Uma narrativa macabra de violência doméstica atual

Por Márcia Azevedo

 

“Acredito que exista outro homem

dentro de cada homem,

um estranho um ‘Homem Conivente’”.

(Wilfred Leland James, personagem de 1922)

 

Aterrador, perturbador, macabro. São alguns dos predicados de 1922, conto de Stephen King publicado em 2010 e adaptado como filme, homônimo, para o streaming. Talvez a narrativa fosse “apenas” macabra se não ecoasse tanto na realidade contemporânea. Feminicídio, violência doméstica, opressão, moralismo judaico-cristão reverberam ainda hoje a voz do “Homem Conivente”, apresentado pelo escritor como a personalidade oculta, mas atuante, do protagonista e narrador da história que enreda o filho no crime de matricídio. Macabro.

“Houve um tempo, não faz nem vinte anos em que um homem da minha posição não precisaria se preocupar. Naqueles dias, os problemas de um homem eram só da própria conta, principalmente se ele fosse um fazendeiro respeitado: um cara que pagasse seus impostos, frequentasse a igreja aos domingos (…) e votasse no Partido Republicano. (…) Um tempo em que a esposa de um fazendeiro era considerada problema dele, então se ela desaparecesse, não se tocava mais no assunto”. As palavras eivadas de conservadorismo do narrador revelam que a história, embora fictícia, era amargamente verossímil, não um conto surrealista do estilo mais afeito a King. Antes fosse.

Um século já se passou desde a época em que se ambienta o conto até o ano que mudou nossas vidas e abreviou a existência de mais de 2,5 milhões pessoas – um eufemismo para matou, dizimou, ceifou. Dentre os dilemas e paradoxos impostos pela pandemia, a violência doméstica se destaca. Ao longo de 2020, o isolamento social, que deveria proporcionar maior segurança, contribuiu para o drástico aumento dos índices de violência doméstica contra a mulher ao redor do mundo. A desigualdade social e de gênero aliam-se nessa equação muitas vezes mortal.

As estatísticas, assustadoras, chegam a triplicar em algumas regiões. Da China ao Brasil, passando pela Europa e a África, autoridades públicas, policiais, a Organização das Nações Unidas (ONU) e organizações não governamentais relatam o crescimento da violência doméstica desde o início da pandemia. O confinamento e o desemprego, agravado pela pandemia sobretudo nos países em desenvolvimento, acirraram as tensões nos ambientes intrafamiliares de menor renda, vitimando os mais vulneráveis.

Segundo relatório do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Brasil registrou 105.821 denúncias de violência contra a mulher em 2020. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, levantamento elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), concluiu que um estupro acontece a cada 8 minutos no país. Somos, ainda, a mesma nação que, em 2006, por meio da Lei Maria da Penha, definiu a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma das formas de violação dos direitos humanos, tipificando os seguintes crimes: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral – um capítulo relevante nessa história de lutas.

Há outros exemplos simbólicos e representativos de machismo e misoginia, conquanto não se somem às estatísticas.

Há o deputado federal que, em 2000, convenceu o filho de 17 anos a enfrentar e derrotar a própria mãe em pleito eleitoral por vaga na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.  O mesmo parlamentar que, em 2003, em flagrante crime de injúria e incitação ao estupro, além de quebra de decoro, asseverou que não estupraria a Deputada Maria do Rosário (PT/RS) porque ela não merecia (sic) – e reincidiu em 2014. O mesmo deputado é autor da fala racista segundo a qual seus quatro filhos foram “bem educados” e, por isso, jamais namorariam uma negra. O atual ocupante dos Palácios do Planalto e da Alvorada, que manifesta orgulho pela prole masculina e desdém pela única filha, o resultado de uma “fraquejada”. O mesmo que chama de “maricas” os que choram os mortos. O mesmo cujo nome hoje não merece ser lembrado.

Neste 22º Dia Internacional da Mulher do século XXI, gostaria de palavras mais felizes. Gostaria de trazer a leveza e a ironia bem-humorada do empoderamento da Branca de Neve e outras personagens dos Contos de Fada Politicamente Corretos, de James Finn Garner. Contudo, ainda precisamos escapar de torres e calabouços, combater monstros e exorcizar fantasmas. Para cada besta que se levanta contra nós, das mais diversas formas, precisamos da dignidade de guerreiras como Maria da Penha e do Rosário, da força de uma Maria Izabel – essa é minha mãe.

Há de subsistir em nós, em todos nós, uma mulher ou homem não coniventes.

  • Márcia Azevedo é jornalista em Brasília

5 Replies to “Uma narrativa macabra de violência doméstica atual”

  1. Meu Deus!!! Quero parabenizar super. Vc escreve muito bem . 👏👏👏👏👏👏👏 muogo talentosa!
    Vc é maravilhosa!
    Tenho muita admiração por vc ser essa mulher forte, determinada, competente, amorosa… E muito mais
    Orgulho de vc! ❤💋💋💋

  2. Muita propriedade em suas palavras e em uma ocasião a minha mãe me fez a seguinte colocação:
    Vc vai crescer e ter uma família pois bem trate a sua esposa com carinho e respeito e lá do ceu vou ser muito feliz!!!!!
    Hj eu tenho 49 anos e nunca esqueci estás palavras!!!!!
    Apenas uma observação dia 08 de Março dia internacional da mulher mas na minha opinião é todo dia,o que seria de um homem sem uma mulher para acompanhar a sua caminhada?????

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