América Latina: as Ruas Pedem Justiça, Cidadania e Direitos

Por: José Geraldo – O Direito Achado na Rua

Na crônica dominical de Cláudio Ferreira – Cidade Nossa, Revista do Correio. Correio Braziliense, ano 17, nº 1004, p. 29), o jornalista começa o seu texto – O velho dilema de cada dia – desnudando o nosso cotidiano desafiador, chamando a atenção para os semáforos de Brasília, iguais em qualquer grande cidade. “Em cada semáforo, um aperto no coração diante de um cartaz curto e direto onde está escrito ‘Fome’…escancarando ainda mais essa realidade cruel. Ele fecha a crônica dizendo que ela não tem conclusão, só “tem tristeza e um vazio de ideias”, diante de “um cotidiano cruel nos lembrando, a toda hora, que existem vidas diferentes, vividas de maneiras bem piores que a nossa. Estado ineficaz, país injusto, desigualdade sem fim”.

Recolhi um desses cartazes, peculiar, porque pede ajuda com a petição no papelão, enquanto veste uma camiseta que exibe uma consciência de que dignidade, justiça e direitos não são dados, se conquistam, se se luta por eles.

A crônica e o cartaz, me remeteram ao método aplicado por José Murilo de Carvalho, e logo me acudiram as várias formas que a consciência de direito forja na luta e como a encontramos expressa nas vias e nos muros de nossas ruas, América Latina afora.

Em Os Bestializados, José Murilo de Carvalho rejeita a noção abstrata de cidadania inscrita no sufrágio, no contexto de radical desigualdade social e de exclusão, na História do Brasil. Por isso ele identifica no protesto e na revolta, as condições substantivas de luta por reconhecimento e vai estudar as revoltas operárias (greves) e populares (revolta da vacina, revolta da chibata), encontrando nos panfletos, nas pichações, nas faixas, o significado emancipatório das reinvindicações por justiça e por direitos.

Essa pichação, aliás, me inspirou para nominar livro que organizei e que traz para o âmbito teórico o chamado que vem das ruas, conforme, para melhor conhecimento – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/.

No livro, cuida-se de apreender a identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.

A expressão que dá título a este artigo é extraída de um cartaz pintado nos muros de Caracas, por apoiadores do Presidente Chávez: Lascalles no se calan! Exigimos justicia!, logo das mobilizações em 2002, quando da tentativa de golpe que ele sofreu, mas que grande apoio popular o repôsà frente do poder na Venezuela.

Não só na Venezuela, mas em muitas circunstâncias recorrentes na América Latina e no Brasil, vê-se com boa expectativa democrática as movimentações sociais, salientando o fato relevante de um protagonismo popular que, de maneira crescente, se dando conta de seus direitos, volta às ruas para exigi-los. Isso indica,apesar de surtos de autoritarismo, que esses movimentos parecem sinalizar às elites que elas não são adequadas ao momento democrático experimentado no continente,mostrando que o povo latino-americano está atualmenteum passo à frente das elites que fazem qualquer coisa para o governar, não hesitando em golpear a democracia, ou instalar ditaduras, apesar da mensagem das ruas.

Entre as imagens das movimentações de rua em Quito, em 2005, chamava a atenção a retomada da palavra de ordem Que se vayan todos – que todos partam. Surgida pela primeira vez na Argentina, nos piquetes e nos cacerolazos (panelaços) de 2001/ 2002, a consigna que rapidamente se inscreveu no imaginário latino-americano sublevado,e  logo passou a traduzir a interpelação popular pelo desmantelamento das estruturas oligárquicas e das instituições por elas criadas e funcionalmente a serviço de seus interesses.

É a cidadania do protesto tal como se depreende de estudos sobre participação política de trabalhadores. EmConstrutores de Brasília e, sobretudo, emTrabalhadores pobres e cidadania, Nair Heloisa Bicalho de Sousa (https://estadodedireito.com.br/trabalhadores-pobres-e-cidadania/) trata exatamente do processo de formação do sujeito coletivo na construção civil a partir da vida em família, da experiência de trabalho nos canteiros de obra e da cidadania do protesto presente nos quebra-quebras, onde os trabalhadores usam a força para garantir direitos até a vivência das greves operárias, momentos de configuração emergencial do sujeito coletivo. Com base nas suas experiências no mundo privado e nos conflitos vivenciados no cotidiano de trabalho, nos quebra-quebras, nas greves e nas representações sociais sobre justiça, lei e direito, a Autora constata a configuração de uma identidade de interesses compartilhados que tornam possível a instrumentalização de uma luta coletiva pela criação de direitos.

A tese de Nair Bicalho, exposta em seus livros, reforça o significado transformador presente na ideia de redescoberta democrática do trabalho, como condição para projetar um novo mundo possível. Ainda que empurrados para o limite da exclusão com a supressão dos direitos da cidadania, a luta operária e sindical, quando articulada à questão da justiça, abre um campo simbólico nas representações culturais da ação, para o autoreconhecimento de um sujeito coletivo, capaz de se tornar protagonista de estratégias de alcance público que garantem legitimidade e reconhecimento para suas demandas e seu projeto de sociedade e de mundo.

Projetos de sociedade e de mundo que têm sido a pedagogia do MST – Movimento Social sem Terra. Mostrei isso aqui no Jornal Brasil Popular, em minha Coluna O Direito Achado na Rua (https://brasilpopular.com/mst-formacao-comunitaria-em-direitos-humanos/). Entre muitos aspectos que se inserem na agenda de lutas desse importante Movimento Social, de algum modo aceita pela governança para conferir itens de negociação, sobretudo com os movimentos sociais do campo, basta ver os enunciados dos representantes dos principais movimentos – MST e também Via Campesina – enquanto denunciam a criminalização que sofrem e propõem  a valorização da vida no interior, com geração de emprego e oportunidade de formação para jovens com a implantação de milhares de pequenas agroindústrias na forma de cooperativas, capazes de dar emprego e estudo a milhões de assentados e participantes dos programas de reforma agrária e de acesso à terra  e a territórios (quilombolas, ribeirinhos, indígenas), em confronto com os modelos promovidos pelo capitalismo financeiro e por suas  grandes empresas assentadas na monocultura, onde cada fazenda se especializa em um produto, com uso intensivo de máquinas agrícolas e agrotóxicos (https://estadodedireito.com.br/o-mst-e-a-memoria-mst-1984-2024-caderno-de-formacao-no-61/). Por isso a continuidade de sua consigna fundacional tal como expressava em faixas e muros quando da realização de seu 2º Congresso: “Ocupar, Resistir, Produzir”.O VIIº Congresso adiado para 2025 por causa da tragédia do Rio Grande do Sul, tem como lema: “Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!”.

Nossa realidade é a de “não escapar dos julgamentos”, conforme o exercício diário a que nos sentimos compelidos diante de tantos dilemas com que nos defrontamos, voltando ao sentimento que Cláudio Ferreira propõe em sua crônica. O importante é não desistir para escapar da fogueira, diz o filósofo anônimo na estrutura arquitetônica que circunscreve o marco zero de Brasília, recentemente descoberto na reforma dessa estrutura: “Você desistiu de escapar da fogueira?”

Contanto, recomenda o filósofo, escrevendo outra lição na nossa ágora, que se tenha todo o cuidado com as exigências da revolução, sua forma e seus meios, pois, “a forma que vc ameaça a revolução é diferente”.

Assim como pode vir a ser diferente, pensando ainda com Cláudio Ferreira, se o que é melhor é lidar com tantos desafios com tudo que está acontecendo, com a realidade, ou com o ideal.

Ou, como diz o filósofo ali onde está o sinal inaugural da cidade, saltando do projeto  para a sua edificação: “isso tb seria diferente se eu já tivesse amado Clarice antes”.

Por falar em Clarice, convoco o argumento de uma outra, esta a Clarice Herzog. Aliás, a propósito de uma publicação que já foi tema de recensão em coluna que mantenho no Jornal Estado do Direito – Lido para Você.

A obra resenhada é Os Cartazes desta História (https://expresso61.com.br/2021/04/22/os-cartazes-desta-historia/). Ao apresentar o projeto, Clarice Herzog indicando o valor de luta e de resistência que a coleção representa, uma delas, a de “recolher fragmentos da história do Brasil -, pouco visível na época”, para se tornar “um testemunho vivo de momentos bem pouco conhecidos de uma das muitas formas de combater regimes de força: a criação, produção e distribuição de cartazes que foram exibidos e colados em paredes solidárias de universidades, sindicatos, fundações e tantos outros espaços democráticos mundo afora, particularmente na Europa” (p. 5).

No livro – continua Clarice – “estão coletados 243 cartazes, muitos feitos no exterior, com uma infinidade de mensagens contra os militares brasileiros e, também, em solidariedade aos povos latino-americanos que tiveram o seu poder político usurpado por uma sequência macabra de golpes inspirados a partir do golpe dos militares brasileiros em 1964”.

Mas o livro traz também um ensaio pré-textual de Vladimir Sacchetta – A história nas paredes. Com eles, a partir da crônica de Claúdio Ferreira que me mobilizou racional e emotivamente, retiro a advertência que transparece das paredes, das faixas, dos cartazes de papelão, designando que elas são muitas resistências aos desatinos do presente.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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