por José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
A metáfora é atribuída a Pablo Neruda, poeta chileno, Prêmio Nobel de Literatura, pensamento engajado na luta emancipatória e pelos direitos humanos: “Podrán cortar todas las flores pero no podrán detener la primavera”. Perfeita para marcar, na história recente do Chile, que a exceção e a necropolítica não detêm o renascer da Democracia.
Para Manuel Cabieses, jornalista, ex-diretor da revista Punto Final, dirigente sindical, que foi da direção do MIR, “A nova Constituição abre um caminho para os direitos sociais se tornarem realidade, por meio da luta organizada”. Para ele, “a vitória do Apruebo – com todas as insuficiências da nova Constituição – abre um caminho para tornar realidade, mediante luta organizada, os direitos sociais em saúde, educação, salário e moradia, e avançar depois em objetivos maiores. Todos os esforços da dizimada esquerda chilena deveriam se concentrar no objetivo do 04 de setembro. Se não procedermos desta forma, um retrocesso antidemocrático é previsível” (https://www.ihu.unisinos.br/620279-chile-a-nova-constituicao-abre-um-caminho-para-os-direitos-sociais-se-tornarem-realidade-por-meio-da-luta-organizada-afirma-manuel-cabieses).
O processo da Constituinte foi iniciado em 2019 após uma série de manifestações que levou milhões de pessoas às ruas e foram duramente reprimidas pelo governo chileno. Em outubro de 2020, foi realizado um plebiscito no país, no qual 78% dos participantes -5,8 milhões de votos – disseram “sim” para uma nova constituição, para substituir a Carta Magna vigente, resquício da ditadura de Augusto Pinochet.
O texto elaborado possui 390 artigos e está dividido em dez eixos. Todo o conteúdo da nova proposta de Constituição só foi incluído após aprovado por, no mínimo, 75% dos e das constituintes, eleitos e eleitas por voto popular e com paridade de gênero. O primeiro artigo diz: “O Chile é um Estado social e democrático de direito. É plurinacional, intercultural, regional e ecológico”.
Começa agora a campanha para o referendo de 4 de setembro que definirá o destino da nova constituição, com líderes políticos tradicionais inclinados a rejeitá-la, enquanto movimentos sociais e o mundo da cultura levantam a bandeira da aprovação.
A dois meses da consulta em que os mais de 15 milhões de cidadãos responderão se aprovam ou rechaçam o texto, “será novamente o povo quem terá a última palavra sobre o seu destino”, disse o presidente Gabriel Boric, ele próprio uma floração das grandes mobilizações iniciadas com os Mapuches e os estudantes, que está fazendo surgir a primavera democrática em toda a América Latina. A próxima etapa será o Brasil.
Aprovada ou rejeitada, a nova Constituição alarga os ciclos constitucionais que se desenvolvem num contínuo rumo à superação dos paradigmas do constitucionalismo monocultural e da colonialidade, com vistas à instituição de formas constitucionais pluriculturais.
Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (O Novo Constitucionalismo Achado nas Ruas da América Latina, in Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos, Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.
Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo (El Derecho en América Latina: un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Colección Derecho y Política. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011), há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.
Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.
A novidade que vem do Chile, aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.
Com Gladstone Leonel Silva Filho, eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone and GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José, o artigo “A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966. https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331. Destaco o resumo do artigo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.
Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.
“A Constituição emanada da Constituinte chilena é um retrato em 3 por 4 da nova esquerda: a coleção completa de suas utopias, doutrinas e dogmas. Se for aprovada em plebiscito, destruirá o governo de esquerda de Gabriel Boric – e qualquer governo que o suceder” (Demétrio Magnoli, A Constituição da Nova Esquerda, https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2022/07/no-chile-a-constituicao-da-nova-esquerda.shtml). São declarações como essa que me animam a voltar ao tema para um mergulho sobre as novidades desse novo ciclo que se instaura a partir do constitucionalismo latino-americano. Novidades alvissareiras, confirmadas pelo horror que já se manifesta em reações do pensamento neo-colonial nutrido por vocações necropolíticas e apego à exceção.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).