Lido para Você: Margaridas em Luta por Equidade nas Relações de Gênero, Raça, Classe e Território no Meio Rural Brasileiro

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Grisel Crispi. Margaridas em Luta por Equidade nas Relações de Gênero, Raça, Classe e Território no Meio Rural Brasileiro. Dissertação apresentada e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, UnB: Brasília, 2025. 135 fls.

A dissertação – Margaridas em Luta por Equidade nas Relações de Gênero, Raça, Classe e Território no Meio Rural Brasileiro – foi apresentada, defendida e aprovada perante a Banca Examinadora formada sob a presidência da professora Vanessa Maria de Castro, Orientadora, pelo professor Marco Antonio Teixeira, membro externo (Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in Latin America – Mecila), por mim, membro interno do PPGDH e pelo professor Wellington Lourenço de Almeida (PPGDH), suplente.

A Dissertação cuida, conforme seu resumo formal, das “lutas sociais e políticas das mulheres do campo, das florestas e das águas, autodenominadas Margaridas,[que] continuam em marcha por mais de duas décadas. Elas resistem e insistem por equidade nas relações sociais de gênero, raça, classe e território no meio rural brasileiro. Esta pesquisa buscou compreender, por um lado, as relações de poder no meio rural que estruturam as desigualdades de gênero, e, por outro, as formas como essas mulheres se relacionam com o Estado na construção de possibilidades para enfrentar esse problema social. Recorrendo a publicações e aos resultados da matriz de análise elaborada para esta dissertação, é possível observar avanços na implementação de políticas públicas de direitos humanos para as Margaridas, como por exemplo os incentivos específicos para grupos historicamente marginalizados do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o que contribui para reduzir desigualdades de classe, mas se depara com as barreiras que as mulheres ainda têm de menor acesso à terra e ao crédito rural, o que pode dificultar sua inserção plena no PAA, mesmo com cotas mínimas. Para contribuir, apresento material que pode subsidiar discussões sobre as políticas de igualdade de gênero para o meio rural e estudos acadêmicos sobre o tema”.

Desde esse enunciado sintetizador, o trabalho se desdobra analiticamente de acordo com os itens que formam o seu Sumário:

INTRODUÇÃO

I – METODOLOGIA

1.1 Análise documental e bibliográfica

1.2 Abordagem teórico-metodológica

1.3 Matriz de análise

II – AS MARGARIDAS E A CONSTRUÇÃO COLETIVA DE UMA AGENDA ANTICAPITALISTA, ANTIRRACISTA E ANTIPATRIARCAL PARA O CAMPO

2.1 Formação política, social e organizativa da classe das trabalhadoras e trabalhadores rurais – normatização do direito na era Vargas (1930 -1945)

2.1.1 “Direito a ter direitos”: Lutas por garantias e implementação de direitos das trabalhadoras rurais pós-Vargas (1945 – 1987)

2.1.2 Comissão Camponesa da Verdade (CCV) – Síntese das narrativas

2.1.3 Protagonismo e constituição das marchas das Margaridas

2.1.3.1 Epistemologias feministas e concepções do sindicalismo na formação da identidade coletiva das Margaridas

2.1.3.2 Eixo 10 – “Autonomia Econômica, Inclusão Produtiva, Trabalho e Renda” – Demandas sociais, políticas e econômicas das Margaridas. Marcha 2023

III – FUNDAMENTAÇÃO E REFERENCIAL TEÓRICO

3.1 Brasil rural em perspectiva: estruturas desiguais e lutas sociopolíticas

3.1.1 Mundo do trabalho e organização das atividades agrárias na dinâmica da produção capitalista

3.1.2 Relações sociais de gênero, raça e classe no meio rural brasileiro

3.1.3 Abordagem territorial e seus significados nas relações sociais no campo

3.1.4 Relações socioestatais e as lutas no campo

3.1.4.1 Estado, democracia e burocracia em Gramsci

3.1.4.2 Permeabilidade estatal e demandas sociopolíticas das mulheres do campo, das florestas e das águas

3.1.5 Políticas públicas para as mulheres rurais sob a ótica dos direitos humanos – à guisa de introdução

IV – MATRIZ DE ANÁLISE: INTEGRANDO POLÍTICAS PÚBLICAS, ODS E DEMANDAS DAS MARGARIDAS

4.1 Estrutura da matriz

4.1.1 Organização dos Dados

4.1.2 Descrição dos Dados

4.1.3 Fonte dos dados

4.1.4 Sistematização e Análise Crítica

4.1.5 Conclusão

4.2 Descrição

4.2.1 Referência analítica

4.2.2 Categorias de análise

4.2.3 Modelo analítico de concepção e implementação de política pública para as mulheres rurais

CONCLUSÃO

ANEXOS

Anexo A – Plataforma Política das marchas das Margaridas (2000 e 2019)

Anexo B – Plataforma política e eixos da marcha das Margaridas de 2023

Anexo C – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

ANEXO D – MARCHA DAS MARGARIDAS 2023

Tal como pude inferir da proposta dissertativa, o que a Autora sustenta, se contêm, assim o entendi, no pressuposto, segundo o qual, o mundo agrário brasileiro é historicamente atravessado por disputas de poder, desigualdades estruturais e assimetrias sociais, políticas e econômicas. Embora seja frequentemente representado pela tradição histórica como um espaço de atraso, de silêncio e de passividade, o campo é, na realidade, um território marcado por resistências, reinvenções políticas e lutas coletivas. Nesse cenário, as mulheres – trabalhadoras do campo, das águas e das florestas – têm desempenhado papel central, ainda que sigam invisibilizadas pelas narrativas hegemônicas e pelas práticas institucionais do Estado. Essa invisibilidade não se explica apenas pela ausência de políticas públicas, mas pela própria lógica seletiva de funcionamento estatal, que naturaliza a exclusão e mantém as mulheres afastadas dos espaços de decisão, de reconhecimento e de produção.

A pesquisa conduzida por Grisel Crispi toma como tema central a luta das mulheres rurais por políticas públicas, na perspectiva dos Direitos Humanos, tendo como objeto privilegiado de análise a Marcha das Margaridas.

A Marcha das Margaridas é a maior mobilização de mulheres trabalhadoras do campo, da floresta e das águas da América Latina. Realiza-se em Brasília a cada quatro anos, desde o ano 2000, e reúne milhares de mulheres que marcham em defesa de seus direitos, pela democracia e por um modelo de desenvolvimento sustentável, justo e igualitário.

O nome é uma homenagem a Margarida Maria Alves, sindicalista e líder rural da Paraíba, assassinada em 1983 por sua atuação na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais. Sua memória inspira a luta contra o patriarcado, o racismo e a exploração de classe no campo brasileiro.

A Marcha é organizada principalmente pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), com apoio de diversas organizações feministas, movimentos sociais e entidades de direitos humanos e, entre seus objetivos centrais, destaca-se a denúncia de desigualdades de gênero, raça e classe no meio rural; a reivindicação de políticas públicas para autonomia econômica, produção de alimentos saudáveis, reforma agrária, combate à violência, educação, saúde e previdência; a valorização dos saberes e práticas das mulheres no cuidado com a terra, com as sementes, com as comunidades e com a vida; a construção de propostas coletivas para um modelo de desenvolvimento sustentável, solidário e feminista.

Como características marcantes, indicadas na Dissertação, têm-se que se trata de um ato político e também pedagógico, que forma e articula mulheres em todo o Brasil durante o processo de preparação, mobiliza caravanas de todo o país, transformando Brasília em um espaço de visibilidade e afirmação das lutas das mulheres do campo, orientadas por plataformas de luta, chamadas de Eixos, que reúnem as principais reivindicações.

A última edição aconteceu em 2023, e reuniu mais de 100 mil mulheres, reafirmando a Marcha como um dos mais importantes movimentos de mulheres e de luta social no Brasil. A Dissertação traz, inclusive, um anexo, com um ensaio fotográfico desse evento.

A Dissertação trata de compreender como essas mulheres, historicamente subalternizadas pelas dinâmicas de poder no meio rural, constroem estratégias de enfrentamento às desigualdades estruturais e incidem na formulação de políticas públicas, ressignificando, assim, o seu lugar político tanto no campo quanto diante do Estado. A Marcha das Margaridas, que se consolidou como uma das maiores manifestações políticas de mulheres na América Latina, é analisada aqui em sua capacidade de articulação e produção de propostas, especialmente a partir do Eixo 10 da edição de 2023, que trata de autonomia econômica, inclusão produtiva, trabalho e renda.

O objetivo geral da pesquisa é investigar de que modo se configuram as condições de promoção da autonomia econômica das mulheres do campo e qual o papel do Estado nesse processo. Desdobram-se daí objetivos específicos: compreender as estruturas históricas e sociais que sustentam desigualdades no meio rural brasileiro; analisar as estratégias de organização política das mulheres rurais a partir da Marcha de 2023; identificar limites e possibilidades de políticas voltadas à inclusão produtiva e à geração de renda, tomando o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) como estudo de caso; e, por fim, aplicar o marco teórico da consubstancialidade, a fim de compreender como uma única estrutura social desigual opera simultaneamente nas relações de gênero, raça, classe e território.

A Marcha das Margaridas é, na Dissertação, reconhecida como uma das experiências mais significativas de formulação política protagonizada por mulheres rurais. Ao propor políticas públicas a partir de suas próprias vivências e enfrentamentos cotidianos – que vão desde a desvalorização de saberes e práticas produtivas, passando pela precarização do trabalho, pela ausência de políticas consistentes e pela exclusão dos espaços decisórios –, a Marcha desloca o lugar dessas mulheres, afirmando-as como sujeitas de direitos e como agentes políticos de transformação. Nesse sentido, a Marcha incide diretamente nos debates sobre desenvolvimento com equidade, justiça social e igualdade de gênero, reconfigurando o campo como espaço de cidadania ativa.

O recorte da pesquisa se dá em três dimensões: o território brasileiro como espaço geográfico; o ano de 2023 como recorte temporal; e as mulheres do campo, das florestas e das águas como recorte populacional, organizadas sobretudo em torno da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG). A partir desse recorte, busca-se compreender tanto a historicidade da luta quanto as disputas presentes em torno da construção de políticas públicas.

No campo teórico, a pesquisa dialoga com os estudos sobre a Questão Agrária no Brasil, dando atenção às transformações do trabalho rural, ao papel do Estado e às resistências camponesas. Ao mesmo tempo, articula-se com autoras do feminismo materialista e camponês, com destaque para a socióloga francesa Danièle Kergoat. A teoria da consubstancialidade e da coextensividade proposta por Kergoat orienta a análise ao demonstrar que as desigualdades vivenciadas pelas mulheres não resultam de opressões simplesmente somadas, mas de uma lógica de dominação simultânea que atua de forma entrelaçada nas dimensões de gênero, classe, raça e território. Isso significa reconhecer que mulheres camponesas, negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas ou assentadas compartilham experiências de subalternização atravessadas por estruturas múltiplas, mas inseparáveis.

Nesse quadro, a categoria de “territorialidade” assume relevância. Ela permite pensar o campo não apenas como espaço de produção econômica, mas como território de pertencimento, memória, afetos, resistência e produção de vida. É nesse espaço que as mulheres constroem formas de organização política e reexistência, tensionando concepções reducionistas que associam o rural apenas ao produtivismo ou à carência.

O diálogo da pesquisa com o campo crítico dos Direitos Humanos também é fundamental. Adota-se aqui uma leitura que ressalta a interdependência, a indivisibilidade e a universalidade dos direitos, mas que também aponta as limitações e contradições desses princípios quando confrontados com a realidade concreta das mulheres rurais. A intersecção entre direitos humanos, feminismo camponês e lutas agrárias permite tensionar as políticas públicas, evidenciando suas insuficiências e propondo alternativas construídas a partir da experiência concreta das sujeitas envolvidas.

Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa, que combina revisão bibliográfica, análise documental e estudo de caso. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi selecionado como estudo de caso por se relacionar diretamente com o Eixo 10 da Marcha e por revelar, em sua trajetória, as contradições e disputas em torno da efetividade das políticas públicas voltadas ao campo. A análise inclui documentos oficiais da Marcha, legislações e normativas do PAA, relatórios institucionais e produções acadêmicas. A partir dessa base, foi elaborada uma matriz de análise, estruturada em torno do Eixo 10, das categorias de Kergoat, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 (com destaque para os ODS 5, 10 e 18) e do próprio PAA.

A dissertação se organiza em três capítulos principais, além da introdução e das considerações finais. O primeiro capítulo apresenta o percurso histórico das lutas no campo, enfatizando a trajetória de organização das trabalhadoras rurais e a construção da agenda política da Marcha das Margaridas. O segundo capítulo discute o referencial teórico, abordando a dinâmica do trabalho rural, as desigualdades estruturais, as epistemologias feministas, a relação crítica entre Estado e sociedade na formulação de políticas públicas e o campo dos Direitos Humanos. O terceiro capítulo traz a matriz de análise, articulando os eixos da Marcha, os dados da Agenda 2030 e o estudo de caso do PAA, a fim de identificar contradições, avanços e desafios para a efetividade das políticas.

Nas considerações finais, a pesquisa aponta que trazer à luz a produção política das mulheres rurais significa fortalecer um projeto democrático de país que reconheça sujeitos historicamente invisibilizados e que confronte as estruturas de poder responsáveis por perpetuar desigualdades no campo. Ao analisar as estratégias das mulheres na Marcha das Margaridas e sua incidência no Estado, a pesquisa demonstra que o protagonismo feminino rural não é apenas resistência, mas também proposição ativa de caminhos para um desenvolvimento com justiça social, equidade de gênero e respeito à diversidade territorial e cultural do Brasil.

Destaco, no trabalho, até para configurá-lo no âmbito do programa de pós-graduação em que o trabalho se desenvolveu, e no qual estabelece seu plano de interlocução, teórica e política, tal como aliás o indica em sua elaboração, o que eu gostaria de figurar como identificação do núcleo conceitual dos Direitos Humanos na Dissertação. Até por motivação epistemológica, não sendo da linha de investigação na qual a Dissertação se desenvolveu, mas por encontrar nesse núcleo conceitual, não fosse apenas em referência à adoção de categorias fundantes extraídas da concepção de direito humanos de Joaquín Herrera Flores, o sentido que adoto quando falo e sobre como falo de direitos humanos.

É que também percebo uma relação com a crítica e a proposta de Antonio Sérgio Escrivão Filho e também comigo, em trabalhos que desenvolvemos principalmente em Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (cf. https://estadodedireito.com.br/para-um-debate-teorico-conceitual-e-politico-sobre-os-direitos-humanos/).

Assim, na Dissertação, o núcleo conceitual dos Direitos Humanos, embora reconheça os princípios clássicos do discurso dos direitos humanos – interdependência, indivisibilidade e universalidade – não os toma de forma acrítica. O que está em jogo é uma tensão entre a formulação normativa abstrata (os direitos humanos como universais e formalmente garantidos) e a experiência concreta das mulheres rurais, que evidencia exclusões, invisibilidades e contradições na realização desses mesmos direitos.

Portanto, o núcleo conceitual é crítico e materialista: os direitos humanos não são tratados como categorias “dadas” ou “consensuais”, mas como campos de disputa. O diálogo com o feminismo camponês e com as lutas agrárias desloca os direitos humanos do plano abstrato para o plano situado, encarnado nas experiências das sujeitas concretas. Nesse movimento, o campo, o gênero, a raça e a territorialidade passam a ser dimensões constitutivas da própria definição do que são direitos humanos no contexto rural.

Vejo nisso inclusive, conforme meu texto com Escrivão, entendimento comum de que os direitos humanos não devem ser compreendidos apenas como enunciados normativos universais, mas como processos históricos de lutas sociais. Ou seja, a centralidade está na produção social dos direitos, compreendidos como conquistas das lutas de grupos historicamente subalternizados que, ao se afirmarem, deslocam os marcos jurídicos e políticos. Aliás, uma leitura crítico-dialética, em que os direitos humanos não são meras normas universais, mas expressões de contradições sociais e políticas, sempre abertas à disputa, a recusa a visões “consensuais” e “ahistóricas” dos direitos, valorizando a perspectiva de O Direito Achado na Rua: os direitos como construção coletiva, como processo em movimento, e não como aparatos constituídos e fechados.

Com a centralidade da experiência social, percebo que a Dissertação mostra que as mulheres do campo, das florestas e das águas produzem concepções próprias de direitos a partir de suas práticas políticas (ex.: Marcha das Margaridas). Isso coincide com a tese de que os direitos emergem da experiência coletiva de resistência e afirmação.

Claro que designados num campo de disputa, os direitos humanos são vistos como espaços de conflito entre projetos de sociedade, e eles vão emergir como “processo histórico de luta”, como se vê na Dissertação, em se expressam nas contradições entre Estado e movimentos sociais e nas insuficiências das políticas públicas. Por isso, a compreensão de que se dá um protagonismo amplificador do protagonismo do sujeito de direitos. Com efeito, a Dissertação mostra como mulheres rurais, negras, indígenas, ribeirinhas, quilombolas etc, tensionam os limites da definição tradicional de sujeito de direitos, sujeitos ainda historicamente invisibilizados na centralidade da luta pelos direitos.

Uma pena que a pesquisa não tenha procurado estabelecer um diálogo mais orgânico com estudos desenvolvidos a partir do próprio repositório de dissertações e de teses do PPGDH. Refiro-me, principalmente à Dissertação e à Tese de Ísis Menezes Táboas (https://estadodedireito.com.br/o-feminismo-substitui-a-luta-de-classes-perspectivas-de-movimentos-camponeses-e-de-o-direito-achado-na-rua/). A tese O Feminismo Substitui a Luta de Classes? Perspectivas de movimentos camponeses e de O Direito Achado na Rua, já convertida em livro, (Rio de Janeiro: Editora: LUMEN JURIS, 2024).

O livro da Ísis é uma primorosa e necessária obra que, a partir de uma análise crítica, reafirma a importância do feminismo como elemento central para transformações sociais, imbricado com as relações de raça e classe no Brasil.”, diz Juliane Furno, Professora de Economia da UERJ, na 4ª capa da bem cuidada edição da Editora Lumen Juris, em cujo catálogo figura também É LUTA! Feminismo Camponês Popular e Enfrentamento à Violência, de Ísis Menezes Taboas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2018.

É LUTA!, originado da dissertação de mestrado da Autora (aliás, dissertação premiada pelo PPGDH), que também orientei, assim como a tese que serve de base para a nova obra, se enquadra, com rigor, nos parâmetros metodológicos por ela enunciados em estudo anterior presente em obra trazida a público por sua editora (Lumen Juris), diligentemente organizada por Vanessa Dorneles Schinke (A Violência de Gênero nos Espaços do Direito. Narrativas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista, Rio de Janeiro, 2017).

Com efeito, nesse estudo (“Métodos Jurídicos Feministas e o (Des)Encobrimento do Direito no Cotidiano das Mulheres”, páginas 337-354), Ísis parte das afirmações político-teóricas, que convidam a “refletir sobre o processo de invisibilização das lutas das mulheres por direitos e a instrumentalização da linguagem dita neutra e universal para dissimular e ocultar relações desiguais de poder entre homens e mulheres”. Lá, como aqui, seu intuito é “evidenciar a existência de desigualdades e introduzir questionamentos sobre a ausência das mulheres produzida no mundo jurídico” e, com intencionalidade política e precisão e especificidade teórico-metodológica, assegurar que a “a entrada das mulheres no campo do Direito não apenas acrescenta novos elementos à ciência jurídica, mas a perturba intensamente”.

Um pouco dessa dimensão perturbadora aparece em narrativa sobre estratégias para propagandear “bandeiras políticas pelas quais lutam e agregam novas integrantes” que Ísis, juntamente com Letícia Pereira e Rosângela Piovisani, fazem a propósito de protagonismo de mulheres camponesas, organizadas no Movimento de Mulheres Camponesas. Nesse caso, por meio da criação de grupo teatral formado por mulheres do Movimento, para desenvolver empatia e identidade entre artistas e público, durante as apresentações de grupo teatral, transformado em instrumento político feminista para comunicação e expressão de seu movimento organizado (Resistência e Arte: o teatro do Movimento de Mulheres Camponesas, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et alli (organizadores). Série O Direito Achado na Rua, vol. 8: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: UnB/FAC Livros. 2017, págs, 415-422).

O estudo de Ísis Menezes Táboas fomenta a disposição analítica para captar o movimento de transformação do social operado por práticas de mobilização e de organização que levem a modos emancipatórios de protagonismos, na medida em que desvendem as formas de sujeição dos sujeitos em movimento. No caso do feminismo camponês, Ísis identifica, com os autores e as autoras do pensamento crítico decolonial, a simbiose patriarcado-racismo-capitalismo que asfixia a vida no interior do sistema, para designar as situações reprodutoras de violência e as condições de reconhecimento e de ativismo real aptos a modificar essa realidade, na direção emancipatória.

O que ela propõe, na mesma linha de, juntamente o que eu próprio escrevi com Lívia Gimenes da Fonseca, e essa autora ela mesma desenvolve em estudo específico, aprofundando essa elaboração, é um processo de transformação, no qual as práticas de organização feminista decolonial sejam capazes de se abrir para os aprendizados coletivos entre as mulheres, por meio de trocas interculturais, em contextos de diálogos horizontais no qual não se busque uma resposta única para a superação do patriarcado moderno, mas que constrói relações de uma rede de solidariedade e de práticas coerentes de respeito às vivências coletivas diversas” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; e FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito. Revista Jurídica Direito e Práxis, UERJ: vol. 8, n. 4 (2017); FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. Despatriarcalizar e decolonizar o Estado brasileiro – um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas. Tese (Doutorado em Direito). Brasília: Universidade de Brasília, 2016, p. 182).

E é assim que Ísis, neste giro epistemológico feminista, fecha o seu trabalho, afirmando (veja-se o Capítulo 3 – “Dando vida à teoria”: a práxis do Movimento de Mulheres Camponesas para o enfrentamento à violência doméstica e familiar), tal como demonstra em todo o desenvolvimento da obra, que é o Movimento Social (MMC) que se constitui como sujeito coletivo de direitos em sua condição de potência política portadora de uma capacidade instituinte de direitos, num duplo e simultâneo processo: desenvolver no social, novas formas de organização, de mobilização e luta feminista, popular e camponesa capazes de fundar e fomentar a construção de direitos humanos; e no plano comunitário, de viver sem violência doméstica e familiar.

Cito muito insistentemente o trabalho de Ísis Táboas, não só porque ele se desenvolve ao balizamento desse debate no espaço do PPGDH, mas porque também, nele, há referências diretas e aplicação do esquema teórico de Danièle Kergoat, forte igualmente na Dissertação de Grisel Crispi.

Há, assim, um diálogo. Em É LUTA! (2018), essa presença é metodológica e aplicada, sustentando a análise das violências e resistências vividas pelas mulheres camponesas. Também em O Feminismo Substitui a Luta de Classes? (2024), o esquema de consubstancialidade/coextensividade é mobilizado de modo mais explícito, servindo de fundamento conceitual para articular feminismo, luta de classes e questão agrária no Brasil.

Mas, em ambos os casos, a autora mostra como metodologias feministas inspiradas em Kergoat permitem não apenas analisar as experiências, mas produzir conhecimento crítico comprometido com as lutas sociais, em consonância com o horizonte de O Direito Achado na Rua.

A Marcha das Margaridas, a Dissertação acentua, revela que as desigualdades vividas pelas mulheres do campo, das águas e das florestas não decorrem de discriminações isoladas, mas de uma única estrutura social desigual — patriarcal, racista e classista — que atua de forma consubstancial. Nesse contexto, as políticas públicas tendem a reproduzir seletividade e exclusão, mesmo quando avançam em reconhecimento formal. A Marcha, contudo, se afirma como prática social e política de resistência e de formulação de alternativas, recolocando as mulheres rurais como sujeitas centrais na produção de saberes, na disputa pelo desenvolvimento e na construção de uma democracia efetivamente inclusiva e justa.

Estou de acordo com as conclusões oferecidas na dissertação e considero que as categorias que Grisel oferece para a análise que desenvolve são aptas a esse fim, com a novidade da categoria de territorialidade tomada como espaço simbólico no qual se moldam as identidades de luta e das agendas para reconhecimento de direitos.

Associei esse elemento explicativo à minha própria análise quando participei do processo de Comentários à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos das Camponesas e dos Camponeses/, livro organizado por Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, Girolamo Domenico Treccani, Thaisa Mara Held, Tiago Resende Botelho. – São Paulo, SP : Liber Ars, 2022. 240 p. E-book (https://estadodedireito.com.br/comentarios-a-declaracao-das-nacoes-unidas-sobre-os-direitos-das-camponesas-e-dos-camponeses/).

Tal como indica Tchenna Fernandes Maso, militante do Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragem, no texto de abertura da publicação – Construindo direitos desde a resistência camponesa – o avanço das organizações dos movimentos populares do campo em todo mundo, assenta num trabalho organizativo das lutas históricas e construção de resistências que forjaram a necessidade de reconhecimento de direitos instituídos por sujeitos históricos inscritos no protagonismo de movimentos sociais entre eles o movimento social camponês.

Portanto, os direitos não são dados, são construídos, resultam de lutas por reconhecimento, na sua síntese mais ampla, por acesso ao resultado da riqueza socialmente produzida; e por participação política no processo de decisão sobre a distribuição justa dos bens da vida.

Daí resultam duas tensões com impactos históricos, sociais, políticos, éticos e jurídicos: a disputa pelo modo de exercitar e de abrir acessos aos meios articulados de realizar justiça; e de estabelecimento de procedimentos válidos para administrar os critérios deliberativos que balizem a relação problemática entre a produção e a reprodução da existência e a satisfação das necessidades sociais.

A dialética que se inscreve no movimento dessas tensões, evidentemente configuradas numa indeterminação de efeitos, pode ser, para fins desse comentário, aferida em três dimensões discerníveis: o constituir da subjetividade ativa que desencadeia as interações sociais, o humanizar-se e fazer-se sujeito; o designar os espaços e os modos de interação para o exercício da inteligibilidade cognitiva acerca dos modos de manifestar o pensamento, exercitar posicionamentos formando opiniões e os de os expressar de modo comunicativo e avaliativo; e os juízos valorativos para estabelecer a materialidade ordenadora da convivência e do agir.

Penso que esse processo pode ser aferido num salto que a conscientização opera da história para a política por mediação da justiça e do direito. A conscientização enquanto afirmação de inter-subjetividades, vale dizer, o sentido que estrutura identidade e pensamento, como passagem da existência para a consciência, é um processo que permite constituir continuamente o humano e sua expressão como sujeito. A dialética e o pensamento filosófico de práxis, em qualquer de suas vertentes, idealista ou materialista, não se conforma com o humano como derivação única da biologia, senão como experiência na história, o que significa dizer, que não nascemos humanos, nos tornamos humanos, sujeitos, um percurso que diviso nas Margaridas em Luta por Equidade nas Relações de Gênero, Raça, Classe e Território no Meio Rural Brasileiro.

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