A geopolítica do refúgio: um olhar além da polarização

Por: Ricardo Lobato e Ana Paula Inglêz Barbalho – Jornal Brasil Popular/DF

“Quem acolhe a um migrante, acolhe a Cristo.”

 Papa Francisco

O “Diálogos de Justiça e Paz” do mês de julho de 2024 teve como tema “40 Anos da Declaração de Cartagena – Migração e Refúgio em Tempos de Emergências Climáticas”. Refletindo sobre os 40 anos da Declaração de Cartagena sobre Refugiados, a Cartagena+40, recebeu as palestrantes Flávia Reis, Carolina Claro e Silvia Sander, com mediação de Ricardo Lobato.

A Declaração de Cartagena de 1984 atualizou o Estatuto dos Refugiados de 1951, estendendo a proteção integral também aos refugiados das Américas e , na recente revisão de 40 anos, conhecida como Cartagena+40,aprofunda as discussões sobre questões ambientais. O evento pode ser assistido na íntegra no Youtube em https://www.youtube.com/live/pASP1K2hjuM .

Em junho de 2024, o Papa Francisco compartilhou a tradicional mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado,que será celebrado no domingo 29 de setembro de 2024. Em 2024, tem como tema “Deus caminha com o Seu povo”.

O Papa Francisco nos recorda que todos nós somos migrantes nesta terra, no sentido teológico de que nossa “verdadeira pátria” é o “Reino dos Céus”, e reconhece nos migrantes o ícone contemporâneo do povo em caminho, da Igreja em caminho. Simultaneamente, nos conduz pela ideia de que nos migrantes – e em todos os nossos irmãos e irmãs vulneráveis – podemos encontrar o Senhor que caminha conosco.

Nesse sentido, o Papa Francisco contextualiza as profundas mudanças políticas, econômicas e sociais enfrentadas pelo mundo. Até mesmo os tempos de mudança se mostram mais dinâmicos: em pouco mais de 20 anos, é possível perceber o quanto as “coisas mudaram”. Se nascido no século XX, um pouco mais experiente, as mudanças são ainda mais profundas.

Superamos o dualismo da Guerra Fria (1945-1991), migrando para a unipolaridade norte-americana e, ao menos desde 2008, a partir da Crise das Hipotecas nos Estados Unidos da América (EUA) – também conhecida como Crise do Subprime – passamos a entender o mundo como multipolar, em constantes disputas,onde diversos atores lutam pela dominância na cena internacional.

Nesse sentido, o conceito de multipolaridade é concebido como uma ordem geopolítica mundial regida por vários polos de poder, como, por exemplo, Estados Unidos, China, União Europeia, Japão, Índia, Brasil e outros.

No contexto de redesenho do poder no mundo, afloraram tentativas de polarização – fenômeno que não é novo, mas que estava adormecido desde 1945, quando o som dos canhões cessou no último grande conflito mundial. O famoso “nós contra eles”, onde o pragmático dá lugar ao passional, e a razão à emoção.

Em meio a este reconcerto da ordem internacional, as mensagens do Papa Francisco, da necessidade de uma ação social justa e fraterna; e o pioneirismo brasileiro, com a abordagem humanista do tema, são um lembrete – e uma esperança – de que, mesmo em meio às dificuldades extremas, há sempre alguém disposto a fazer o bem.

Em especial nas sociedades ocidentais, nas quais a democracia e o sufrágio –heranças das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX – ainda ditam os rumos dos sistemas políticos, vemos a cena democráticacada vez mais polarizada, e no centro da polarização está justamente a questão do refúgio.

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a agência das Nações Unidas para o tema, em 2023, o mundo contava com mais de 117 milhões de pessoas nesta condição. Tal número assusta não apenas pela magnitude, pois é maior que a população de muitos países, mas por ser a maior quantidade de pessoas deslocadas desde o final da Segunda Guerra Mundial.

O número representa um aumento de 8% em relação ao ano anterior, com acréscimo de 8,8 milhões de pessoas, continuando uma tendência de aumentos anuais há 12 anos. As principais causas de deslocamento se devem a perseguições, conflitos, violência, violações de direitos humanos e eventos que perturbam seriamente a ordem pública. Esse contingente de 117 milhões de pessoas, ou 1,5% de toda a população mundial, inclui:

– 43,4 milhões de refugiados e outras pessoas necessitando de proteção internacional (+8% em relação ao ano anterior), incluindo 31,6 milhões de refugiados sob o mandato do ACNUR; 5,8 milhões de outras pessoas necessitando de proteção internacional; e 6 milhões de refugiados palestinos sob o mandato da UNRWA;

– 68,3 milhões de pessoas deslocadas internamente, em comparação com 62,5 milhões em 2022, um aumento de 9,3% e de 49% em cinco anos;

– 6,9 milhões de solicitantes de asilo;

– 47 milhões de crianças.

Até o fim de 2023, uma em cada 69 pessoas globalmente estava deslocada à força – quase o dobro do que há uma década.

“Estranhos em terras distantes”, essas pessoas acabam em situações de extrema vulnerabilidade:forçados a deixarem suas casas, suas vidas, alijados do controle de seus próprios destinos, muitas das vezes acabam sendo colocados na condição de culpados pelos problemas que os fizeram migrantes.

Em tempos de extremismo e de polaridade, a condição de migrante suscita o mote para ideias, mitos e falácias que, repetidos e bombardeados nas redes sociais, nas propagandas políticas, no discurso, tentam se travestir de “ liberdade de expressão” quando são “discurso de ódio”.

Mentiras, de tanto serem repetidas, são tomadas por verdade. Um exemplo é a ideia de que o maior destino buscado por imigrantes africanos é a Europa. Segundo dados do ACNUR, o maior fluxo de migração de africanos está dentro da própria África.Os países que acolhem a maioria dos refugiados geralmente compartilham fronteiras com aqueles onde estão ocorrendo crises humanitárias. De acordo com o relatório do ACNUR, 69% dos refugiados em 2023 estavam vivendo numa nação vizinha ao seu país de origem.

Apesar da repulsa com que muitos veem os refugiados, existem vozes em sua defesa. Dentro da Igreja Católica, o exemplo vem do próprio Papa Francisco que relembra – a todas e todos, não apenas católicos – que o próprio Cristo era um deslocado. Para além de ações concretas, como o acolhimento e as visitas aos deslocados nas diversas viagens que fez a ilha de Lampedusa, na Itália, um dos principais pontos europeu para a chegada de migrantes vindos da África, em diversas mensagens o Papa nos convida a refletir sobre o tema.

Uma de suas muitas pregações sobre a temática foi ainda no auge da pandemia de Covid-19, em 2020, em sua mensagem para o 106º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado[1].

Como escreve a jornalista Andressa Collet, em artigo para o Vatican News[2], o periódico oficial da Santa Sé, publicado no lançamento da mensagem, “(O Papa) Francisco explica, então, que o ponto de partida para a mensagem deste ano foi inspirado na constituição apostólica Exsul Familia (1/VIII/1952), do Papa Pio XII: ‘na sua fuga para o Egito, o menino Jesus experimenta, juntamente com seus pais, a dramática condição de deslocado e refugiado marcada por medo, incerteza e dificuldades’ (cf. Mt 2, 13-15.19-23)”.

Um exemplo de Estado que promove o acolhimento é o Brasil. Ao contrário de muitos países, que tratam a temática da migração e do refúgio como “assunto de polícia”, o Brasil é um dos mais abertos para os deslocados. Além de estar presente em diversos pontos da Constituição Federal de 1988, o próprio fato de o país facilitar ao migrante o acesso à documentação, em especial à Carteira de Trabalho, ajuda na sua integração.

O Brasil é um dos países que mais se aproxima dos princípios da Declaração de Cartagena, que em 1984 atualizou as noções de migração e refúgio, até então muito atreladas ao contexto europeu pós-Segunda Guerra. Em 2024, a Declaração de Cartagena passa por uma nova revisão – ocorrem a cada dez anos – e a conjuntura atual, profundamente impactada pelas mudanças geopolíticas, terá um peso decisivo no texto final a ser apresentado em dezembro.

Para mais, com tantas eleições em curso – 2024 é um ano onde mais de 80 países terão pleitos, de estaduais a nacionais, e aproximadamente metade da população mundial irá às urnas – o tema de migrações e refúgio está (e continuará) no debate. Cabe a nós posicionarmos o debate em uma moldura de Justiça e Paz, que favoreça a integração destes vulneráveis, assegurando seus direitos fundamentais e buscando novas soluções para conflitos novos e antigos.

[1] Leia a mensagem completa em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/migration/documents/papa-francesco_20200513_world-migrants-day-2020.html

[2]Leia o artigo completo em https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2020-05/papa-francisco-mensagem-dia-mundial-migrante-refugiado-2020.html

(*) Por Ricardo Lobato e Ana Paula Inglêz Barbalho

(*) Ricardo Lobato é professor, Mestre, sociólogo, etnógrafo e economista, sendo especializado em Geopolítica e Assuntos Militares. Tem experiência em negociação internacional e pesquisa de campo, especialmente no meio Etnográfico, com produção acadêmica voltada para o impacto dos conflitos recentes na política, na economia e na sociedade brasileira. É membro da Comissão de Justiça e Paz de Brasília (CJP-DF).

(**) Ana Paula Inglêz Barbalho é Ouvidora do Serviço Florestal Brasileiro. Advogada, Mestre em Biologia Animal e bióloga, é presidente da Comissão de Justiça e Paz de Brasília (CJP-DF).


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