Os Sete Vãos — e como a gente vira esse jogo

Por Paulo Lemos

 

A lista de Gandhi não é frase de calendário. É aviso de incêndio moral: “política sem princípios; prazer sem compromisso; riqueza sem trabalho; sabedoria sem caráter; negócios sem moral; ciência sem humanidade; oração sem caridade.”

Cada linha é um retrato do que acontece quando a pressa e o ego tomam o lugar do sentido. A gente chama de progresso, mas é um tipo de avanço que nos cansa e nos esvazia. É a corrida sem linha de chegada.

Política sem princípios é quando o cargo vira vitrine e o povo, figurante. O discurso se repete, o país se desgasta e o voto vira moeda de troca. O problema não é só roubo de dinheiro — é roubo de confiança.

O antídoto é velho e novo ao mesmo tempo: transparência, coerência, prestação de contas real. Princípio é freio, não adorno. Sem ele, o poder desliza pro abuso.

Prazer sem compromisso é o amor líquido que escorre pelos dedos. É a ideia de que liberdade é nunca se apegar, nunca cuidar, nunca ficar. O resultado é solidão disfarçada de autonomia e consumo disfarçado de afeto. O prazer, quando não se compromete com ninguém, termina vazio.

O antídoto é presença: respeito, responsabilidade afetiva, cuidado com o corpo e com o planeta. Desejo bom é o que não deixa rastro de dor.

Riqueza sem trabalho é a ilusão do lucro instantâneo. É o sonho de “ficar rico dormindo”, enquanto milhões nem conseguem descansar. Quando o sucesso vira sinônimo de esperteza e não de esforço, a sociedade perde o chão.

O antídoto é resgatar o valor do trabalho real, o que transforma, o que constrói, o que alimenta. O que não nasce do suor de alguém, vem do cansaço de outro.

Sabedoria sem caráter é a esperteza que se veste de inteligência. Diploma não ensina ética. Conhecimento sem consciência é ferramenta nas mãos erradas.

O antídoto é perguntar sempre: “isso serve a quem?”. A verdadeira sabedoria não humilha, orienta. Não sobe degraus pisando em outros — estende a mão.

Negócios sem moral são o veneno elegante do século. Lucros altos, relatórios verdes, discursos sobre sustentabilidade — e, no fundo, gente exaurida e natureza explorada.

O antídoto é coerência: alinhar lucro e limite, inovação e responsabilidade. Sustentabilidade não é slide, é prática. É o jeito de pisar o chão e tratar quem sustenta a base.

Ciência sem humanidade é o saber que perde o rumo. Descobrimos tudo, menos como cuidar. Criamos tecnologias para ganhar tempo e acabamos escravos do relógio. Vivemos cronometrados, produtivos e esgotados. O tempo, que deveria ser espaço de vida, virou prisão com metas.

O antídoto é lembrar que progresso sem pausa é autodestruição. A ciência precisa voltar a servir à vida — não ao ritmo do mercado. Humanidade também é limite.

Oração sem caridade é fé que fala alto, mas escuta pouco. É o culto que esquece a rua, a reza que não se transforma em gesto. A espiritualidade sem compaixão é só vitrine de ego.

O antídoto é amor em ação: dar de comer, ouvir quem sofre, lutar para que ninguém precise pedir. O sagrado é partilha, não espetáculo.

Esses sete vãos se alimentam uns dos outros. A política sem princípio protege o negócio sem moral. O prazer sem compromisso reforça o descarte. A sabedoria sem caráter fornece as desculpas. A ciência sem humanidade dá o instrumento. A oração sem caridade legitima o egoísmo. E todos juntos giram a engrenagem da pressa, do lucro e da indiferença.

Mas dá pra mudar o ritmo. O primeiro passo é desacelerar. Questionar o relógio que manda na gente, o celular que nunca silencia, o “preciso entregar” que virou identidade. Somos a geração que confunde movimento com sentido. Produzimos sem parar, mas esquecemos de viver.

É preciso reaprender a estar, não só a fazer. O tempo não é inimigo — é solo fértil. O descanso não é preguiça — é resistência.

E no cotidiano, a ética começa nas escolhas pequenas: ouvir antes de reagir, ajudar sem esperar, consumir com consciência, votar com memória. Nenhum gesto é inútil quando sustenta a dignidade.

A boa política nasce do bom caráter; o bom trabalho nasce do respeito; o bom futuro nasce da pausa.

Também é preciso refazer o modo de medir valor. Curtidas, cifras e metas não são sinônimos de sentido. O que vale é quem cuida, quem divide, quem melhora o que toca.

A pressa da produtividade precisa dar lugar à paciência do cuidado. Ninguém se salva sozinho — e ninguém se perde sozinho.

Gandhi não nos deixou uma lista de virtudes, mas uma radiografia do colapso humano.

A cura está no oposto: em devolver à vida o tempo, à política o princípio, ao prazer o vínculo, à riqueza o trabalho, à sabedoria o caráter, aos negócios a moral, à ciência a compaixão e à fé o gesto.

Quando o relógio parar de mandar — e o cuidado voltar a guiar — talvez a vida comum volte a valer o tempo que leva.

* Paulo Lemos é advogado em Mato Grosso e articulista de opinião sobre temas diversos

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