Por Vannessa Carneiro
Professora do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), da Universidade de Brasília – Brasil
Doutoranda do Programa “Human Rights in Contemporary Societies”, do Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra – Portugal
Escrevo com esta raiva e tristeza. Profundas.
Não trabalho com povos indígenas. Trabalho com Direitos Humanos, especificamente com o tema da Educação em Direitos Humanos. Mas, a última quarta-feira, dia 15 de junho, me atingiu bem no peito. Feriu minha alma; me feriu, me doeu, me fez sangrar.
Me revoltou e agora sigo “apenas” triste. Triste e indignada. Sabendo que essa mesma revolta segue, e ainda seguirá perene, em muitos outros corações. Raiva e medo.
Duas pessoas que lutavam por seus sonhos, suas causas, suas paixões. Que viviam seus projetos de mundo. De um mundo melhor, mais justo. Assassinadas. Assassinadas, não: DESTRINCHADAS. Esquartejadas.
Entenderam!?
Es/ qua/r/ te/ jad/o/s…
Quer dizer: Desfaçelados. Desfarelados. Irreconhecíveis.
(ou melhor, identificados somente pela arcada dentária).
Peças e partes de corpos mortos com munição de caça, parece que depois queimadas – e “ao que tudo indica”, para usar um vocabulário juridicamente “neutro” – enterradas, escondidas. Por, “parece que”, três homens. Um pescador indicou o lugar dos corpos… Três pessoas que agiram sozinhas… Sem nenhum orquestração?! Assim, tão bem premeditado?!
E como você (pessoalmente) se sente ao ler isso?
E como nós (como sociedade) nos sentimos ao viver isso?
CRUEL. DEGRADANTE. UM AVISO: UM RECADO.
Não conheci Bruno Pereira, embora poderia ter acontecido. Moramos na mesma cidade, Brasília, compartilhamos amigos em comum… Vizinhos de quadra, colegas de trabalho. Suas crianças poderiam ter brincado com a minha filha em um dos nossos parques.
Não conheci Dom Phillips, embora seu compromisso e amor pode ser percebido nas falas e nos olhos de duas mulheres; sua esposa e sua irmã. A esposa pediu que encontrassem com celeridade “o amor da sua vida”. E isso me abalou profundamente.
A perda de grandes amores
A perda dos/as filhos/as
A perda de pessoas que sonhavam
Um sonho de um novo mundo, de um outro mundo
A perda de protetores/guardiões da natureza, da Terra
Que defendiam, e que VIVIAM, o que acreditavam, o que amavam
Que simplesmente se entregaram e foram até as últimas consequências por acreditar que um outro mundo era necessário, urgente, possível…
Entretanto;
O céu cai. O céu já caiu. O céu continua caindo, novamente. Numa iminência constante.
Mortes políticas, crimes políticos – que são esvaziados de sua politicidade, tratados como querelas pessoais; E o mundo segue perdendo sentido. Deixando para trás muitas/os outras/os. Tantas e muitas e outras diversas perdas irreparáveis.
Acabei de conversar ao telefone com um amigo do Ibama, que trabalhou com o Bruno. Ele me disse que o Bruno tinha um trabalho, uma agenda, que:
“Além de ser muito específica, é muito complexa, muito difícil, muito arriscada. Então, a pessoa tem que gostar, tem que entender, tem que ir lá para dentro. Ele era a última barreira entre os povos isolados, os que não querem contato, com esse avanço da pressão do garimpo, da caça, da madeira, [da pesca, do tráfico etc.]. Ele era a última barreira. Ele foi o cara que segurou até hoje esse contato. Esse embate. […] Aí, agora sem ele, não tem essa pessoa. Até que daqui a vários anos tenha um concurso na Funai e entre alguém com a cabeça, com a coragem, com a determinação… É difícil. É muito difícil. […] É difícil achar uma pessoa assim, que deixa a família por uma causa, como ele.”
Para rebaixar, diminuir, descredibilizar, mentir;
Apequenar, banalizar a situação/o fato.
Reduzi-lo (ou, paradoxalmente, expô-la por ato falho) para mostrar talvez a dimensão real que tenha: “Uma aventura não recomendada. Tudo pode acontecer.” Realmente, essa é a verdade: suas presenças não eram recomendadas.
O atual Chefe do Executivo segue à imprensa dizendo:
“[…] os dois resolveram entrar em uma área completamente inóspita, sozinhos, sem segurança, e aconteceu o problema…” ;
“[…] mas, por exemplo, esse inglês, ele era malvisto na região, porque ele fazia muita matéria contra garimpeiro […]. Então, aquela região lá, não gostavam dele. Ele tinha que ter mais do que uma atenção redobrada para consigo próprio”;
“[…] é muito temerário você andar naquela região sem estar devidamente preparado, física, mente, e também com armamento”.
Um compatriota, um cidadão do seu País, um funcionário público do seu Estado;
Um estrangeiro, um cidadão que tinha o direito inviolável de proteção à vida.
Questionado sobre os desaparecimentos específicos, retrucou: “Eu não sei ao certo, Leda, mas eu acho que em torno de 60 mil pessoas desaparecem no Brasil por ano…”.
Essa é a resposta do Chefe de Estado e de Governo. Mais uma vez, um discurso de ódio. Estupidez, maldade, falta de responsabilidade. Não penso aqui em culpadas/os, apenas acredito ser importante pensarmos em responsáveis (por ação e omissão). E se entende por “responsável” mais do que a única, e principal, “responsabilidade” de lamentar…
E continuamos a lamentar e a ignorar…
A posição da nota de luto oficial do Brasil, pela Funai, não menciona o repúdio vinculado à brutalidade dos crimes, não trata o caso como político, nem faz indicações, ou sinais, disso. Para podermos pensar/planejar/construir outras/novas medidas concretas sobre o que acontece hoje no Vale do Javari (e em tantas outras terras indígenas).
Apenas ouço/leio/vejo sucateamento: (cortes orçamentários, perseguição de funcionárias/os públicos, substituições/trocas e recorde de cargos vagos…) e silêncio.
Desmonte, ampliação das infrações ambientais…
Naturalização da falta de fiscalização e do crescimento do crime organizado.
E satirização: desaparecimentos e mortes brutais acontecem todo dia e em todo Brasil…
ATÉ QUANDO????
Como Davi Kopenawa bem diz: nosso mundo, o mundo dos brancos, dos nape, é o mundo das mercadorias. Nossa sociedade é a sociedade da barganha. Tudo é consumo. A vida tem preço. As vidas têm seus preços.
Pergunto: Quantas vidas, quantos anos, quanto estudo, quanta técnica, quanta prática, quanta coragem e quanto amor vai levar para (não) substituirmos Bruno e Phillips?
Como esse meu amigo disse: realmente, é muito difícil de substituir. Mesmo sabendo que todas/os somos insubstituíveis. No caso deles, o tempo é ainda mais largo.
Hoje, domingo, dia 19 de junho, fui para rua – para o Eixão Norte –, participar de um ato simbólico de protesto in memoriam. Para não esquecer. Para não esquecermos.
É essa a pedagogia da infâmia que temos o dever de denunciar. “Não gostavam dele…”; Por que mesmo?! Ah, deveriam estar armados e preparados física e psicologicamente…
Uma anedota no mínimo curiosa: amplia-se o discurso de armamento da população, enquanto para órgãos como a Funai o ideal é o desarmamento de suas/seus agentes…
Bem, esta dita “área completamente inóspita” – onde se é “muito temerário andar” –, e até agora sem errata ou pedido de desculpas, não era um ambiente turístico, mas, sim, o palco da VIDA de alguém que vivia e lutava lá há pelo menos 10 anos. Que não só reconhecia a região muito bem, como também era muito bem reconhecido dentro dela. Liderava excursões de fiscalização, de proteção, de divulgação. Falava mais de quatro línguas nativas de lá. Servia como um essencial guia e apoiador de operações dado seu profundo conhecimento. VIVIA A FLORESTA e cada curva de seu rio.
Bruno e Phillips sabiam de toda a “economia” ilegal que rondava aquele território. Sabiam e denunciavam. Denunciavam, por meio da Univaja – que segue, ao contrário do que a Polícia Federal alega preliminarmente, dizendo que o crime tem, sim, mandante: Organizações criminosas; donos do tráfico (cocaína, madeira, ouro/garimpo, pesca, caça ilegal etc.). Por isso, eram (e muitas/os ainda seguem sendo) ameaçados.
Segundo a Univaja, em distintos ofícios enviados a várias autoridades competentes: “Descrevemos nomes dos invasores, membros da organização criminosa, seus métodos de atuação, como entram e como saem da terra indígena, os ilícitos que levam, os tipos de embarcações que utilizam em suas atividades ilegais”.
Junto com Bruno, perdemos uma das últimas camadas/muros (brancos, do lado/da parte do poder do Estado – e não do Governo), que auxiliava a blindagem daquela parte da floresta contra o caos de toda a fumaça dos seres das epidemias.
Junto com Dom Phillips, perdemos um olhar atento, comprometido e honesto pelo grito e pela denúncia ampla, para fora. Perdemos seu livro e todas as informações coletadas. Hoje minimizadas: um silenciamento compactuado, por meio de vistas grossas.
Como cidadã brasileira, mulher e mãe;
Que respeita e ama a Natureza
Que respeita e ama a Floresta
Que respeita e ama os Povos Indígenas
Que respeita e ama pessoa que lutam contra todos os tipos de injustiças e de barbáries
Não posso ficar sem me pronunciar e dizer que não é somente lamentável essas vidas tiradas… Lamentável é pró-forma…
É ULTRAJANTE, É INDIGNANTE, É REPULSIVO
Essas e tantas outras mortes.
E NÃO ME INTERESSA SABER QUEM MATOU, MAS QUEM FOI QUE MANDOU MATAR. Como disse Sônia Guajajara: “Quem MANDOU MATAR?”
A QUEM BENEFICIOU ESSAS PERDAS? O QUE SE QUERIA ESCONDER, ACABAR, DIZIMAR?
QUEM É CONIVENTE (TACITA OU EXPLICITAMENTE) COM ESSES ASSASSINATOS?
QUEM COMPACTUA NA TEIMA EM PERMANECER COM OLHOS FECHADOS?
QUEM…?
Por cada indígena assassinada/o – Que segue RESISTINDO há mais de 500 anos, como diz Ailton Krenak
Por cada apoiadora/r branca/o morta/o
Por cada defensora/r da fauna, da flora,
A FLORESTA NÃO TEM PREÇO!
É essa a pedagogia da vida que quero construir e vindicar! A da revolta e a da raiva como um ato político necessário, sempre! Que mobiliza além. Como dizia Paulo Freire.
É essa a pedagogia da politicidade em cada ato social que escolhemos ter/pontuar, nos posicionando sempre que necessário, sempre!
Que mostra de que lado eu estou! Pois, aqui há lados! Pró-sistema ou anti.
Não só neste caso injusto, mas em muitos outros casos!
É que, para mim, esse foi o pedaço que parou na garganta e que me fez gritar!
De dor, de inflamação, de indignação! Bruno e Phillips poderiam ser eu.
Mais do que “meus sentimentos” ou desejo de “conforto ao coração” das famílias. Minha resposta é que:
EU REPUDIO ESSES ASSASSINATOS ESQUARTEJADOS! ME INSUBORDINO A ELES.
Seis homens da Polícia Federal, em Tabatinga, para uma fronteira de 8,6 milhões de hectares… Indicam-na como quase o tamanho de Portugal.
LACUNAS QUE FICAM PARA/EM TODAS/OS E EM TODOS OS LADOS.
Fragmentos de partes e peças do tecido social: Famílias, sociedade, Estado.
Tragédias como essa que, com certeza, infelizmente, se repetirão… Sem dúvida.
Assassinatos de lideranças e/ou grandes especialistas que não cessam.
Mas que devem SIM acender nossa MEMÓRIA, nossa indignação, que devem sim nos INFLAMAR, nos MOBILIZAR para REPUDIAR os fatos a cada momento em que ocorrem;
Nossa vontade de busca pela verdade e pela responsabilização.
Nossa vontade da força coletiva, cada vez maior, para juntas/os gritarmos por justiças;
Legal, jurídica, social, econômica, cognitiva.
Não basta falar, e sim fortalecer, concretamente, as lutas pessoais e coletivas. E é a nossa certeza de que teremos sim que seguir cobrando, para sempre, e em qualquer Governo, que nessa caminhada devemos lembrar das vidas de antes, de agora e de depois. E por isso a essencialidade de RESPONSABILIZAÇÃO e REPRESENTATIVIDADE.
Os fatos estão aí. É “apenas” requerido olhar com os olhos “de ver”.
Mas, é tudo muito triste.
Pelas vidas dos que estão morrendo por um/neste sistema já morto.
Fontes consultadas:
- Vídeos
- Reportagens:
https://alicenews.ces.uc.pt/index.php?lang=1&id=39285
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/06/5015935-governo-perdeu-controle-da-regiao.html
*Último acesso em 19 de junho de 2022.
Excelente artigo, minha filha, convivo com este tipo de atrocidade, desde que ingressei, por concurso público no Senado Federal, e fui trabalhar no gabinete do Senador Jamil Haddad, do PSB, em 1989. Lá, recebíamos fotos, nítidas, coloridas de defensores e povos da floresta, população ribeirinha e agricultores, cujas mulheres, grávidas, tinhas seus ventres arrancados, expostos, e o feto, com o cordão umbilical, ainda, preso à mãe, espetado em uma árvore e a mãe, embaixo, caída, morta, estuprada, destroçada. Ainda vigia o Regime Militar e, embora fizéssemos, centenas de denúncia, o governo tinha o mesmo posicionamento. É triste, parabéns pelo artigo. Sinto-me, também, ultrajado. E, embora me doa dizer isso, muitas barbaridades ainda estão por vir.