30 anos da Justiça Eleitoral no Amapá: homenagem, reflexões e desafios para as próximas eleições a partir do olhar d’O Direito Achado na Rua

Por João Guilherme Lages Mendes

Em fevereiro de 2022 a Justiça Eleitoral do Amapá comemorou 30 anos de instalação. Nessas três décadas vale primeiramente ressaltar o imensurável trabalho desempenhado por todas e todos os servidores, colaboradores (em especial mesárias e mesários), magistrados, membros do Ministério Público e advogados, que ao longo desse período se dedicaram a fazer desta instituição a guardiã máxima do regime democrático neste rincão brasileiro, cuidando da organização do processo eleitoral, trabalhando, incansavelmente, para garantir o respeito à soberania popular e à cidadania, laborando em prol de aproximadamente 524.830 eleitores (0,356% do eleitorado brasileiro, o penúltimo menor do país), conforme dados disponíveis no sítio eletrônico do TSE (critério de pesquisa no google: Estatísticas do eleitorado – Consulta por região/UF/município), assegurando, enfim, o prestígio e a credibilidade que goza esse relevante órgão do Poder Judiciário nacional.

A importância deste reconhecimento se deve ao empenho na superação dos incontáveis desafios decorrentes de fazer eleição no meio da selva amazônica e ao longo da costa amapaense, incluindo as 2.500 ilhas do arquipélago marajoara, locais aonde a internet não chega direito, mas mesmo assim o resultado final das eleições é quase instantâneo.

Testemunhei inúmeras dificuldades vencidas, como, por exemplo, encontrar o ponto certo no meio do rio para transmitir dados via satélite para totalização de votos; a cada dois anos a logística de guerra para deslocamento de urnas e transportes de eleitores por estradas vicinais em chão de terra batida e por rios e igarapés quilométricos, onde aqui e acolá é preciso impor a força física para superar barreiras naturais de pedras (cachoeiras e corredeiras) e troncos de árvores caídos ao longo do percurso; e mais recentemente fazer a eleição acontecer num contexto binário de apagão e pandemia. Por isso minhas congratulações especiais a essas mulheres e homens que não medem esforços para tudo dar certo ao final.

Registros e elogios a parte, as três décadas nos impõe uma reflexão crítica sobre o passado, o presente e o futuro da jurisdição eleitoral, e quero fazê-la com a autoridade de quem vivenciou parte desta história, participando de eleições com as urnas de lona e depois com as eletrônicas, pois cheguei ao Amapá em 1991, antes, portanto, da instalação do TRE/AP, quando ainda éramos vinculados à Justiça Eleitoral paraense, levando em consideração a necessidade de repensar um modelo de direito coletivo, democrático e plural capaz de colher na rua os elementos indispensáveis para a contínua reconstrução de um Direito a partir da legítima organização social da liberdade, como defendia Roberto Lyra Filho (in O que é direito?, de 1982) e sustenta seu discípulo José Geraldo de Souza Júnior (in Série O Direito Achado na Rua e Sociologia Jurídica, ambos de 2002).

A instalação da Justiça Eleitoral no Amapá ocorreu num período de tenebroso descrédito da população brasileira em face do Poder Judiciário nacional. Basta consultar as matérias jornalísticas da época (1992) para aferir que tratavam o Judiciário como uma caixa preta, uma instituição lenta, burocrática, hermeticamente fechada e desnecessária na opinião de muitas pessoas. Era preciso, de fato, combater a “crise de instância”, que tanto mal estar causava em parte da comunidade jurídica nacional e da sociedade de modo geral. Neste cenário é que fomos concebidos.

Muito esforço foi realizado no âmbito dos poderes constituídos para alterar esse quadro negro. Em dezembro de 2004, por exemplo, os presidentes da República, Luiz Inácio Lula da Silva; da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha; do Senado Federal, José Sarney, e do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, firmaram o I Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano, através da assinatura de um documento que estabelecia 11 compromissos fundamentais que visavam combater a morosidade dos processos judiciais.

O Pacto representou uma parceria entre os Três Poderes da República que visava contribuir para uma democracia sólida e consiste num significativo esforço conjunto em prol da modernização do Judiciário, cuja ação resultou na aprovação da Emenda Constitucional 45/2004, que dispôs sobre a Reforma do Judiciário, merecendo destaque a instalação do Conselho Nacional de Justiça, e na criação da Secretaria de Reforma do Judiciário no âmbito do Ministério da Justiça, com a meta de colaborar, articular e sistematizar propostas de aperfeiçoamento normativo e de acesso à Justiça.

Deu certo. O Poder Judiciário recebeu um up grade e ganhou em credibilidade popular. No tocante a Justiça Eleitoral, dois anos depois da Reforma do Judiciário, após as eleições de 2006, era a instituição pública em que a população brasileira mais confiava. Uma instituição eficiente e ágil, prestadora de serviços de qualidade, conforme levantamento feito pelo Instituto Nexus – Centro de Informação Estratégica, a pedido da Fundação Padre Anchieta/TV Cultura, para avaliar a imagem deste ramo especial da jurisdição federal e aferir a efetividade da campanha Vota Brasil 2006 produzida pelo TSE com o objetivo de conscientizar o eleitor e valorizar o voto.

A pesquisa também atestou que a urna eletrônica era uma unanimidade nacional. O levantamento apurou que 97,7% dos entrevistados aprovavam a utilização da urna eletrônica nas eleições brasileiras. Outros 88% dos entrevistados afirmaram não ter enfrentado dificuldades na hora de votar, conforme se vê no Google, utilizando como critério de pesquisa a expressão “Justiça Eleitoral é instituição mais confiável, diz pesquisa”.

Porém, quinze anos depois, o contexto é outro e demasiadamente preocupante. Observamos nossa credibilidade abalada em face de declarações irresponsáveis e infundadas, por parte daquele que se beneficiou do sistema para galgar o poder. Mesmo após ser eleito, o Presidente Jair Bolsonaro tem feito, nos últimos três anos, reiteradas declarações colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral, daí porque a pedido unânime dos Ministros do TSE foi incluído no inquérito das fake news, que tramita no STF (Inq. 4781), instaurado para apurar a divulgação de informações falsas motivado por interesses escusos.

A apuração contra Sua Excelência leva em conta a prática, em tese, de onze crimes supostamente praticados após transmissão em redes sociais e em canal oficial de TV, através da qual o Presidente formulou ataques, sem provas, às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral do país, maculando a imagem da Justiça Eleitoral, colocando em dúvida a isenção de Ministros do STF e o regime democrático prevalente no Brasil e não fosse a intervenção intimorata do Ministro Barroso, Presidente do TSE, o estrago teria sido irremediável.

É diante deste cenário de ‘discurso de ódio’, de manifestações que atacam e incitam os outros (que se intitulam “nós”) contra determinados grupos sociais (que chamam de “eles”), apregoado pelos arrogantes, prepotentes e incapazes de dialogar com o plural e coletivo, que vivenciamos o hoje e realizaremos as eleições deste ano, no amanhã. Mas quem é da paz certamente dirá não à violência de gênero e de todas as suas formas, dirá não à misoginia, à homofobia, dirá sim à dignidade, à liberdade, aos direitos fundamentais, aos deveres essenciais de cada pessoa, da família e da própria sociedade constitucional: livre, justa e solidária. Com base nesses valores que devemos atuar.

O que esperar então da Justiça Eleitoral neste ano de 2022?
O primeiro desafio será proteger e prestigiar a verdade sobre a integridade das eleições brasileiras. Vivemos há mais de 30 anos no Estado de Direito democrático à luz da Constituição Federal de 1988, no qual diversos governos e governantes sucederam e foram sucedidos. Para tanto se deve ter em conta que não existe democracia forte sem uma imprensa livre e um judiciário independente, única maneira de assegurar a soberana vontade popular. Fortaleçamos então essas instituições ao invés de investir contra elas.

Neste sentido, a desinformação não tem a ver apenas e somente com a distorção sistemática da verdade, ou seja, com a normalização da mentira. Ela vai além e diz também com o uso de robôs e contas falsas, com disparos em massa, a insistência calculada em dúvidas fictícias, bem ainda com as enchentes narrativas produzidas com o fim de saturar o mercado de ideias, elevando os custos de acesso a informações adequadas. Tal problema pode ser enfrentado a partir não apenas do Programa de Enfrentamento à Desinformação estruturado e em pleno funcionamento na justiça brasileira, mas também da aproximação da sociedade e da imprensa verdadeira com a Justiça Eleitoral, numa prática colaborativa a partir da práxis d’ODANR – O Direito Achado na Rua, cabendo às lideranças e instituições repelir a cegueira moral e incentivar a elevação do espírito cívico e condutas de boa-fé respeitosas. Estamos laborando nisso e em outra oportunidade falo mais a respeito.

O segundo desafio será fortificar as próprias eleições, que são a ferramenta fundamental não apenas para garantir a escolha dos líderes pela soberania do povo, mas também para assegurar que as diferenças políticas sejam resolvidas em paz pela escolha popular. Como destacou o Ministro Edson Fachin ao assumir recentemente a Presidência do TSE “A democracia, casa acolhedora do plural, tem espaço suficiente para todas as cosmovisões. Estende liberdades a todos e a todas: o conservador democrata, o liberal democrata, o progressista democrata, o centrista democrata, independentemente das diferentes convicções que levam no coração, preservarão, juntos, a prerrogativa constante à correção de rumos, que a rigor corresponde a não desistir de melhorar o país”.

O terceiro desafio será garantir o respeito ao resultado das urnas, desafio que transcenderá as atribuições da Justiça Eleitoral. Esperamos, entretanto, não experimentar no Brasil a selvageria vista na invasão ao Capitólio americano, ocorrida depois que o candidato derrotado Donald Trump convocou seus partidários a se reunirem em Washington DC para protestar contra o resultado da eleição presidencial de 2020, fomentando uma invasão baseada na alegação falsa de que houve fraude nas votações. O presidente foi acusado de incitar a multidão e depois resistiu a ideia de mandar tropas da Guarda Nacional para restaurar a ordem na capital. Resultado: cinco pessoas mortas (quatro manifestantes e um policial), dezenas presas e outras tantas feridas, sem contar nos quatro policiais presentes durante os eventos que se suicidaram nos sete meses seguintes (Disponível em “Four officers who responded to U.S. Capitol attack have died by suicide”).

Uma eleição é um feito de muitos parceiros e o Direito não é, ele se faz num processo histórico de libertação. Aquela e este são frutos de realização dos servidores da Justiça Eleitoral, dos voluntários, barqueiros, motoristas, de quem prepara o lanche e os locais de votação, dos integrantes das juntas eleitorais, dos administradores de prédios ou locais de votação, passando pelo papel importante e imprescindível das Forças Armadas, especialmente na tarefa de levar as urnas às regiões mais distantes do país, e, ainda, das forças policiais que auxiliam na segurança das eleições, mas principalmente das brasileiras e brasileiros que votam e são votados, independentemente de classe social, credo religioso ou cor. Somos todos brasileiros, indistintamente, e, indiscutivelmente preocupados com nosso futuro, embora cada qual com seu ponto de vista e formação filosófica e moral, fruto de nossa história individual, que tem de ser respeitada.

Quem sabe as bases teóricas e práticas d’ODANR não seriam um meio eficiente e eficaz para solucionar muitos de nossos problemas jurídicos, sempre com os olhos voltados ao outro, especialmente espoliados e oprimidos, numa utópica intenção de construir a nação democrática ideal que todos almejam? Para isso a lição do mestre Lyra Filho se protrai no tempo: “o Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação – enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais”!

  • João Guilherme Lages Mendes

    Professor universitário da UNIFAP, Graduado pela UFPA; Mestrando da UnB, Desembargador do TJAP e Vice-Presidente e Corregedor Eleitoral do TRE/AP

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