texto constitucional de 1988. (Dissertação, 2007):
Este trabalho trata da questão da capacidade civil dos indígenas no Brasil e de sua sujeição ao regime tutelar especial previsto e m leis infra−constitucionais. Partindo do pressuposto da ruptura histórica da Constituição Federal de 1988 com o antigo paradigma da incorporação dos índios à comunhão nacional brasileira, busca−se compreender e m que medida tal ruptura introduziu. ou não, alterações na compreensão e na prática dos juristas e das instituições do Estado brasileiro a respeito do tema. No último capítulo é feito um diagnóstico do tratamento dado pela literatura jurídica à questão da capacidade civil indígena tanto na fase da vigência do Código Civil de 1916, quanto a partir do Código Civil de 2002, e como tal discussão se insere no âmbito das práticas dos poderes do Estado. Tendo e m vista as resistências da maioria dos atores jurídicos na compreensão da questão da capacidade civil indígena a partir dos novos parâmetros constitucionais, a pesquisa aponta para a importância da sua análise no âmbito da sistemática adotada pelo Direito Civil Constitucional, para ali potencializar a superação da concepção da incapacidade indígena. Trata−se, enfim, de uma pesquisa documental, fruto das inquietações da autora enquanto advogada atuante há muitos anos na defesa dos direitos indígenas, e que identifica na questão da tutela indígena u m dos problemas ainda enfrentados por aqueles povos na busca pelo respeito à sua autonomia e diversidade étnica e cultural.
“Volveré, y Seré Millones”: Contribuições Descoloniais dos Movimentos Indígenas Latino Americanos para a Superação do Mito do Estado-Nação (Tese, 2014, prêmio Capes):
A tese trata da emergência do modelo plurinacional de Estado na América Latina a partir das demandas históricas dos povos indígenas. São demandas pelo seu reconhecimento enquanto sujeitos políticos e jurídicos autodeterminados, no marco do Estado territorial moderno. O foco central está na importância e contribuição dos movimentos indígenas latino-americanos, em especial os da Bolívia, Equador e Brasil, para a construção de um modelo de Estado que desafie e supere as relações coloniais e eurocêntricas de poder e de conhecimento presentes no modelo de Estado-nação. O trabalho busca responder a duas indagações: (a) o chamado modelo “plurinacional” de Estado consiste no simples reconhecimento da diversidade étnica e cultural da sociedade e na concessão, a estas identidades diversas, de direitos específicos? e (b) o Estado Brasileiro, tendo em vista os reconhecimentos do art. 231 da Constituição Federal de 1988, possui os elementos ou pode ser considerado um Estado “plurinacional”? A hipótese é a de que o Estado plurinacional, longe do simples reconhecimento da heterogeneidade e da concessão de direitos específicos, constitui um modelo cujas bases axiológicas e institucionais são construídas a partir da pluralidade de concepções éticas, jurídicas e políticas próprias das diversas identidades “nacionais”. No caso do Brasil, a hipótese é a de que apesar do reconhecimento da diversidade étnica e cultural expressa no art. 231 da CF/88, o modelo institucional de Estado continua uni-nacional e marcado pelas relações coloniais de poder. O objetivo geral do trabalho é identificar e analisar, a partir das reivindicações e contribuições políticas dos movimentos indígenas e de seus reflexos no movimento do chamado Novo Constitucionalismo Latino-americano, o significado e a importância constitucionais do modelo “plurinacional” de Estado, em especial as possibilidades que este oferece para a ruptura com históricas relações de dominação no interior de Estados marcados pela diversidade étnica e cultural. A análise teórica tem por base os estudos sobre a “colonialidade” (Quijano), em especial as modalidades “colonialidade do poder” (Quijano), “do saber” ou “epistêmica” (Mignolo e Sousa Santos), e “do ser” (Maldonado-Torres). Considerando a ideia de homogeneidade étnica e cultural como subjacente à concepção da identidade necessária entre Estado e nação, e como uma produção ideológica baseada no não reconhecimento da diversidade, afirma-se a incapacidade do Estado-nação na América Latina para dar conta de sua pretensão de promover uma integração social democrática, justa y solidaria. Procura-se demonstrar, na trajetória histórica do constitucionalismo latinoamericano pós-independência, que os Estados uni-nacionais na região desenvolveram-se e constituem-se enquanto espaços de manutenção das relações coloniais de poder, de ser e de saber, que invisibilizam a diversidade étnico-cultural e colocam os indígenas em condições de subalternidade política e epistêmica. A partir daí são analisadas as históricas lutas de resistência indígena a este quadro, bem como as mobilizações em torno da recente construção dos modelos plurinacionais de Estado na Bolivia (2009) e Equador (2008), como expressões de uma atitude “descolonial” (Quijano), fundada na “desobediência epistêmica” (Mignolo) e na “interculturalidade crítica” (Walsh). Conclui-se que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano as demandas indígenas trouxeram a plurinacionalidade como uma tentativa de construção um novo modelo de Estado, em bases descoloniais.
Para a vertente crítica que pensa o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, a hipótese do pluralismo jurídico e a condição da insurgência, são critérios constitutivos do campo, das referências possíveis de teorias de sociedade e de justiça, e de qualquer consideração que se elabore sobre o tema.
Assim, por exemplo, em minhas leituras, articulando questões sociais e possibilidades teóricas, com esse objetivo, quando tratei de esboçar a minha crítica sobre o processo de formação, conforme por exemplo, meus primeiros estudos, se mostrou inafastável abrir um capítulo sobre a pluralidade de ordenamentos e, simultaneamente, na sequência, situar a questão nas articulação entre as condições sociais e as possibilidades teóricas que abrem ensejo para a materialização do jurídico, na tensão dialética entre o instituinte e o instituído.
Algo, anota Marilena Chauí, que abre a perspectiva para a “apreensão do Direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes [que] permite melhor perceber as contradições entre as leis e ajustiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições [o que] significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.
Na consideração dessas interpelações, tanto políticas quanto epistemológicas, nenhum estudo terá sido desenvolvido sob a perspectiva da crítica jurídica e dos direitos humanos, sem que se estabeleça um vínculo de interlocução com a precedência de pesquisas e de análises de Jesús Antonio de la Torre Rangel, na sua sofisticada e engajada concepção de Derecho que Nace del Pueblo como Derecho Insurgente,
De fato, no plano teórico, considerando as principais abordagens, todos os autores e autoras (pelo menos aqueles com os quais mais proximamente mantenho diálogo) – Boaventura de Sousa Santos, Carlos Maria Cárcoca, Oscar Correas, Raquel Yrigoyen Fajardo, David Sanches Rubio, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Luiz Edson Fachin, Antonio Carlos Wolkmer, Salo de Carvalho, José Carlos Moreira Silva Filho conformaram suas aproximações, em diálogo constante e intenso com o professor de la Torre Rangel, entre esses Carlos Frederico Marés de quem adota várias expressões, principalmente quando adverte para o risco da técnica jurídica converter-se emconcepção univocista do jurídico, operando como um ‘procedimento mata Direito’.
Na articulação dos fundamentos do pluralismo e da insurgência enquanto filosofia e teoria do Direito que nasce do povo, assertivamente, “uma nova teoria do Direito”, desde 1986, com El Derecho que nasce del pueblo, depois, em 2012, com El Derecho que sigue nascendo del pueblo. Movimientos sociales y pluralismo jurídico; e agora. 2022, com El Derecho que Nasce del Pueblo como Derecho Insurgente, de la Torre Rangel percorre um caminho disciplinado, imaginativo e criativo que consolida uma referência para o campo.
Nas suas próprias palavras, sempre atualizando “la exposición del pluralismo jurídico como base y mejor entendimento de la propuesta y recogemos varias de las experiências analizadas” nesse formidável percurso, com a novidade que se estriba “em que el pluralismo jurídico lo reforzamos teoricamente; analizamos otras nuevas experiências sociojurídicas” e, com mais pressupostos teóricos, “destacando la categoria de derecho insurgente – direito insurgente – desarrolhada por juristas brasileños militantes em la asesoría jurídica popular, para analizar las experiências de Derecho que nace del pueblo”.
Folgo em me encontrar junto com colegas brasileiros, nesse diálogo interpretativo. Esse diálogo estabelecido desde antes, nas reflexões sobre o tema do pluralismo jurídico, já me inscrevera entre as referências do professor De la Torre Rangel, sob a perspectiva de minha abordagem enquanto direito achado na rua (SOUSA JUNIOR, 2007). Agora, nesta nova obra, o professor De la Torre Rangel me inscreve em suas referências com um ítem de seu livro O Direito Achado na Rua, como fundamento teórico y su relación com otras miradas críticas al Derecho. E o faz, fico satisfeito, porque ele percebe a utilização de uma racionalidade analógica (categoria hermenêutica fundamental na concepção do Autor), que expressa “no una visión unívoca, que pretenda uniformar las posiciones críticas del Derecho desde los empobrecidos em sus derechos, podemos decir que El Derecho Hallado em la Calle es estrictamente derecho alternativo, es outro derecho respecto del derecho positivo, expressión éste muchas veces de injusticia; parte, además, de aceptar um pluralismo jurídico comunitário participativo, que constituye su base, al aceptar el Derecho como uma producción social em processo; tabién pude identicarse com el derecho insurgente, ya que em ciertos momentos los sujetos sociales oponen al Estado y a las clases sociales hegemónicas um derecho em resistência y lucha política”.
Uma mais estendida e circunstanciada aproximação entre O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, foi apresentada pelo professor De la Torre Rangel, durante o Seminário Internacional O Direito como Liberdade 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, em sua contundente comunicação Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno.
As experiências registradas no México, tendo como base as lutas sociais por emancipação, têm o caráter de uma revisão crítica da historiografia do país, na percepção da insurgência e do processo instituinte de direitos, repondo o tema do constitucionalismo desde baixo, nas anotações de planos e acordos estabelecidos nos embates para estabelecer projetos de sociedade. Relevo para os acordos de San Andrés, pela conformação constitucional que os caracterizam.
É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz de bate”.
Para o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder”.
Ao final uma nota para novas aproximações a partir do diálogo que a instigante reflexão do professor Jesús Antonio de la Torre Rangel provoca, considerando que a sua obra atual, em ser uma continuidade adensadora de pressupostos epistemológicos para a crítica jurídica, é um completo catálogo de experiências confirmadoras do direito alternativo, do uso alternativo do Direito, do pluralismo jurídico e, ao fim e ao cabo, do direito insurgente, que surge do povo, pela emergência de sujeitos coletivos de direitos, que se inscrevem nos movimentos sociais, protagonistas de sua própria experiência de humanização e de emancipação, já que o humano é projeto, experiência na história: “El derecho insurgente, del que trata este libro, forma parte de um processo de liberación de la alienación u opresión; se opone a la legalidade de la injusticia. Em el texto hemos destacado, sobre todo, las luchas indígenas y campesinas, por la autonomia y la defensa del território, como uma práctica jurídico-política de pueblos índios y campesinos; práctica en que [se materializa] el derecho que nace del pueblo como derecho insurgente”, tanto como aplicação alternativa a partir do jurídico instituído, com abertura hermenêutica para a expansão de categorias e de conceitos, quanto na perspectiva para a emergência de outro direito, este propriamente insurgente, orientado por outro projeto de sociedade e de interrelações re-descritas a partir das lutas sociais para um direito verdeiramente emancipatório.
A tese, tal a conclusão de seu Autor, “trouxe um somatório de reflexões forjadas a partir da experiência. No caso dos povos indígena esta experiência é a resistência qualificada pelo contínuo processo de fricção jurídico estatal. Pois mesmo sendo povos autônomos, detentores de sistemas próprios, trava-se diariamente um árduo processo de entender e se fazer entender. Do lado dos povos indígenas a abertura dialógica cultural, mas do lado do Estado, o autoritarismo racional. Um dos desafios postos na atualidade mundial é entender as identidades culturais, saber lidar com a diferença, respeitando as cosmovisões do outro. Neste quesito os povos indígenas têm muito a oferecer e ensinar. Ao se propor entender o direito imposto e produzido para os povos indígenas e como manejá-los, mesmo ciente que esta estrutura jurídica foi projetada para atender os interesses do capital, estamos chamando atenção para a dimensão indígena de se relacionar com os mundos e eleger projetos políticos no único intuito de continuar existindo enquanto povo diferenciado e capaz de transitar entre diversos sistemas. Portanto, este esforço reflexivo individual de um advogado demonstra de igual modo um ganho coletivo, baseado na insistência em entender e fazer seus símbolos serem entendidos”.
Não é pouco, considerando o acervo corrente de poderosos enunciados que os povos indígenas, por seus advogados, Eloy Amado com grande capacidade de locução, lograram fixar na mentalidade dos principais agentes em fóruns nacionais e internacionais que discutem os direitos constitucionais, fundamentais, convencionais e das gentes. Não obstante o obstáculo do positivismo, mencionado por Antonio Augusto Cançado Trindade, duas vezes presidente da CIDH, para que os enunciados internacionais de direitos humanos seja inseridos nos ordenamentos nacionais; ou, a própria abertura cognitiva dos magistrados, demarcava o ministro Lewandowiski na presidência do STF para assimilarem matérias relativas a direitos humanos ou decisões de cortes internacionais nesse campo, que não aprenderam nas escolas, as primeiras, ou solenemente desconhecem para poder aplicar. Condição para o reconhecimento do direito que nasce na aldeia, a avançada formulação que o próprio Eloy Terena fez por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua.
É por isso que – diz Eloy – que a tese “parte da análise situacional do desenvolvimento da política indigenista, passando pela constitucionalização dos direitos e defende-se uma teoria do direito indigenista. Na verdade todo esse esforço intelectual é para fazer os brancos entenderem o que nossas lideranças estão há muito tempo dizendo. Não se trata de privilegiar os dogmas jurídicos em detrimento das categorias indígenas, mas sim, de reduzir a dimensão indígena a rótulos do mundo ocidental com o único objetivo de estabelecer diálogo, se fazer entender, e quem sabe, ser correspondido”. Nem se render, eu acrescento, à elegância mistificadora, encantatória, cântico de sereias, dos neo-constitucionalismos e pós-positivismos, a cujo embalo temos assistido adormecer altas reputações da crítica jurídica, para júbilo gratificante do agro-negócio. Vimos isso acontecer agora no debate em curso no STF.
Essa é uma pergunta implícita que poderia ser feita ao Autor da Tese, mas que nos fazemos a nós próprios todos e todas nós. A resposta não será a que ele nos possa oferecer aqui ao cabo da arguição. Mas a que virá, vitoriosa ou não, ao final do julgamento da tese hoje apresentada no STF sobre a precedência do direito originário dos povos ao direito do Estado. A alternatividade abriu possibilidade para a emergência desse direito? E virá também do Tribunal Penal Internacional quando julgue a questão já apresentada, em face de violações de direitos dos povos originários, que caracterizam a atuação do presidente da República por violação de seus direitos pré-estatais, pré-colombianos, pré-cabralinos, numa ação que se caracteriza como crime de lesa humanidade.
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55