Era noite e nós cantávamos (parte II)

Por Sérgio Cintra

 

No festival de 1967, mais conhecido como o festival da virada, “Ponteio”, de Edu lobo e Capinam, leva “O Sabiá de Ouro”. Contudo, ficam eternizados o segundo e terceiro lugares: “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, que, aliás, declarou que os versos “O rei da brincadeira – ê José/ O rei da confusão – ê João/ Um trabalhava na feira – ê José/ Outro na construção – ê João” foram um erro e em nada contribuíram para a tomada de consciência do brasileiro; e “Roda Viva”, de Chico, que entranharam na alma dos que fazem da existência um pouco mais que meros rótulos e conseguem apalpar a poesia que habita os versos “Tem dias que a gente se sente/ como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/ Ou foi o mundo então que cresceu”.

Veio 68 com mais turbulência, a França exportava ideais anárquicos e revolucionários do famoso “maio de 68”, parte da esquerda brasileira havia aderido à luta armada. A guerrilha urbana ia desde a expropriação de capital (para a direita, assalto) até a execução de militares estadunidense a serviço do regime vigente. O Brasil era invadido por eletrodomésticos, a classe média trocava liberdade e democracia por bugigangas, os guerrilheiros estavam irremediavelmente destinados à derrota que viria no início da década de 70, com a intensificação da repressão e o “milagre” econômico de Emílio Garrastazu Médici.

Neste contexto, acontece mais um grande festival (III Festival Internacional da Canção, TV Globo). Tão ou mais aguerrido que os outros, com direito a vaias, tomates e ovos. Talvez o mais emblemático de todos porque o “Galo de Ouro” tenha ficado com “Sabiá” de Tom e Chico e não com Vandré com a nossa mais famosa música de protesto que se tornaria símbolo da resistência contra a Ditadura: “Pra não dizer que não falei das flores”.

Houve muitos e tantos outros festivais que foram responsáveis pela formação e revelação dos principais nomes da MPB. A total ausência de democracia, a truculência dos militares, a Guerra Fria e a censura aos meios de comunicação contribuíram para que alguns tentassem, através de uma música engajada e de protesto, mudar a realidade. Dentro desse viés, ter-se-ia que, obrigatoriamente, se falar no Tropicalismo que com seu “Panis et Circences” que se opuseram à Jovem Guarda, mas aí só fazendo outro artigo.

Sei que você dirá que ficaram muitas músicas que mereceriam ser citadas. Concordo, mas o que há de se fazer. Prefiro encerrar com uma ou outra que você, eventualmente, não conheça, por exemplo, “Paraíso das Hienas” de Accioly Neto, revelado do início dos anos 80, cantada de forma esplendorosa por Jesse: “Abençoai as hienas/ Principalmente as morenas/ Tricampeãs mundiais/ Pois desse lado do muro/ O jogo é tão duro, meu pai/ Que só ter piedade de nós não vale a pena / Oração não voga quando não há vaga/ Coração não roga quando só há raiva/ E a roupa do corpo três vezes ao dia/ Novena não paga ao homem da venda/ Não adianta nada, não enche barriga/ Subir de joelhos as escadarias/ Abençoai as hienas/ Principalmente as “da Silva”/ Campeãs de carnavais/ Pois desse lado do beco/

O olhar é tão seco, meu pai/ Que só ter piedade de nós não vale a pena…

Sérgio Cintra é professor de Linguagens e de Redação em Cuiabá.
sergiocintraprof@gmail.com

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