Vidas que Importam: Do Nó do Estigma ao Abraço da Cidade

Por Paulo Lemos

 

Falar da Joana, que vende bala no sinal, do Marcos, que busca um resto de dignidade no crack, da Luana, que luta para que seu nome social seja respeitado no posto de saúde, do Rafael, que constrói poesia no beat de um tamborão—não é falar de “os outros”. É mirar o reflexo da nossa própria humanidade no espelho embaçado da cidade.

A palavra “vulnerável” adormece a consciência. A verdade é que por trás dela há histórias de portas arrombadas pela vida: a fome que não espera, o racismo que silencia, a transfobia que expulsa de casa, a escola que vira labirinto, o despejo que chega sem aviso.

Quando o chão some, o que sobra? A rua vira cama, a droga vira alívio imediato, o corpo vira moeda, a identidade vira guerra. E o estigma? É o nó que amarra toda essa dor e pendura nela um cartaz: “Culpa Deles”.

Esse nó é herança. Veio nos navios, nos livros de lei, nos sermões que ditavam quem era gente e quem era coisa. Séculos de uma ordem que ensinou que alguns são descartáveis. E essa lição envenenada se repete: no olhar que atravessa a pessoa em situação de rua como se fosse um móvel quebrado, no comentário sobre “vagabundos” no baile funk, na piada que reduz uma travesti a um objeto, na certeza de que o rap é “coisa de bandido”.

Para manter esse jogo de cadeiras musicais onde sempre faltam assentos, criam-se fantasmas. O maior deles é o dos “Direitos Humanos para bandidos”. Essa frase pronta tenta nos fazer esquecer que direitos humanos são, antes de tudo, para humanos—e que a humanidade é uma condição, não um prêmio por bom comportamento.

Há um profundo mal-estar quando se fala em economia solidária, ecologia, justiça distributiva. Parecem palavras “de esquerda”, “utópicas”. Por quê? Porque tocam na ferida: questionam o mito do enriquecimento sem limites em um planeta de recursos finitos.

Quem acumulou capital em uma história de séculos de exploração—da terra e das pessoas—enxerga como ameaça quem propõe repartir. Quem sobrevive com um salário mínimo que não paga o aluguel é tratado como fracassado, nunca como vítima de um sistema que concentra mais e mais.

A vizinhança pode trocar o grupo de WhatsApp cheio de pânico por uma roda de conversa na praça. A justiça pode parar de ser uma máquina de triturar os pobres e passar a ser uma ferramenta de reparação.

A democracia participativa assusta, porque tira o poder do berço e o coloca na praça pública. E aí a repulsa se veste de pragmatismo: “Isso é mimimi”, “o mercado não tem sentimentos”. Mas o mercado é feito de pessoas. E quando ele decide que algumas vidas são lucrativas e outras são custo, a cidade adoece.

A verdade é teimosa e simples. Ninguém sonha em ser invisível. Ninguém quer anestesiar a alma se o abraço estiver disponível. Ninguém é descartável. O que chamam de “caso perdido” é um ser humano que a gente perdeu de vista—e que o sistema empurrou para a beira do abismo.

A cultura que nasce na periferia—o rap, o funk, o passinho—não é entretenimento marginal. É a crônica da resistência, o mapa afetivo de quem luta para existir, a economia real de quem vende água, faz som, costura fantasia. É a ecologia social florescendo no asfalto quente.

Desfazer esse nó exige mais do que políticas públicas—exige uma revolução do olhar. Trocar a pergunta “como limpamos essa praça?” por “quem está nessa praça e o que eles precisam?”. É entender que redução de danos não é “ajudar a usar droga”, é ajudar a viver. Que moradia primeiro não é “benefício”, é o alicerce de qualquer reconstrução. Que um documento com o nome e gênero corretos não é “mimimi”, é o reconhecimento oficial de uma alma.

E as soluções? Elas são sementes brotando no concreto. São as cozinhas comunitárias onde o prato de comida vem com conversa. São as hortas urbanas que alimentam o corpo e o espírito de um bairro. São as cooperativas de catadores, mostrando que a verdadeira ecologia une reciclagem e justiça social. São os editais de cultura que pagam o aluguel do mês de um artista da quebrada.

É o sistema de saúde que abraça, sem julgar, a pessoa que usa drogas e a mãe trans que amamenta. É a economia solidária, onde o lucro é medido em vidas restauradas, não em dividendos.

Cada um tem um lugar nessa reconstrução. O poder público pode parar de gerir crises e começar a cultivar vidas—com orçamento que priorize pessoas, não obras faraônicas. As empresas podem entender que sua sobrevivência a longo prazo depende de uma sociedade mais justa, não de mais exploração.

As escolas podem ser territórios de paz, onde a educação emocional e a cultura de rua sejam disciplinas fundamentais. A vizinhança pode trocar o grupo de WhatsApp cheio de pânico por uma roda de conversa na praça. A justiça pode parar de ser uma máquina de triturar os pobres e passar a ser uma ferramenta de reparação.

E o maior sinal de que estamos no caminho certo não é um gráfico de crescimento econômico. É ver alguém que o mundo inteiro jogou fora conseguir trancar a porta de seu quarto, deitar a cabeça no travesseiro e, pela primeira vez em anos, dormir sem medo.

No silêncio, uma pergunta ecoa: e se fosse você? Se a empresa onde você trabalhou por anos te descartasse como um número? Se seu filho fosse expulso de casa por ser quem é? Se a única anestesia para a dor fosse um baseado na esquina? Você não quereria uma mão estendida? Uma cidade que não pergunta “em que você falhou?”, mas “como posso te ajudar a se reerguer?”.

“Vidas que importam” é a recusa radical da matemática perversa que decide quem vale e quem não vale. É a coragem de construir uma cidade onde o desenvolvimento sustentável signifique cuidar das pessoas com o mesmo afinco com que se recicla uma garrafa PET.

Onde a democracia não seja só um voto a cada quatro anos, mas uma conversa permanente na pracinha. Onde a economia não seja uma guerra, mas uma rede de cuidado.

Quando a política vira sinônimo de cuidado, a cidade deixa de ser uma máquina de moer gente e vira um corpo coletivo, um organismo que pulsa, dói, mas também cura.

E o maior sinal de que estamos no caminho certo não é um gráfico de crescimento econômico. É ver alguém que o mundo inteiro jogou fora conseguir trancar a porta de seu quarto, deitar a cabeça no travesseiro e, pela primeira vez em anos, dormir sem medo. Sabendo que, ali, ele pertence. E que amanhã, a praça—e a cidade—serão também dele.

* Paulo Lemos é advogado especialista em Direito Público-administrativo e Direito Eleitoral, também ativista político-social.

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