O VELHO, O MAR E A URP DOS SERVIDOES DA UnB

Por José Geraldo de Sousa Júnior

No livro O Velho e o Mar (1952), de Ernest Hemingway, também perenizado no cinema (Warner Bros. Entertainment, com Spencer Tracy, direção de John Sturges, 1958), o velho Santiago, um pescador experiente, enfrenta o mar como um desafio à sua dignidade e perseverança. Após 84 dias sem pegar peixe, ele parte para o mar aberto, determinado a provar seu valor. Lá, ele trava uma batalha épica com um enorme espadarte (marlim), símbolo da força bruta e da beleza da natureza. Durante três dias, Santiago luta com coragem e paciência, mas ao retornar para a costa, os tubarões devoram o peixe. Apesar disso, ele volta com o esqueleto do marlim como testemunho de sua luta.

Santiago representa a condição humana: coragem, resistência e a busca de significado, mesmo diante da possibilidade do fracasso; o mar simboliza a vida, com seus mistérios e desafios inevitáveis; o peixe (marlim) simboliza a grandeza dos sonhos e da luta pela dignidade; os tubarões simbolizam as forças inevitáveis que desgastam e corroem as conquistas humanas.

No fim, Santiago conserva sua honra e espírito inquebrantável,  na crença – de Hemingway – de que “o homem pode ser destruído, mas não derrotado”.

A realidade dramática e carregada de simbolismo que a arte dá conta de representar, remete a uma realidade igualmente dramática que vem sendo vivenciada pelos servidores da UnB ao longo de mais de 30 anos.

Com efeito, em decisões recentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, contra a posição de órgãos de fiscalização e controle da Administração Pública, principalmente o Tribunal de Contas da União, o Judiciário pôs fim a uma controvérsia, entremeada por incidências administrativas e também judiciais, mas que acabou por reconhecer, com base sobretudo no princípio da segurança jurídica e de estabilização de situação de fato constitutiva de direito,  a continuidade do pagamento da parcela referente à Unidade de Referência Padrão de 1989 (URP), no percentual de 26,05%, aos servidores da UnB, na forma de concessões já transitadas em julgado, em que esse percentual se fixa como acréscimo à remuneração, decorrente de um ato isonômico praticado pela Reitoria da UnB.

Recuperando o fato gerador, a decisão do reitor Antônio Ibañez Ruiz, em 1991, de estender o entendimento de então sobre o pagamento da URP a todos os servidores da UnB, incluindo técnicos e docentes, foi um ato administrativo que, na época, baseado na autonomia universitária e em decisões judiciais que reconheciam o direito  para alguns grupos de servidores. Essa decisão foi importante para garantir que todos os servidores da UnB recebessem o percentual decorrente (26,05%), como um ganho salarial incorporável ao regime remuneratório dos servidores.

Agora, por injunção dos mesmos órgãos que “perderam” a ação, o entendimento formal de caráter executório da decisão, quer estabelecer limites, sob o fundamento de absorção do percentual de 26,05% assegurado, que a decisão manda ter continuidade, vale dizer, “direito à permanência do pagamento do percentual nominal de 26,05% pelos reajustes concedidos à categoria, e a não extensão do pagamento aos que ingressam na categoria posteriormente ao trânsito em julgado da decisão do STF.

Na questão da absorção dos 26,05% pelos reajustes, considerando que o ganho dos servidores não equivale a um reajuste, esclarece que a sentença que concedeu a segurança, contudo, assegurou a continuidade do pagamento de 26,05% que vinha sendo realizado há mais de 30 anos – dentre eles, mais de 20 anos por força da liminar anteriormente deferida no STF, ou seja, numa demonstração de estabilização de um regime remuneratório levando a que  “o pedido deduzido e acolhido foi o de continuidade do pagamento do percentual sem absorção”, referindo expressamente ao “direito à permanência do pagamento do percentual nominal de 26,05%”.

Entende-se, assim, pois, a motivação para a greve dos servidores que reivindica acatamento pelo sistema de administração pública, desde que o judiciário decidiu pelo direito à continuidade do pagamento. E é nesse âmbito que a questão precisa ser definida, buscando-se a concertação dos órgãos da Administração – TCU, AGU, CGU, MGI, UnB, e até Presidência da República – para encontrar uma mediação com o devido reconhecimento da justiça e dignidade do restabelecimento ético e legal da questão remuneratória, com a mesma diligência exemplar, com a qual, recentemente e ainda em curso, harmonizou o dano dos expedientes de consignação para aposentados no caso INSS.

Penso que esse é o papel do Estado e o desempenho da máquina governamental, em face das exigências políticas e da defesa intransigente do estado de direito numa sociedade democrática.

Assim, entre outras leituras, a que desenvolvi a propósito de livro que eu próprio organizei – http://estadodedireito.com.br/sociedade-democratica-direito-publico-e-controle-externo/. Ali digo que sempre que se discute papel do Estado, desempenho de máquina governamental, servir bem o cidadão, reformar o sistema burocrático e modernizar os aparelhos de gestão institucional, surge uma tentação poucas vezes refreada de orientar a análise dos mecanismos que desviam a administração pública de seus objetivos essenciais – compatibilizar eficiência e eficácia com equidade e democracia – para atribuir aos servidores públicos a responsabilidade por tais desvios e transformá-los em custos de manutenção do sistema que é preciso minimizar e até mesmo eliminar e desse modo favorecer intenções adrede de sua afetação no interesse de projetos políticos em curso.

Para além disso, mencionei no artigo, uma tendência recente incrementada pelo oportunismo propagandista, tende a oferecer a dignidade do servidor público [des]qualificativos, para o simbolismo expiatório que não hesita em atribuir função sacrificial a uma categoria social que tem sido garante da boa gestão do interesse público.

Os servidores, ao contrário, como a literatura foi sempre pródiga em destacar, carregam a respeitabilidade da função pública, mesmo quando a fina ironia de autores que primavam pela profunda compreensão dos matizes e das relações autênticas, preserva a boa descrição dos caracteres típicos de um determinado tempo. Pode-se encontrar isso em muitas passagens da monumental Comédia Humana de Balzac; assim como em Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade, dois notáveis escritores brasileiros e, simultaneamente, pela vida toda, servidores públicos ativos e engajados exercitando cidadania em seu duplo ofício.

Ora, pensar Estado democrático é pensar a tarefa de refundação democrática da administração pública. Se o Estado democrático é fundamento para a transformação da cidadania abstrata em cidadania ativa e participativa, a mediação possível para uma institucionalidade livre de vícios, entre aqueles descritos por Raymundo Faoro [Os Donos do Poder], Sérgio Buarque de Holanda [Raízes do Brasil], Victor Nunes Leal [Coronelismo, Enxada e Voto] – paternalismo, autoritarismo, clientelismo, cunhadismo, filhotismo, nepotismo – está assentada no desempenho organizado, responsável, eficiente e profissional do servidor público.

A propósito da questão da administração pública e o regime de seus servidores, o historiador Toynbee, chegou a formular uma teoria explicativa do sucesso dos países e dos Estados, tomando como exemplo o Império Romano. Para ele, a grande expansão de Roma não se deveu tanto ao seu formidável exército, mas sim ao seu funcionalismo civil, altamente capaz, responsável e bem remunerado e organizadamente distribuído em todos os espaços administrativos do Império [in “Redefinindo a relação entre o professor e a universidade: emprego público nas Instituições Federais de Ensino?, organizado por Cristiano Paixão e publicado pela Faculdade de Direito da UnB, vol. , da Coleção “O que se pensa na Colina”, Brasília, 2002].

Posta nesses termos a questão, urge que se realizem negociações a sério para que direitos conquistados não se exauram em artifícios que esvaziem a sua materialidade. Por isso, tendo iniciado o texto com a metáfora literária da saga do velho e do mar, fecho-o com o registro filosófico do notável Rudolf von Jhering.

Na obra “A Luta pelo Direito” (Der Kampf ums Recht), o notável jurista,  no contexto de sua crítica ao “direito sem luta”, onde demonstra a contradição de reconhecer formalmente um direito sem que ele possa ser efetivamente exercido, se vale de uma outra metáfora, a da “servidão de passagem que reconhece o direito mas proíbe deixar pegadas”: “Um direito que só existe no papel e não encontra aplicação prática é como uma servidão de passagem que reconhece o direito de passagem, mas proíbe deixar pegadas.”

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