Capital mato-grossense, que se modernizou nas últimas décadas, na terceira década do século XXI até agora não revogou a famosa “lei do 44”
Por João Negrão
Eu acabara de me reunir com um amigo numa das mais tradicionais rádios de Cuiabá, de propriedade de sua família, próxima à avenida Historiador Rubens de Mendonça, uma das principais da cidade. Éramos sócios em um jornal voltado para condomínios e naquele dia eu estava sem carro. Por isso pedi carona ao irmão do amigo. Queria almoçar em casa com a família. Fiquei em dúvida se seguiria para o jornal A Gazeta, poucas quadras dali, onde eu era editor de Geral.
Já estava dentro do carro, no banco de trás, pois um amigo do irmão do meu amigo seguia na frente, no carona. Antes dele dar partida, decidi pela segunda opção: ir a pé para o jornal e almoçar no restaurante da empresa para não me atrasar para um dia que prometia com muitas pautas “bombásticas”, como gostava de dizer nosso principal repórter de Polícia, o José Ribamar Trindade, ou “Trinda”, para os mais chegados.
Era o ano 2002 e havia uma grande movimentação nos meios policias por conta de uma verdadeira guerra entre facções do crime organizado em Mato Grosso. O chefão do jogo do bicho no Estado, João Arcanjo Ribeiro, não estava muito contente com membros de sua organização e outros agregados que ousavam empreender “negócios” próprios.
Correndo por fora, um jovem empresário aproveitou a brecha que a Justiça lhe permitia e adquiriu um conjunto de máquinas de caça-níqueis. Em princípio, dada à relação pessoal que tinha todos com João Arcanjo Ribeiro, não havia restrições ao trabalho do jovem empresário. Contudo, o bicheiro se incomodava com a possibilidade de alguma atividade que não estivesse sob seu controle.
Naquele dia eu havia acabado de entrar no meu “aquário” no jornal quando o telefone toca na minha mesa: “Manda uma equipe aqui. Acabaram de executar duas pessoas dentro de um carro num semáforo da avenida da CPA”. A avenida do CPA é a mesma Historiador Rubens de Mendonça. As duas pessoas eram o empresário irmão do meu amigo e o amigo dele. Os dois foram executados a balaços de pistola 45. O empresário era o alvo principal, mas sobrou balas para o carona. Teria sobrado também para quem tivesse no banco de trás. Esse tipo de crime não pode ter testemunha.
De frente com a morte
A morte do empresário e do seu amigo desencadeou uma forte investigação por parte do Ministério Público Federal e da Polícia Federal contra o crime organizado em Mato Grosso. E se intensificou depois do assassinato do empresário Sávio Brandão, dono do jornal Folha do Estado, já extinto. O centro das operações era o bicheiro João Arcanjo Ribeiro.
Esta não foi a primeira vez que escapei de ser morto por pistoleiros. Em mais outras três ocasiões estive perto de morrer, dessas vezes, no entanto, apurando reportagens. Falarei sobre elas mais adiante. Agora voltemos ao título desta matéria. No final dos anos 90 o jornal A Gazeta publicou uma matéria sobre a possibilidade de contratar pistoleiros nas praças Alencastro e da República. Na Alencastro fica hoje a sede da prefeitura e foi décadas antes a do governo do Estado. A da República fica ao lado, divididas apenas pela avenida Getúlio Vargas, uma das duas “artérias” principais do chamado “Centrão Histórico de Cuiabá”.
A apuração rendeu uma reportagem que só não ganhou suíte porque começamos a receber telefonemas e visitas estranhas na antiga redação da rua Cursino do Amarante, no bairro Quilombo. Quase duas décadas e meia estou de volta à praça Alencastro, relembro da história e resolvo checar se ainda podia-se contratar pistoleiros por ali. A abordagem foi a mesma que na época: identificar a pessoa (ou pessoas) que estão mais tempo perambulando pelo logradouro, falar que está precisando de um serviço e se o abordado entender a senha encaminha para o executor.
Não obtive sucesso na praça da República. Curiosamente, a primeira pessoa que abordei era um sargento da Polícia Militar a paisana que estava ali aguardando a esposa, funcionária da prefeitura. “Preciso de um serviço”, disse ao homem com cara de mau. “Que isso, senhor! Você está falando com um policial”, retrucou ele. “Desculpas. Sou jornalista e faço matéria sobre o assunto. Onde posso encontrar pistoleiro por aqui?”, indaguei.
Expliquei que anos antes o jornal em que eu trabalhei fez matéria sobre o assunto e eu gostaria de saber se ainda no início da terceira década do século XXI se contratava pistoleiros por ali. Eu já estava achando que me dei mal quando a fisionomia do policial mudou e sorrindo ele respondeu: “Aqui não tem mais, na praça da República aparece alguns. Mas você vai encontrar mesmo é lá na praça de baixo, onde os puteiros”, indicou.
A “praça dos puteiros” é a Alberto Novis, onde fica a zona boêmia do Centrão Histórico de Cuiabá. Em volta dela tem vários bares, restaurante e casas onde “as belas da tarde” vão encontrar cliente e fazer seus programas. Em outro texto desta série “Cartas de Cuiabá”, falarei sobre essas “belas” e de um outro episódio em que me confrontei com pistoleiro.
Numa das mesas colocadas em uma das laterais da praça, em frente a um bar, eu sento, peço uma cerveja e puxo conversa com o homem da mesa ao lado com cara de cafetão. Falamos amenidades, comentamos sobre as mulheres, a beleza da praça reformada e, quando sinto que ganhei a confiança do cara, lasco a pergunta: “Onde posso encontrar alguém aqui para fazer um serviço?”
– É pra acertos de vingança, demanda ou gaia? – devolve ele.
Acerto de vingança é quando o contratante que matar quem matou ou maltratou muito uma pessoa próxima, como membro da família e amigo. Demanda é para tirar de circulação pessoa ou grupo de pessoas que impedem negócios, como ocupação de terras ou concorrência. E “gaia” se refere à infidelidade conjugal.
Tomado pelo medo
Saio da minha mesa com meu copo de cerveja, sento na frente dele e explico sobre as minhas intenções: saber se ainda é possível contratar pistoleiro nas praças de Cuiabá. “Sim! Nas praças e em vários bairros de Cuiabá e Vegê”, afirma o “cafetão”, se referindo às letras iniciais da cidade vizinha da capital, separada apenas pelo rio Cuiabá, Várzea Grande, cidade que curiosamente nasceu no final do século XIX de um campo de concentração de prisioneiros da Guerra do Paraguai.
Perguntei se ele conhecia algum e se poderia chamar para eu conversar com ele. “Chamar até eu posso, mas é perigoso para você. Dependendo do que vai escrever ele pode não gostar”, respondeu. Expliquei que não ia identificar ninguém, que não era uma matéria negativa, mas apenas o registro da existência de “pontos” de contratação de pistoleiros semelhantes aos “pontos de chapa”, aqueles trabalhadores braçais que ajudam a carregar e descarregar caminhões de mudanças, entre outros.
– Hummmm… Vou chamar um. – disse.
Atravessou a praça, entrou em outro bar, demorou alguns minutos e me disse: “Vai lá que um cidadão lá vai falar com você”, disse relatando a cor da camisa e a mesa onde ele estava. Sentei à frente do Justino (nome fictício), ele de óculos escuro naquele ambiente lúgubre e insalubre, camisa preta de bolas brancas e mangas compridas enrolada até os cotovelos.
Ele me olho severamente, levou à boca o copo de cerveja com a mesma mão do cigarro entre os dedos e perguntou: “Quer um serviço, cidadão?” Expliquei tudo novamente. Ele me mandou desligar o celular e falou pouco: “A gente não fala com jornalista, mas como você teve a coragem de aparecer por aqui só vou lhe dizer uma coisa: tem pouca demanda ultimamente. Agora pode ir embora”.
Ensaiei mais pergunta, contudo ele foi incisivo: “Vai embora!” Sai do bar dele para onde eu esta pensativo. Por que ele aceitou falar comigo se não queria responder perguntas? Será que só queria saber quem era o bisbilhoteiro? Queria ele me marcar para alguma surpresa futura?
Diante de tantas dúvidas, e já me sendo tomado pelo medo, paguei a conta e sumi.
(Foto do alto: Praça Alencastro. Crédito: Secom Cuiabá)
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