Ameaça à liberdade de ensino e à autonomia universitária

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

 (Perigo real e imediato na Universidade Federal da Paraíba)

Uma nota preocupante aludindo a perseguição política na Universidade Federal da Paraíba, confirma um quadro grave de ameaça à liberdade de ensino e à autonomia universitária promovidas por ações que indicam perseguições políticas e iniciativas de intervenção na gestão das instituições federais de ensino superior.

O ANDES-SN expressou publicamente a gravidade dessa situação (https://andes.org.br/conteudos/noticia/docentes-sao-alvo-de-investigacao-da-pF-em-mais-um-caso-de-perseguicao-politica-na-uFPB1), enquanto várias entidades lançaram manifestos de repúdio ao seu inusitado.

Nota assinada pelo Coletivo Cordel denuncia a promoção de medidas criminalizadoras requeridas por uma reitoria não legitimada pela consulta à comunidade universitária mas que recebeu investidura pelo governo anterior, derrotado nas últimas eleições.

Segundo a nota, por iniciativa da Reitoria desse modo constituída na UFPB, a Procuradoria promoveu a instauração de investigação criminal contra docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes, exatamente por se mobilizarem em protesto contra o que consideram intervenção afrontando a autonomia universitária.

De fato, diz a nota, dois professores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), já foram intimados para prestaremdepoimentos na Polícia Federal. Eles são “investigados criminalmente por estarem presentes em manifestações pela democracia na Universidade e por terem posição crítica à atuação da gestão central e da procuradoria jurídica. Aos professores Márcio Silva (Biologia) e Daniel Antiquera (Relações Internacionais), que serão ouvidos pela Polícia Federal, juntam-se outras duas docentes, Marília Bregalda (Terapia Ocupacional) e Mojana Vargas (Relações Internacionais), além de estudantes e servidores técnico-administrativos que estão sendo alvo de uma série de denúncias vazias na Polícia Federal por parte do Interventor Valdiney Veloso Gouveia e do Procurador Federal na Instituição”.

A nota avalia que há uma“tentativa de criminalização e de intimidação [que] ocorre num contexto de embates entre a Reitoria e a comunidade universitária da UFPB. O(A)s quatro docentes integram o Coletivo Representativo das e dos Docentes em Luta – CORDEL, que vem criticando o que entende como um ambiente de perseguição política e autoritarismo na Universidade, desde a nomeação e posse do Interventor pelo ex-presidente Bolsonaro, em 2020. Vale destacar que Valdiney Gouveia ficou em terceiro lugar na consulta à comunidade acadêmica, com apenas 5% dos votos, e não recebeu nenhum voto nos Conselhos Superiores, entrando na lista tríplice por meio de uma liminar. Desde 2022 até o momento, há sete inquéritos abertos na Polícia Federal envolvendo o(a)s quatro docentes citados acima, duas estudantes e uma servidora técnica-administrativa. Em nenhum dos processos houve apuração administrativa prévia, todos sendo dirigidos diretamente à Polícia Federal. Com alegações vazias e não comprovadas de “crimes contra a honra” e até de agressão, a Interventoria e a Procuradoria Federal na UFPB têm usado de todos os meios persecutórios para intimidar e desmobilizar seus opositores. Seis desses inquéritos investigam denúncias de suposta ofensa contra a honra de servidor público, associadas a momentos de protestos contra a Intervenção, e o sétimo processo investiga incidente ocorrido em uma reunião do Conselho Universitário (CONSUNI), onde o Reitor Interventor alegou ter sido agredido. Nesta ocasião, vários estudantes, acompanhados pela Comissão de Direitos Humanos da OAB, registraram ocorrência na polícia relatando terem sido agredidos pela equipe de segurança da Universidade”.

Essa não é uma situação isolada e, na verdade, vem se configurando como uma constante no cenário brasileiro e continental, com ocorrências fortes no Brasil. Eu próprio chamei a atenção para o fato, no tocante as estratégias de intervenção, caracterizando as ações de governança para capturar e subjugar o espaço crítico das universidades, tergiversando  a contínua afirmação de autonomia inscrita entre outros elementos, na supressão das listas tríplices para que se fixe a nomeação no primeiro colocado na forma dos modelos estabelecidos pelas próprias instituições na forma de seus estatutos (cfhttps://expresso61.com.br/2023/01/19/intervencoes-nas-universidades-autonomia-e-nomeacao-de-reitores/).

Neste meu artigo, publicado no Jornal Brasil Popular, em minha Coluna O Direito Achado na Rua, mostrei como desde o início do governo autoritário, instalado por um mecanismo golpista que interrompeu a continuidade de uma governança de alta intensidade democrática, o programa neoliberal a que ele serviu, no aspecto econômico e também no aspecto ideológico, identificou a cultura e a educação e, neste caso, o segmento universitário que anima o ensino, a pesquisa e a inovação tecnológica, como um alvo preferencial de toda a sua hostilidade e com estratégia de captura de sua infraestrutura e sua autonomia de produção crítica de conhecimento.

Reafirmei essa intencionalidade da governança antidemocrática em outro ensaio –“Fature-se”: Ataque Privatizante à Universidade Pública, publicado em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/591360-fature-se-ataque-privatizante-a-universidade-publica e também em Future-se valoriza o privado e não acena para o ethosacadêmico, integrante do número especial IHU On-Line – Revista do Instituto HumanitasUnisinos, nº 539 – I Ano XIX, 2019 (https://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/539), reunindo importantes depoimentos.

Em todas essas interferências percebia-se a afronta aqueles princípios asseguradoresdo fundamento convencional (Convenção Americana de Direitos) e da diretriz constitucional de autonomia universitária e de liberdade de ensino, fortes para inibir o escrutínio censor, mesmo do Presidente da República, para acobertar numa elasticidade imprópria de que lhe cabe a direção geral da administração (ar. 84 da CF), para assim, transformar supervisão em subordinação, desconstitucionalizando o princípio da autonomia universitária, e na voragem autoritária, sufocar a crítica acadêmica.

Também em outros âmbitos de ensino nos deparamos como posturas cerceadoras, instigadas por motivações ideológicas (com estratégias de controle ideológico e de concepções disciplinadoras hostis às formas pedagógicas emancipatórias na modelagem de projetos escudados numa concepção de sufocamento ao imaginário e à pluralidade – “escola sem partido”, “escola cívico-militar”), que tem fomentado um vigilantismo educacional ao limite da criminalização como evidenciam a repulsa de mutos educadores, a exemplo de campanhas em curso (https://www.ihu.unisinos.br/642098-professores-lancam-campanha-liberdade-de-ensinar-e-aprender-nesta-sexta-feira-9), no plano nacional; e no âmbito internacional, conforme revela o noticiário, https://www.ihu.unisinos.br/categorias/631567-a-onu-defende-a-liberdade-academica-na-nicaragua, mostrando reações institucionais, como a do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, que em comunicado afirma estar “preocupado” com a perseguição religiosa que ocorre na Nicarágua e com a tomada da Universidade Centro-Americana (UCA) pelas mãos do regime de Ortega; e reações locais – https://www.brasil247.com/americalatina/maes-da-praca-de-maio-denunciam-intervencao-do-governo-milei-em-sua-universidade – alcançando iniciativas altamente reconhecidas no espaço da sociedade civil.

Por esta razão o tema se tornou sensível e já ativou a atuação preocupada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (confira emhttps://brasilpopular.com/principios-interamericanos-sobre-a-liberdade-academica/), que aprovou Princípios Interamericanos sobre a Liberdade Acadêmica, para prevenir “a constatação da ameaça crescente, no continente, de agressões, mobilizações e atitudes contra a autonomia universitária e a liberdade de ensino, sobre a desinstitucionalização e a desconstitucionalização desses fundamentos, caros aos enunciados dos direitos convencionais internacionais, assim como da própria ONU”(https://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios_Libertad_Academica.pdf).

De resto, essas diretrizes estão afinadas com o Comentário Geral 13 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), que deixou bem assentado o reconhecimento da liberdade acadêmica, cuja satisfação, assegurada em geral pelas constituições dos países: “é imprescindível à autonomia das instituições de ensino superior. A autonomia é o grau de auto governo necessário para que sejam eficazes as decisões adotadas pelas instituições de ensino superior no que respeita o seu trabalho acadêmico, normas, gestão e atividades relacionadas”.

Muito importante, pois, a denúncia do que está acontecendo na Paraíba (UFPB) e em outras instituições de educação. Essas denúncias se prestam a salvaguardar o espaço crítico autônomo da Universidade para dar concretude a umacategoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência e de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como de São Salvador.

E também para prevenir que se amplifique essa excrecência absurda do que já se categorizou como lawfare. Tratei disso inferindo criticamente suas mais insidiosas formas de aplicação, cf. https://estadodedireito.com.br/lawfare-e-america-latina-a-guerra-juridica-no-contexto-da-guerra-hibrida/https://estadodedireito.com.br/lawfare-guerra-juridica-e-retrocesso-democratico/. Na obra Relações Indecentes (Relações Indecentes [recurso eletrônico] / organização Camila Milek, Ana Júlia Ribeiro; coordenação Mírian Gonçalves, Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho; 1ª edição – São Paulo: TirantLoBlanch /Instituto Defesa da Classe Trabalhadora, 2020, 190 p. Links para acesso gratuito: https://editorial.tirant.com/br/libro/relacoes-indecentes-E000020005394; https://bit.ly/DownloadRelacoesIndecentes), tracei uma síntese – https://estadodedireito.com.br/relacoes-indecentes/ – do potencial de perversidade a que pode chegar uma apropriação do institucional para uso conspiratório do aparato jurídico-repressor de forma não republicana em seu potencial de corrosão democrática, conforme meu texto “Entre Os Maus, Quando Se Juntam, Há Uma Conspiração. Não São Amigos, Mas Cúmplices”. Para uma compreensão completa do alcance desestabilizador do lawfarevale a leitura de livro que está sendo publicado neste mês de agosto – 10 Anos da Operação Lava Jato. A desestabilização do Brasil, organizado pelas professoras Carol Proner e Gisele Cittadino, numa edição capitaneada pelo Instituto Joaquín Herrera Flores América Latina, em associação editorial com um conjunto de entidades sindicais, sob o selo da Canal6Editora.

Muito importante a nota do Coletivo Cordel e todas as manifestações que estão sendo divulgadas. Pois, se não se fizer nada – chamei a atenção para isso em https://estadodedireito.com.br/a-tutela-juridica-da-liberdade-academica-no-brasil-a-liberdade-de-ensinar-e-seus-limites/ -estaremos daqui a pouco, de novo, com o censor dentro da sala, com o comissário verificando os títulos dos livros que são adquiridos para as bibliotecas, com as caracterizações das teses e dissertações que são defendidas, e da criminalização do pensamento e da crítica. E no limite, a dignidade e a vida, como agora vai se revelando no evento policial-judicial que sacrificou o Reitor Cancellier (MARKUN, Paulo. Recurso Final. A Investigação da Polícia Federal que levou ao Suicídio um Reitor em Santa Catarina. São Paulo: Cia das Letras, 2021; também o meu https://brasilpopular.com/o-reitor-cancellier-o-absurdo-e-o-suicido-reparar-a-injustica/) e tem forçado já verdadeiros exílios de professores em nossas universidades e o próprio atual Presidente que num desvio de lawfare foi impedido – o que o social mobilizado não permitiu – de retornar à Presidência da República, como agora, para um raro e inédito terceiro mandato.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

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