O PL das reintegrações de posse e o risco da escalada da violência no campo

Por: Claudia Dadico, Daniel Oliveira, Carlos Gondim (*) – Jornal Brasil Popular/DF

Nos próximos dias deve ir ao plenário da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 8262/2017, que retira do Poder Judiciário a análise de reintegrações de posse em caso de conflitos urbanos e agrários. Referido projeto de lei altera o artigo 1.210 do Código Civil para que proprietários de áreas ocupadas possam se servir de forças policiais em atos de reintegração de posse independentemente de ordem judicial.

A proposta se apoia no direito de propriedade e considera que a via judicial para a efetivação de reintegrações de posse é demorada, produziria “insegurança jurídica” e desestimularia atividades econômicas. Assim, no entender da proposição, seria justificável subtrair do Poder Judiciário o comando de ações de reintegrações de posse, facultando ao proprietário coordenar o procedimento com auxílio de forças policiais.

O artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988, garante o direito de propriedade. No entanto, desde 1934 as constituições brasileiras condicionam o direito de propriedade ao cumprimento da função social, afastando a antiga noção de propriedade absoluta. A Constituição Federal de 1988 densificou a função social e, além das condicionantes ao direito de propriedade, estabeleceu sanções agrárias e tributárias ao imóvel rural que não cumpre a função social da terra. Assim, a ordem jurídica brasileira garante o direito de propriedade condicionada ao bem estar coletivo e, ao mesmo tempo, reconhece que a democratização do acesso à terra é uma etapa necessária ao desenvolvimento do país; inclusive determinando, no artigo 188 da Constituição, que a destinação de terras públicas deve ser compatibilizada com as políticas agrárias.

A Convenção Interamericana de Direitos Humanos – conhecida como Pacto de San José de Costa Rica –, do qual o Brasil é signatário desde 1992, enuncia, em seu artigo 21, que “toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens”, podendo a lei “subordinar esses uso e gozo ao interesse social”.

A funcionalização do direito de propriedade, estabelecida constitucionalmente, insere uma dimensão coletiva no exercício do direito individual de propriedade, na medida em que o exercício da propriedade deve necessariamente satisfazer às exigências do bem comum e do interesse público. De igual forma, a proteção possessória que deriva do direito de propriedade também deve atrelar-se à função social da terra. ‘Segundo Antonio Hernandes Gil “a função social da propriedade somente pode ser desempenhada mediante a função social da posse, pois é esta que representa, de fato, o exercício dos poderes de domínio; consequentemente se esta não estiver contribuindo para o bem-estar coletivo, atendendo assim sua função social, também não estará a propriedade” (La Función Social de laPosesión – ensayo de teorización sociológico-jurídica, [1969] e La posesión como institución jurídica y social [1987]).

É lícito ao possuidor esbulhado repelir turbações ou ameaças a sua posse. Trata-se do desforço possessório, instituto clássico do direito civil. Todavia, o Estado só irá proteger a posse de particulares se esta posse for cumpridora da função social da terra; e aí mora a primeira grande inconstitucionalidade no Projeto de Lei nº 8262/2017: como subtrair ao Poder Judiciário a avaliação se a posse cuja reintegração é pleiteada cumpre ou não sua função social? Por evidente, não será o possuidor que pretende a reintegração de posse – ou as forças policiais – o ator competente para valorar se aquela posse turbada ou esbulhada cumpre ou não sua função social.

Nem sempre uma ocupação de terra significa a real ocorrência de esbulho, turbação ou ameaça à posse. Se não há o desejo, por parte do ocupante, de se apropriar da área ocupada, mas tão somente exercer pressão política para que o Poder Público efetue as ações necessárias à Reforma Agrária, não haverá necessidade de reintegração de posse e, menos ainda, do uso de forças policiais. O direito de reivindicar direitos, de exercer pressão política para que o Poder Público cumpra os mandamentos constitucionais relacionados à Reforma Agrária, o protesto e a manifestação não se confundem com uma posse esbulhada por não terem o elemento subjetivo que caracteriza o ato de “apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia” previsto no artigo 161, caput, do Código Penal.

Manifestações pacíficas em favor da implementação da Reforma Agrária se inserem no âmbito dos direitos constitucionais à livre manifestação e à livre associação. Segundo o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em voto proferido no julgamento do Habeas Corpus nº 4.399/96, no Superior Tribunal de Justiça, “A conduta do agente do esbulho possessório é substancialmente distinta da conduta da pessoa com interesse na reforma agrária.(…) No esbulho possessório, o agente, dolosamente, investe contra a propriedade alheia, a fim de usufruir um de seus atributos (uso). Ou alterar limites do domínio para enriquecimento sem justa causa.” Já na ocupação com caráter de manifestação, sustenta o Ministro, “pode haver, do ponto de vista formal, diante do direito posto, insubordinação. Materialmente, entretanto, a ideologia da conduta não se dirige a perturbar, por perturbar, propriedade. Há sentido, finalidade diferente. Revela sentido amplo, socialmente de maior grandeza, qual seja, a implantação da reforma agrária.”

Deste modo, a análise do elemento subjetivo do agente da ocupação, ou seja, se o ato se destina a tomar a posse alheia ou a reivindicar a atuação do Poder Público na implementação da Reforma Agrária, não deve ser subtraída do Poder Judiciário.

Outro elemento que gera preocupação caso o Projeto de Lei nº 8262/2017 venha a ser aprovado é a possibilidade de uma escalada de violência em ações de reintegrações de posse. Assim como diversas ações policiais, tais como as detenções, passam pelo controle de legalidade do Poder Judiciário, atos que envolvem o uso da força como as reintegrações de posse necessitam do controle judicial, seja para evitar abusos, seja para que atos de violência desnecessária sejam registrados, apurados e sancionados. Ações de reintegração de posse coordenadas pelo Poder Judiciário tendem a ser menos violentas do que se fossem coordenadas pelo possuidor que se sente esbulhado. Quem limitaria o uso abusivo da força em um ato que só depende da vontade do particular, sem o Poder Judiciário tomando pra si a coordenação das ações de força?

Aliás, diga-se, foi a necessidade de controlar e racionalizar os conflitos sociais que fez com que o Estado Moderno, através do Poder Judiciário, atraísse para si a competência de dirimir conflitos entre particulares, retirando dos particulares a possibilidade de que conflitos gerassem o extermínio ou o saque entre adversários. Assim, é o Poder Judiciário o agente competente para conter o uso imoderado da força em atos de reintegração de posse. Retirá-lo do controle de tais atos é escancarar as portas para a barbárie em casos de ocupações ou de mera disputa possessória, inclusive as disputas entre vizinhos. Disputas possessórias, diante de seu caráter eminentemente patrimonial e privado, não se compatibilizam com a utilização extrajudicial das forças policiais, sob pena de ensejar atuação abusiva e parcial do aparato estatal, a beneficiar um dos lados no conflito de interesses.

Lembre-se que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Garibaldi vs. Brasil (CIDH, decisão de 23 de setembro de 2009, Série C, no 203) apontou a responsabilidade do Estado brasileiro relativa a despejos extrajudiciais, com recurso ilegal à força policial, no contexto “do descumprimento [da] obrigação de investigar e punir o homicídio do Senhor Sétimo Garibaldi (…); [durante] uma operação extrajudicial de despejo das famílias de trabalhadores sem terra,que ocupavam uma fazenda no Município de Querência do Norte, Estado do Paraná”. Por evidente, a aprovação do Projeto de Lei nº 8262/2017 tende a ampliar os casos de violência desmedida em atos de reintegração de posse.

No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 828, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu balizas que representam um significativo avanço na disciplina das desocupações coletivas de terras, prevendo importantes mecanismos de garantia dos direitos em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou de área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações em situação de vulnerabilidade. Após uma série de decisões que suspenderam despejos durante a Pandemia, em outubro de 2022, decisão referendada pelo plenário do Tribunal adotou um regime de condições para as reintegrações de posse antes suspensas, indicando a necessidade de:

a) Instalação imediata de comissões de conflitos fundiários nos tribunais que possam servir de apoio operacional a juízes;

b) Realização de inspeções judiciais e de audiências de mediação pelas comissões de conflitos fundiários como etapa prévia e necessária às ordens de desocupação coletiva, contando com a participação do Ministério Público, da Defensoria Pública e de órgãos responsáveis pelas políticas agrárias e urbanas, nos termos do art. 565 do Código de Processo Civil e do art. 2º, § 4º, da Lei nº 14.216/2021;

c) Que medidas administrativas que possam resultar em remoções coletivas de pessoas vulneráveis (i) sejam realizadas mediante a ciência prévia e oitiva dos representantes das comunidades afetadas; (ii) sejam antecedidas de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida; (iii) garantam o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos ou adotem outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família.

No caderno Conflitos no Campo, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram registrados, em 2024, 2.183 conflitos pela terra. Os conflitos envolveram 1.190.441 pessoas e 75.053.684 hectares de terra. Parte destes conflitos podem estar relacionados a movimentos ruralistas que tem apostado na violência direta contra famílias em acampamentos e ocupações. Neste contexto, a aprovação do PL nº 8262/2017 pode servir de instrumento de legalização de atos de violência direta no campo, sem que o Estado possa mediar e disciplinar tais conflitos. Registre-se que o Mato Grosso, onde a terra sempre foi fonte de muitos conflitos, aprovou a Lei Estadual nº 12.977/2025, que autoriza a aplicação imediata de medida de segurança pública administrativa para resguardar, manter ou reintegrar a posse ao suposto possuidor e/ou proprietário de imóvel que sofreu ou está na iminência de sofrer turbação ou esbulho possessório.

Nota Técnica nº 6/2025 da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, examinou detalhadamente a situação da violência no campo e propôs balizas mínimas para a atuação das forças policiais. Assenta a nota que a Constituição Federal é expressa ao consagrar a garantia fundamental do devido processo legal, incluindo, por consequência, a inafastabilidade da jurisdição, o juiz natural, a ampla defesa e o contraditório (art. 5°, XXXV, XXXVII, LIV e LV), de forma que incumbe ao Poder Judiciário, de modo exclusivo, o dever-poder de resolver conflitos sociais, ao passo que conferir às forças policiais o papel de acolher determinada pretensão possessória, ainda que de forma precária e urgente, representa inafastável violação ao devido processo legal, em especial à inafastabilidade da jurisdição.

Pontue-se que a posse – como elemento de fato – não carece de título de propriedade. Ou seja, é possível que uma porção de terra seja possuída por uma pessoa e ser de domínio de outra e, nem por isso, o proprietário fará jus à proteção possessória. Ocupações consolidadas, duradouras, produtivas, utilizadas como fonte de trabalho e moradia familiares podem ter a posse preservada frente ao desejo de um proprietário de reaver, de imediato, a posse sobre o bem. Assim, ações de reintegração de posse podem apresentar complexidades que implicam, necessariamente, no protagonismo do Poder Judiciário. Quem vai avaliar quem tem a melhor posse – o proprietário ou ocupante – se será o proprietário o dirigente dos atos de reintegração de posse como pretendido pelo Projeto de Lei nº 8262/2017?

Para ampliarmos o debate sobre o tema, a edição de agosto do Diálogos de Justiça e Paz trará o tema “Criminalização dos movimentos populares: a Doutrina Social da Igreja deve ser atualizada pelos pobres”.

No dia 4 de agosto (segunda-feira), às 19h, no Centro Cultural de Brasília, na SGAN 601 – Módulo D – Asa Norte, estaremos com Ayala Ferreira, liderança nacional do MST, assentada da reforma agrária e educadora popular, debatendo sobre esse importante tema. É um evento híbrido, com transmissão simultânea pelos canais do Youtube em www.youtube.com/cjpbrasilia e www.youtube.com/olmaobservatorio que permitirá a interlocução com a sociedade brasileira de maneira amplificada.

Não se pode ignorar que a realidade fundiária brasileira é marcada por problemas históricos e generalizados de grilagem e titulações fraudulentas de terras, o que impõe a necessidade de um exame judicial sobre a validade do título de domínio antes que o Estado possa disponibilizar seu poder de coerção e suas forças policiais em atos de reintegração de posse. Deste modo, aquele que alega ser proprietário só poderá ter a proteção estatal após comprovada a legitimidade de seu título, motivo pelo qual o Projeto de Lei nº 8262/2017 representa um risco ao próprio direito de propriedade, na medida em que autorizaria que proprietários ilegítimos e grileiros se sirvam de forças estatais para defesa de seus supostos domínios.

[1]Claudia Maria Dadico é juíza federal aposentada, Diretora do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e referência na defesa dos direitos humanos e da democracia.

[2]Daniel Oliveira é Defensor Público e atua no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.

[3]Carlos Henrique Gondim é Procurador Federal atuando no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar,mestre em Direito Achado na Ruae membro da Comissão Justiça e Paz.

Serviço Diálogos de Justiça e Paz

Quando? 04 de agosto (segunda-feira), às 19h

Onde? Presencial no CCB – SGAN 601 – Módulo D – Asa Norte

Quem?

  • Ayala Ferreira, liderança nacional do MST, assentada da reforma agrária e educadora popular
  • Claudia Maria Dadico, juíza federal aposentada e referência na defesa dos direitos humanos e da democracia
  • Mediador Carlos Henrique Gondim, mestre em Direito Achado na Rua e membro da Comissão Justiça e Paz.

Transmissão ao vivo:
youtube.com/olmaobservatorio
youtube.com/cjpbrasilia

(*) Por Claudia Dadico[1], Daniel Oliveira[2], Carlos Gondim[3]

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