Gaza: Nenhuma causa mata criança

Por Paulo Lemos

 

Feche os olhos por um instante. Imagine o som seco de um prédio desabando. O pó entra pela garganta. Uma mãe chama pelo nome do filho. Um pai cava com as mãos. Não há estratégia militar nesse momento. Não há geopolítica. Há uma criança que precisa respirar — agora.

É disso que estamos falando quando falamos de Gaza. Não de mapas, siglas e “interesses legítimos”, mas de gente. De bebês que não aprenderam a falar e já precisam aprender a sobreviver. De mulheres que pariram em corredores improvisados. De idosos que não escutam mais as sirenes, só o silêncio que vem depois. De crianças mortas e empilhadas.

Caso isso seja indiferente para você, não gere indignação, não fique consternado, não doa por dentro, já perdeu sua humanidade, sendo que de nada adianta “conquistar o mundo”, pois já perdeu sua alma.

Até na guerra existe limite, sendo, o mais básico deles, vedado atacar e matar civis.

Um imperativo simples, que cabe em qualquer idioma: parem de matar civis. Parem de bombardear hospitais, de bloquear comida e remédios, de tratar um povo inteiro como alvo.

Do lado de fora do teatro de guerra, há também responsabilidade. Ninguém é neutro quando pode evitar e escolhe não fazê-lo. Quem veta cessar-fogo, envia armas, dá cobertura política, chama massacre de “excesso”, participa. Quem lucra com munição enquanto crianças são enterradas, participa. Quem mede palavras para não desagradar aliados, participa. Cumplicidade não é só apertar o gatilho; é cruzar os braços.

O Ocidente gosta de se olhar no espelho dizendo “defendemos valores universais”. Universais para quem? Se direitos valem conforme o passaporte da vítima ou o interesse do aliado, deixaram de ser direitos; viraram privilégio. E privilégio em tempos de guerra tem outro nome: licença para matar.

A seletividade não é só uma incoerência; é uma fábrica de cadáveres. Ela ensina que com as alianças certas tudo é tolerado, e com as alianças erradas, nada é perdoado. Essa pedagogia da indiferença mata hoje — e autoriza novos horrores amanhã.

O que fazer, então? Não precisamos reinventar a civilização; só praticá-la.

Parar. Cessar-fogo já. Corredores humanitários que funcionem de verdade, com segurança e supervisão. Água, comida, eletricidade e cuidados médicos não são moeda de negociação; são o alfabeto da vida.

Cuidar. Abrir as fronteiras para ajuda, proteger hospitais e escolas, garantir abrigo, tratar feridos e traumatizados. Reconstruir não é favor; é dever de quem destruiu e de quem pode ajudar.

A criança que sobrevive hoje precisa de um amanhã para existir — sem isso, só prolongamos a morte.

Responsabilizar. Sanções direcionadas a quem transforma civis em alvo. Impunidade não é paz; é intervalo até a próxima tragédia.

Nada disso é radical. Radical é normalizar o intolerável. É trocar o espanto pela estatística, a compaixão pela análise “técnica”, a criança pelo “dano colateral”. Radical é assistir — e seguir a vida, como se não tivesse nada a ver com isso.

Gaza é um espelho. Ele não mostra só as vítimas; mostra quem somos quando temos algum poder e escolhemos não usá-lo para proteger vidas. Sequer damos um piu.

Talvez você pense: “Mas o mundo é complexo”. É mesmo. Ainda assim, há verdades simples que não envelhecem. Uma delas é esta: nenhuma causa enterra crianças.

Por isso, quebremos o ciclo do cálculo. Chamemos as coisas pelo nome: massacre, fome como arma, punição coletiva, bombardeio de hospitais.

Exijamos que parem. Cuidemos de quem ficou. Julguemos quem mandou e quem executou — e também quem ajudou, vetou, vendeu, justificou. Não por vingança, mas para que a lei volte a significar “proteção”, e não “retórica”.

No fim, tudo volta àquela cena inicial: a mãe que chama, o pai que cava, a criança que tenta respirar. Se a política, a diplomacia e o direito não servem para salvá-los agora, servirão para quê?

A história não lembrará dos discursos, mas dos túmulos. E de quem tentou — ou não — impedir que mais túmulos fossem abertos.

Nenhuma causa mata crianças. E se disserem o contrário, é a nossa humanidade que estará sendo soterrada.

* Paulo Lemos é Advogado Criminalista e Defensor de Direitos Humanos.

paulolemosadvocacia@gmail.com

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