Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Convidado por sua direção participei na semana que passou (2/8), de encontro de formação com a equipe em Brasília e por meio virtual com as equipes nacionais, doCentro Popular de Formação da Juventude – “Vida e Juventude”, organização da sociedade civil que tem como missão preferencial contribuir com o protagonismo dos jovens, mulheres e lideranças de povos e comunidades vulnerabilizadas, visando à defesa e promoção dos direitos humanos, para a transformação social e o Bem Viver.
Meu tema, combinado com a direção, foi “Do que Falamos quando Falamos em Direitos Humanos pensando Ações de Proteção a Defensores de Direitos Humanos”. Minha referência de fundo foi o livro que publiquei co-autoralmente com Antonio Escrivão Filho, Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021). A perspectiva é a de desentranhar dos discursos correntes as pré-compreensões que consciente ou inconscientemente neles se instalam e que reduzem o discernimento do tema. Os direitos humanos, portanto, longe de se reduzirem às declarações, aos monumentos e até às ideias (em geral ideologias), são realmente, as projeções conscientizadas nas lutas sociais por emancipação e por humanização, das aquisições materiais da dignidade e da cidadania.
Nesse passo, em contato com agentes da causa dos direitos humanos, no pensamento e na praxis, que buscam “fortalecer o reconhecimento pela efetividade de ações direcionadas ao protagonismo social, à defesa dos direitos humanos e às relações saudáveis com a natureza”, o encontro buscou atender ao objetivo principal do Vida e Juventude, que é a “formação para a cidadania e a promoção e defesa dos direitos humanos de pessoas e grupos sociais em situação de vulnerabilidade. Em nossas atividades e atuação utilizamos metodologias que preservam os princípios da educação popular propostos por Paulo Freire (respeito ao protagonismo das pessoas e à cultura dos grupos), e nossa linha de atuação, a partir da referida metodologia, é a da formação integral do ser humano. Compreendendo as dimensões pessoais, psico-afetivas, transcendentais, organizacionais e de consciência crítica”.
A ação do Vida e Juventude se inscreve no Programa de Proteção aos/as Defensores/as de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDH e se fundamenta na Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos – PNPDDH, aprovado pelo Decreto n° 6.044/2007, que objetiva o fortalecimento do pacto federativo para a concretização de suas ações, por meio da atuação conjunta e articulada de todas as esferas de governo na proteção aos/às defensores/as de direitos humanos e na atuação para dirimir as causas que geram o estado de risco e vulnerabilidade.
Conforme a definição dessa política, “Defensores/as dos Direitos Humanos são todos os indivíduos, grupos e órgãos da sociedade que promovem e protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidos, conforme define o Decreto Presidencial n° 6044 de 2007, que institui a Política Nacional de Proteção aos/as Defensores/as dos Direitos Humanos” (https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoas-ameacadas-de-morte/acoes-e-programas/programa-de-protecao-aos-defensores-de-direitos-humanos-comunicadores-e-ambientalistas-ppddh).
No Brasil, em que pese a altíssima relevância dessa ação decorrente dos protocolos de proteção aos direitos humanos e sobretudo aos seus defensores previstos nos enunciados formais do sistema internacional de direitos Humanos (ONU, OEA), ela é realizada com o selo de fomento institucional mas se efetiva de forma conveniada com a participação da sociedade civil.
É assim que o Vida e Juventude está credenciado para atuar em três programas nesse campo: O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte – PPCAAM, criado em 2003 e instituído pelo Decreto 6.231/2007, substituído pelo Decreto n.º 9.579, de 22 de novembro de 2018, art. 109 a 125, que consiste em uma política de proteção à vida de crianças e adolescentes em ameaça iminente de morte, bem como seus familiares, utilizando-se de metodologia desenvolvida no intuito de prevenir a letalidade infanto-juvenil em todo o Brasil, por meio da proteção integral e inserção segura na sociedade em novo território; oProjeto Família Solidária (Acolher para Proteger), que surge da necessidade de ofertar cuidados em diferentes modalidades de acolhimento para crianças e adolescentes incluídos no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) e se encontram desacompanhados de seus pais ou responsáveis. A iniciativa enfatiza que, mesmo diante da ameaça de morte, a preferência na escolha do acolhimento deve ser dada à convivência familiar e comunitária, de acordo com o preconizado no Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), em ambiente que garanta o seu desenvolvimento integral; e o Programa de Proteção aos/as Defensores/as de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas – PPDDHque se fundamenta na Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos – PNPDDH, aprovado pelo Decreto n° 6.044/2007(https://www.vidaejuventude.org.br/).
Tarefa formidável. Talvez resida nessa forma de atuação, no Brasil, diferente de outros países em que cabe exclusivamente ao Estado prover as ações de proteção, o engajamento da sociedade civil traz essa dimensão de compromisso que só o social logra conferir ao participar da vida política.
É o que mostra Luís Gustavo Magnata em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal da Paraíba em 2014 (participei da Banca Examinadora como examinador externo juntamente com os queridos companheiros professores da UFPB SvenPeterke, Orientador e Maria de Nazaré Tavares Zenaide): “Quem Defende os Defensores? Do Reconhecimento à Construção de uma Política de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Brasil”.
O estudo de Magnata, teve (tem) por finalidade “realizar uma análise interdisciplinar, a partir da teoria crítica dos direitos humanos, sobre a situação de risco e vulnerabilidade que assola os defensores de direitos humanos no Brasil. Ao longo dos últimos trinta anos esses atores sociais vem se destacando, com participação direta, nos temas mais emblemáticos que o Brasil já enfrentou: reabertura da democracia; memória verdade e justiça; reforma agrária; situação prisional; violência institucional, entre outros. Desde o fim da década de 1990, a sociedade civil organizada e os movimentos sociais documentam as violações sofridas pelos defensores, ao mesmo tempo em que, exigem políticas públicas e a criação de espaços institucionais que garantam a participação social nos processos de tomadas de decisão dos temas importantes para o país. Esses atores demonstram ter uma grande capacidade catalisadora de demandas e por isso se colocam na linha de frente correndo sérios riscos de vida. Apesar dos esforços de evidenciar a situação de vulnerabilidade sofrida pelos defensores de direitos humanos as respostas do Estado parecem ser insuficientes”.
Essa insuficiência se acentua quando a governança recua na posição histórica do país em se associar aos esforços regionais e globais de fortalecer ações de defesa dos direitos humanos. É o que se passou no Brasil desde 2016 até a retomada do ciclo democrático, abrindo o ensejo pedagógico para um sistema político de afirmação de direitos. Basta ver, conforme ressalta o Programa brasileiro, afirmando a instituição pela gestão atual do Programa, a criação do Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta, por meio do Decreto nº 11.562. O Grupo tem o objetivo de, em diálogo com a sociedade civil, movimentos sociais e demais atores envolvidos, elaborar proposta do Plano Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, aos Comunicadores e aos Ambientalistas e proposta de anteprojeto de lei sobre a Política Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, aos Comunicadores e aos Ambientalistas.
A iniciativa coincide e dialoga com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Sales Pimenta vs Brasil, Sentença de 30 de junho de 2022.
Gabriel Sales Pimenta defendia o direito à terra de pequenos produtores da comunidade de Pau Seco, uma área pública no estado do Pará que fica na região conhecida como Polígono dos Castanhais, a maior reserva de castanha-do-Pará do Brasil à época. A terra – mais de um milhão de hectares – era reservada para assentar famílias de agricultores. No entanto, os madeireiros Manoel Cardoso Neto, o Nelito, e José Pereira da Nóbrega, o Marinheiro, obtiveram, em 1980, o domínio útil de imóveis na região. Começou aí um conflito fundiário.
Com um pedido feito à Vara Penal de Marabá, os madeireiros conseguiram uma liminar de reintegração de posse e expulsaram os posseiros da região. Gabriel Sales Pimenta, então, entrou com um mandado de segurança contra a decisão, sob o argumento de que os moradores não tinham sido ouvidos e, portanto, a medida era ilegal. O recurso foi aceito e os trabalhadores voltaram à área.
Poucas semanas depois, ao sair de um bar em Marabá, o advogado foi morto com três tiros nas costas, à queima-roupa. Um inquérito foi aberto no dia seguinte e deu início a uma série de omissões da Justiça brasileira, conforme alegam os familiares e também a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) por “graves falências” judiciais que resultaram na impunidade dos responsáveis pelo assassinato de Gabriel Sales Pimenta. O tribunal considerou que, ao se omitir de cumprir sua obrigação de investigar, processar e punir os autores do crime, o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais, à proteção judicial, à verdade e à integridade pessoal, previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.
A Corte destacou que, em situações de violência contra defensores de direitos humanos, como é o caso de Sales Pimenta, os Estados têm dever reforçado de empregar a devida diligência quanto à investigação. Para aos juízes, a omissão estatal no processo em questão tem efeitos coletivos em razão do medo gerado aos outros cidadãos.
A sentença ressalta que Sales Pimenta não foi vítima de uma situação isolada, mas de um contexto de “impunidade estrutural” em crimes contra trabalhadores rurais e defensores de seus direitos no Pará. Para a Corte o caso Sales Pimenta “está inserido no contexto de impunidade estrutural relacionado a ameaças, homicídios e outras violações de direitos humanos contra os trabalhadores rurais e seus defensores no Estado do Pará. Ao mesmo tempo, esta impunidade estrutural se reflete na falta de devida diligência analisada no caso em estudo. Com efeito, conforme decorre dos autos, a grave negligência dos operadores judiciais na tramitação do processo penal, que permitiu a ocorrência da prescrição, foi o fator determinante para que o caso permanecesse em uma situação de absoluta impunidade”.
Valem as conclusões de Luís Magnata em sua dissertação:
A ideia da criação da política de Estado não é de por si só resolver todos os problemas identificados aqui. Mas uma política de Estado, em uma democracia, tem a prerrogativa de ser fio condutor do comportamento das esferas públicas que devem incidir em longo prazo para uma mudança comportamental também dos espaços privados.
A proteção aos defensores de direitos humanos representa proteger a integridade e dignidade daqueles que tem coragem de lutar pelo bem estar do próximo. A negativa deste direito, pode ser a afirmação de que lutar por direitos, por cidadania não é viável.
Porém não será uma política que irá garantir a vida dos defensores, mas uma mudança social e cultural de longo prazo. Aliás, nenhum defensor estará cem por cento seguro – e ninguém tem esta segurança, é impossível fornecer essa certeza e seria incoerente cobrar essa margem zero de insegurança – porém um processo de atuação multidimensional sobre os problemas enfrentados trará uma resposta que atingirá a toda uma coletividade, reforçando e construindo democracia.
Uma política precisa fomentar a transformação social, mas são as pessoas que tem a capacidade para colocar em prática as mudanças necessárias para trazer os pressupostos iniciais de vida digna.
As políticas reivindicadas pelos DDH, não tem finalidade em si própria. A escolha de demandar por respostas em forma de criação e efetivação de políticas públicas se demonstra como um caminho viável para outros caminhos possíveis.
Nesse diapasão a educação tem o poder de reconhecer, redescobrir e provocar reação das pessoas. E a educação em direitos humanos se apresenta como uma importante estratégia de emancipação social. Através dela se pode trabalhar os vários aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais da sociedade humana, de suas relações e instituições.
A educação em direitos humanos precisa ser uma medida permanente, uma ação constante e transversal para o desenvolvimento social e institucional da democracia e que precisa permear desde as ações dos defensores até a criação das diretrizes das políticas públicas.
Quanto mais se difundir uma prática emancipatória de direitos humanos mais a democracia se fará presente e menor a chance das violações não serem identificadas e ficarem sem a resposta necessária.
O diálogo com os voluntários, os técnicos e os dirigentes do Vida e Juventude, na sessão de formação que tive a satisfação de compartilhar, confirma essa opção de cooperação entre o institucional estatal e o institucional social, autenticando que a participação na política é condição para associar acolhimento e protção.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.