A prisão preventiva de Jair Bolsonaro e a força republicana da lei

Por Paulo Lemos

 

A prisão preventiva de Jair Bolsonaro não é um capricho, nem um ato de vingança política. É a consequência jurídica previsível de uma sequência de fatos concretos e de uma condenação já imposta pelo STF, somada à escolha reiterada do ex-presidente de desafiar as regras do jogo democrático.

Celebrar essa decisão não é celebrar a dor de ninguém, mas sim a aplicação republicana da lei. Pela primeira vez, o recado é claro: no Brasil, nem mesmo quem já ocupou a Presidência está acima da Constituição.

Um dos argumentos usados contra a prisão é o de que se trata de “prisão política”. Esse discurso tenta colar a imagem de Bolsonaro à de um perseguido por suas opiniões, como se estivesse sendo punido apenas pelo que pensa ou fala.

Mas os autos mostram outra coisa: ele foi condenado pela Primeira Turma do STF, em decisão colegiada, a mais de 27 anos de prisão, por participar de uma organização criminosa que atentou contra o Estado Democrático de Direito, usando a estrutura do próprio Estado para tentar um golpe.

Não estamos diante de um réu sem julgamento, mas de alguém já declarado culpado pelo órgão máximo do Judiciário brasileiro, com embargos rejeitados. Chamar isso de “prisão política” é uma tentativa de desqualificar, de forma genérica, todo o sistema de justiça.

Esse tipo de narrativa coloca o STF como inimigo a ser derrotado, e não como um Poder da República a ser respeitado. A decisão reafirma justamente o contrário: a Justiça não se curva ao peso político de quem viola a lei.

Outro argumento comum é o de que não haveria “fato novo” para justificar a prisão preventiva, e que as medidas cautelares seriam suficientes. Mais uma vez, os fatos desmentem esse discurso.

Após sucessivos descumprimentos de condições impostas — como uso de redes, contatos vedados e limites da prisão domiciliar —, a própria Polícia Federal trouxe elementos concretos de risco: convocação de vigília em frente à residência do réu, por meio de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro.

Essa convocação usou apelo religioso e político para chamar apoiadores a uma mobilização física, criando um cinturão humano no local em que ele cumpria a prisão domiciliar. Isso não é um encontro de oração inocente; é a montagem de um cenário favorável ao tumulto e à pressão sobre as autoridades.

Além disso, esse tipo de ato facilita, na prática, a possibilidade de fuga e de enfrentamento à ação policial. Em qualquer processo penal sério, isso é visto como dado objetivo de risco, não como mero detalhe.

O STF também destacou que essa convocação não é um fato isolado no tempo. Ela dialoga com o modus operandi dos acampamentos golpistas de 2022 e das manifestações que antecederam e sucederam os atos de 8 de janeiro.

Mais grave: conecta-se ao plano já identificado de retirada emergencial de Bolsonaro do país por meios militares (RAFE/LAFE), caso o golpe falhasse. Tudo isso forma um conjunto coerente de evidências, não uma coincidência.

Some-se a isso a fuga de corréus e aliados para o exterior, como Alexandre Ramagem, Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro, todos ligados à mesma trama antidemocrática. O quadro deixa de ser uma hipótese remota para se tornar um risco concreto à aplicação da lei penal.

Há ainda um dado decisivo: o registro de violação da tornozeleira eletrônica de Jair Bolsonaro, às 0h08 de 22/11/2025, exatamente no contexto dessa mobilização de apoiadores.

Em qualquer processo criminal, a tentativa de romper o equipamento de monitoramento é, por si só, forte indício de intenção de fuga. Quando isso ocorre com um condenado por tentativa de golpe, cercado por um grupo organizado e com histórico de articulação internacional, o risco é incontornável.

Um terceiro argumento contrário à prisão é o de que ela violaria a liberdade de expressão e de culto. Essa crítica mistura garantias reais com pretextos políticos para blindar comportamentos ilegais.

A lei vale para todos, começando por quem já esteve no centro do poder. Isso não elimina conflitos políticos, mas estabelece um limite claro: o Estado não se ajoelha diante da chantagem institucional.

Ninguém está sendo preso por rezar, por orar ou por expressar ideias impopulares. A decisão do STF é clara ao dizer que o problema não é a oração em si, mas o uso instrumental do discurso religioso e da mobilização de fiéis como escudo humano para impedir o cumprimento da lei.

Liberdade de culto não é licença para montar barricadas simbólicas e físicas contra ordens judiciais. Liberdade de expressão não abrange o direito de organizar turbas para proteger um condenado da ação da Justiça.

Do ponto de vista técnico, a decisão aplica parâmetros clássicos da prisão preventiva: garantia da ordem pública, conveniência da instrução e, sobretudo, assegurar a aplicação da lei penal diante do risco concreto de fuga, conforme o art. 312 do Código de Processo Penal.

O STF citou precedentes em que reconheceu a evasão (ou tentativa de evasão) como motivo legítimo para custódia cautelar, justamente para impedir que o processo fique “à mercê de seu suposto autor”. Esses critérios são estáveis e conhecidos por toda a comunidade jurídica.

Se esses parâmetros são válidos para réus anônimos, devem valer, com ainda mais razão, para quem tem poder político, recursos financeiros e redes internacionais de apoio. É isso que torna a decisão coerente com a ideia de igualdade perante a lei.

Na política, há quem argumente que prender um ex-presidente “aprofundaria a polarização” e “alimentaria o discurso de mártir”. Esse risco existe, mas não pode servir de blindagem para a impunidade.

O risco maior é outro: mostrar ao país que a tentativa de destruir a democracia pode sair barata, desde que o autor tenha capital eleitoral suficiente. Essa lógica é o exato oposto da República e corrói a confiança nas instituições.

A mensagem que o STF envia com esta decisão é outra: a lei vale para todos, começando por quem já esteve no centro do poder. Isso não elimina conflitos políticos, mas estabelece um limite claro: o Estado não se ajoelha diante da chantagem institucional.

Importa notar, também, o cuidado da decisão em separar firmeza institucional de humilhação pessoal. O ministro determina que a prisão seja cumprida sem algemas, sem espetáculo midiático e com garantia de atendimento médico adequado.

Não há cena de linchamento, nem pirotecnia. O que há é o exercício sóbrio da autoridade judicial, que protege a dignidade da pessoa humana ao mesmo tempo em que reafirma a força da Constituição.

Outro ponto que merece ser ressaltado, em tom de celebração republicana, é a atuação articulada entre instituições. A prisão preventiva não foi um ato isolado de um ministro “sozinho no mundo”, como alguns querem sugerir.

Se aceitarmos que a prisão preventiva é legítima quando se trata de um jovem negro da periferia que rompe a tornozeleira e foge, mas a considerarmos “ditadura” quando o réu é um ex-presidente branco, rico e influente, estaremos assumindo uma justiça seletiva.

Houve manifestações técnicas da Polícia Federal, elementos concretos trazidos pela investigação, o crivo do Ministério Público e diálogo com decisões anteriores da Turma e do Plenário, mostrando continuidade e coerência. É a engrenagem institucional funcionando como deve ser em uma democracia madura.

No fundo, o debate sobre a prisão de Bolsonaro é um teste para a nossa compreensão de igualdade perante a lei. Se aceitarmos que a prisão preventiva é legítima quando se trata de um jovem negro da periferia que rompe a tornozeleira e foge, mas a considerarmos “ditadura” quando o réu é um ex-presidente branco, rico e influente, estaremos assumindo uma justiça seletiva.

A decisão do STF aponta na direção oposta: aplica ao ex-presidente os mesmos critérios que consolidou em tantos outros casos, com base em fatos, riscos e provas. É isso que dá à decisão sua força simbólica e pedagógica.

A democracia brasileira já tolerou, por tempo demais, a lógica de que golpistas, torturadores e conspiradores contra a ordem constitucional terminam protegidos por pactos de silêncio ou por acordos políticos. Desta vez, a escolha foi diferente.

Ao decretar a prisão preventiva de Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal afirma algo simples e poderoso: quem tenta destruir o Estado Democrático de Direito responde por isso, com todas as garantias, mas também com todas as consequências.

Não se trata de comemorar a desgraça de uma pessoa, e sim de reconhecer um marco institucional. A Constituição de 1988 está sendo levada a sério, inclusive quando dói, inclusive quando alcança figuras que muitos julgavam intocáveis.

Em um país acostumado à impunidade dos poderosos, ver a lei ser aplicada de forma republicana é, sim, motivo de celebração cívica. É a democracia dizendo, com todas as letras, que não será derrubada sem lutar – e que a luta dela se faz com instituições, com processo, com provas e com decisões como esta.

*Paulo Lemos é advogado criminalista e especialista em Direito Público-administrativo e Eleitoral, pela Escola Fundação do Ministério Público de Mato Grosso e Universidade de Santa Cruz do Sul do Rio Grande do Sul.

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